O velório

Começava a disputa familiar pela herança de Damasceno, um rico e poderoso fazendeiro do estado de Goiás. Típico matuto do interior, mas que de bobo nunca teve nada.
Mal acabara de falecer. Seu corpo ainda estava sendo velado numa das capelas existente no pequeno cemitério da cidade de Baliza, localidade quase na divisa com Mato Grosso, e a luta já se mostrava ferrenha. Parentes que em vida nunca o visitaram, agora chorosos se faziam presentes na pequena capela, afinal tinham que dar o ar da graça, pois logo seria lido o inventário deixado pelo morto. A impressão que dava era que o local tinha sido reservado exclusivamente para aquele velório, pois não havia outro defunto.
A maioria dos que ali estavam, chorava falsamente, entretanto o defunto sorria. Sim, você leu corretamente, – o defunto sorria – e se leu certo, deve estar agora intrigado e se perguntando: Porquê sorrindo? É simples, mas terá que continuar com a leitura para descobrir o porquê desse sorriso.
Aquele encontro estava longe de ser um funeral ou uma cerimônia religiosa tradicionalmente adotada para a despedida de um ente querido logo após sua morte. Mais parecia uma reunião festiva, onde cada um ostentava o máximo de joias, que podia usar, para dar a entender que da herança deixada, não precisavam e não estavam interessados. Enfim, uma coisa insignificante e de segundo plano. Na verdade, só aparência, pois o que queriam mesmo era saber quanto tinha tocado para cada um deles.
O tempo passava e o defunto continuava sorrindo, para alguns pareceu até que o sorriso havia se acentuado.
Por volta da meia noite, seis homens fortemente armados entraram rapidamente no recinto. Quatro deles, se dispuseram estrategicamente pelo local, enquanto os outros dois anunciavam se tratar de um assalto e automaticamente foram recolhendo os pertences de valor. A ação foi tão rápida que não houve reação. Ao terminarem, um dos ladrões pediu a atenção dos presentes.
- Senhores... Senhoras... Devem estar lembