Perfume Indesejável

Dionísio é motorista de táxi há muitos anos e apesar de sua mulher achar desnecessário e ser contra, ele ainda trabalha sábados, domingos e feriados, todos sem exceção, não atendendo aos seus pedidos para descansar e se distrair com a família. Entretanto após esta experiência vivida decidiu atender a esposa.
Naquele sábado de verão Dionísio saiu para trabalhar às dezoito horas, um pouco mais tarde que o de costume. Ainda bem próximo de casa – para ser mais exato, na Praça Jauru –, foi logo parado. Muito se estranhou com aquele passageiro ali por Jacarepaguá, porque, normalmente, o pessoal do local sempre pedia o serviço dos táxis existente na área por telefone. “Mas já que apareceu um perdido no caminho, vamos atendê-lo” – pensou.
Seu primeiro cliente era de estatura mediana, moreno, magro, de olhos negros penetrantes e frios. O cabelo era preto e totalmente liso; vestia calça, cinto e sapato branco com uma camisa tipo social de seda, estampada nas cores azul e amarelo dourado, de fundo também branco.
Ele abriu a porta dianteira, e com um lenço na mão, fez menção de limpar o banco. Não deu continuidade ao ato, pois viu que o carro e os assentos estavam bem cuidados. Sentou-se elogiando a conservação do táxi, mas não se identificou. Em seguida pediu que o levasse até Nilópolis, na Baixada Fluminense. Usava um perfume forte que lembrava o cheiro peculiar de flores que enfeitam os caixões mortuários.
Alguma coisa dizia a Dionísio que deveria tomar o máximo de cuidado com aquele passageiro. – uma espécie de sexto sentido – Na tentativa de começar uma conversa e tornar aquela viagem melhor, mas sem saber o que dizer, a clássica pergunta foi sua salvação:
- Por onde gostaria de ir, senhor?
O homem olhou-o com um olhar frio e distante e falou secamente.
- Podemos ir por dentro mesmo. Assim aproveito e dou uma passada por uns lugares que não vejo há muito tempo, e no caminho revejo antigos amigos.
Dito isso, voltou a ficar calado. Quando estavam passando em frente ao cemitério de Ricardo de Albuquerque, pediu que fizesse o contorno na praça alegando que queria comprar umas flores. Assim foi feito e Dionísio parou quase em frente à floricultura existente na rua ao lado do cemitério. O passageiro, que até aquele momento ainda não tinha se identificado, desceu do carro e o chamou para ir junto. Caminharam até a loja. Dentro desta, seu perfume que já era forte se misturou ao cheiro das flores que lá estavam e ficou mais acentuado. A forma como tratou a dona da floricultura pareceu ser íntima, entretanto Dionísio não pode deixar de notar a surpresa demonstrada por ela ao vê-lo. Comprou duas dúzias de rosas nas cores brancas, vermelhas, rosas e amarelas. Misturando-as, juntou a elas alguns ramos verdes e um pouco de mato chamado chuva de prata. Pediu para a senhora atrás do balcão, que continuava paralisada e pálida, para fazer um arranjo bem bonito. Em seguida, bateu nas costas de Dionísio e falou:
- Enquanto ela prepara meu arranjo, vamos até aqui, no bar ao lado, tomar uma cerveja.
- Posso até acompanhá-lo, mas eu não bebo, ainda mais quando estou trabalhando. – Respondeu-lhe Dionísio.
- Então vai tomar um guaraná. – Insistiu o misterioso passageiro.
- Tudo bem, vou aceitar o refrigerante. – Não tendo mais alternativas, concordou.
O bar era amplo, com umas oito mesas espalhadas; tinha duas portas para entrar. Quando chegaram ao local, reparou que ele examinou todo o ambiente. Ficaram em pé e encostados no balcão: Dionísio de costas para a rua e o salão, e ele ao contrário, olhando o salão e a rua. Assim que entraram, ele pediu um conhaque, uma cerveja e o guaraná. Antes mesmo de tomar a cerveja, bebeu o conhaque num só gole. Dionísio percebeu que a pessoa que os servia não estava à vontade com a presença deles. Ao final não o deixou pagar o refrigerante, e antes mesmo que Dionísio terminasse de beber seu refrigerante, tomou mais dois copos de conhaque. Pensou: “esse cara vai ficar bêbado e vou ter problema com ele”. Voltaram até a floricultura e apanharam o arranjo de flores que já estava pronto. O sujeito pagou e falou para a mulher:
- Amanhã vou mandar três bonecos para vocês enfeitarem, mas não precisa caprichar. – Sua voz tinha mudado completamente de tonalidade quando proferiu aquela frase.
A mulher, que continuava pálida, instintivamente se benzeu. Ele riu e saiu puxando Dionísio pelo braço. Entraram no carro e atravessaram mais adiante para o outro lado da linha férrea. Assim que o fez, um pouco mais à frente na direção de Anchieta, ele novamente mandou parar na porta de um bar mercadinho. Outra vez pediu para acompanhá-lo. Mandou descer uma cachaça, uma cerveja e um refrigerante. Dionísio presenciou a mesma cena de antes: o dono do mercadinho estava lívido e quase não conseguia pronunciar uma palavra. Não dava para entender o porquê daquelas reações. O misterioso passageiro pediu um cigarro e Dionísio automaticamente disse que não fumava. Aí o homem virou-se para ele e, com ironia, perguntou:
- Você não bebe... Não fuma... Será que também não trepa?
Não respondeu. Fez um ar de sorriso, mas não estava se sentindo a vontade com aquele sujeito. Ele pediu outra cachaça e mais uma cerveja, bebendo tudo quase que de uma só vez. Comprou além de um maço de cigarros, outras coisas no mercadinho e pediu para embrulhar. Pagou a conta e foram embora. Não se sabe se já era efeito da bebida ou o quê. O fato é, que o homem resolveu falar:
- Preciso encontrar minha irmã. Estou preocupado com ela, essas flores são dela e as compras para meu irmão, que está sem trabalhar. – Falou de uma forma como que há justificar seu comportamento.
- Esse seu gesto é muito bonito, mas porque está preocupado com sua irmã? Ela está doente?
- Não. Ela foi e agredida pelo marido. Também quero saber por que aqueles safados ajudaram a ele a espancá-la. Isso não vai ficar barato.
Dionísio continuou calado. O perfume daquele homem, agora mais acentuado, continuava impregnando tudo à volta e sua voz soava assustadora.
Chegaram em Nilópolis e ele começou a orientar no caminho a ser seguido. Vira pra cá, vai em frente, vira pra lá. De repente falou:
- Pode estacionar ali na frente daquela birosca.
Desceram mais uma vez; eram dez horas da noite. Tinha uma rapaziada sentada na mureta da varanda do barzinho, bebendo. Quando o viram, baixaram a cabeça e pararam de conversar. Silêncio total e inquietante. Estavam todos assustados. Parecia que confrontavam um fantasma, igual à mulher da floricultura e ao dono do mercadinho.
Ele lançou a pergunta ao ar, para todo mundo ouvir.
- Minha irmã, alguém sabe onde ela está?
Alguém respondeu que não sabia. Ele continuou:
- Vocês estão é me escondendo, mas não tem problema. Vou encontrá-la. E os safados que bateram nela, sabe onde eles estão? – Perguntou, se dirigindo agora àquele que tinha lhe respondido anteriormente.
- Dizem que estão lá para o lado de São João.
- Hoje eu pego todos eles. – Afirmou enfurecido.
Dizendo isso foi em direção ao banheiro do bar, mas antes pediu outro conhaque, uma cerveja e perguntou a Dionísio se ele ia tomar outro refrigerante, que para não contrariá-lo aceitou. Foi quando um senhor que estava no meio deles chegou perto dele e falou tão baixo que parecia até que não queria que o próprio Dionísio escutasse.
- Pelo jeito o senhor não sabe quem é esse homem, né?
- Não, nunca o vi mais gordo. – Respondeu normalmente.
- Imaginei, mas fala baixo, amigo. Ele foi conhecido aqui na favela como Índio, o pior dos matadores que existiu na Baixada. Era muito perigoso.
Continuava falando tão baixo que quase não dava para ser ouvido.
- Por que o senhor diz que ele existiu? – Dionísio quis saber.
- Porque correu a notícia que ele havia morrido, mas parece que foi outro o enterrado. O caixão dele estava fechado e não foi aberto.
- Sabe o por que de não ter sido aberto?
- Isso é um mistério até hoje. Hum! Esse cheiro é igual ao do dia do enterro.
- Então você está dizendo ele não morreu e está de volta? – Indaguei, rindo.
- Não sei não, mas é o que está parecendo. Que está estranho, está.
- Vai querer me convencer que estou conduzindo uma assombração no meu táxi?
- Você é quem está falando. Eu não disse nada e como a família dele toda mora aqui na comunidade, pode ser que estejamos enganados. Pelo jeito, está procurando o marido da irmã, que junto com mais dois quase a mataram de tanta pancada. Com certeza vai empacotá-los quando os encontrar. O senhor precisa arrumar um jeito de pular fora dessa.
Começava a fazer sentido o aviso que Índio deixara na floricultura, mas agora não dava mais para desvencilhar-se dele. O relógio estava marcando uma quantia elevada e Dionísio não ia perder o valor daquela corrida por nada. A final, o dinheiro com que ele pagou suas contas, – na floricultura, no bar e no armazém – era verdadeiro, e não tinha nada do outro mundo.
Índio saiu do banheiro bebeu a cerveja, dois conhaques e pagou a conta. Veio em direção a Dionísio, que encostado no carro, mal podia acreditar que um homem pudesse beber tanto e ainda continuasse andando sem cambalear, não aparentando qualquer sinal de embriaguez.
Índio pegou as flores e as compras no carro, e de novo, ao sair andando, o chamou:
- Vem comigo.
- Espera um pouco que eu vou fechar o carro. – Falou preocupado.
- Pode deixar essa merda aberta aí mesmo. Todo mundo já sabe que eu voltei e que você está comigo, ninguém vai mexer nele.
Lá foi ele obrigado novamente a segui-lo. Desta vez entraram ainda mais na favela. As pessoas, assim que os avistavam, fugiam para dentro de suas casas procurando os evitar. Pode ser até que ele estava influenciado pelo que tinha ouvido e presenciado até ali, mas essa era a impressão que Dionísio tinha.
Parou na frente da casa do irmão. Olhou para todos os lados. A rua estava deserta. Entrou, e lá de dentro gritou:
- Entra aí, piloto.
Dionísio entrou e viu ele bebendo mais uma dose de cachaça. Melhor dizendo, bebeu um copo cheio. O irmão também parecia estar vendo assombração. Quando acabou de beber, perguntou pela irmã.
Muito nervoso, o rapaz disse que não sabia onde ela estava. Aí escutou Índio avisando, alto e em bom som:
- Zeca, não adianta ela se esconder para proteger o marido. Vou matá-lo junto com os dois safados assim que os encontrar. Você também não devia acobertá-los. Tenho de ir. Essas compras são para você e entrega essas flores para Gilda, eu sei que você sabe onde ela está.
Após esse mal estar, o sujeito dirigiu-se ao Dionísio:
- Vamos embora, piloto.
Voltaram tudo a pé novamente até o táxi e as pessoas agiram da mesma forma. Era notório: – por onde eles passavam os moradores do lugar olhavam às escondidas pelas frestas das janelas e pelas portas entreabertas. Parecia que ninguém tinha coragem de cruzar o caminho do tal Índio. Quando chegaram ao carro, não tinha uma viva alma na rua e nem no bar. Dionísio estava impressionado e com medo; nesse momento ele já não sabia se o que sentia era por ser o cara um matador profissional ou por ser uma possível assombração. Entraram no veículo e Dionísio escutou o que não queria:
- Vamos a São João de Meriti.
- Daqui eu não sei como ir para lá.
- Isso não é problema, eu ensino.
Dionísio realmente não conhecia nada por ali e o tal do Índio passou a orientá-lo qual caminho seguir. Sem mais nem menos, de repente convidou-o para pegar umas mulheres e ir para um motel fazer uma noitada. Recusou. Ele agora rindo, mas com uma voz bem diferente. Aliás, bem diferente da que Dionísio já estava acostumado a ouvir. Afirmou:
- É, parece que você também não transa.
Como queria se livrar dele o mais rápido possível, nem deu muita atenção ao que acabava de escutar e continuou dirigindo. Mas como é que ele iria fazer? – Pensava. À medida que o caminho ia sendo percorrido, o local começou a parecer-lhe familiar, pois tinha trabalhado por ali como vendedor. Aí Dionísio falou:
- Aqui eu já conheço. Logo ali é a estação de São João. Se atravessarmos a cancela em frente, saímos na Pavuna. Se formos para a direita, na próxima cancela, volto para Ricardo. Certo?
- Ótimo. Já que você não quer curtir a noite e não vai mais se perder, pare o carro que aqui eu fico.
Dionísio parou na esquina da encruzilhada, da rua com a linha férrea. O sujeito lhe deu uma nota de cem reais para pagar sessenta e três, e desceu. Quando ele virou para dar o troco, a porta continuava entreaberta e o misterioso passageiro caminhava no meio da encruzilhada.
Era exatamente meia noite.
Como fumaça Dionísio viu seu passageiro sumir na escuridão. Olhou rapidamente para todos os lados e nada, o local estava deserto e muito escuro. Assustado, ainda pode ouvir aquela mesma voz dizer:
- A vida é curta. Beber, fumar e transar faz parte dela. Aproveite.
Nada mais ouviu, além de uma risada sinistra, mas aquele perfume de flores ainda pairava no ar, mais forte do que nunca.
Fernando Antonio Pereira
Enviado por Fernando Antonio Pereira em 16/09/2019
Reeditado em 17/09/2019
Código do texto: T6746747
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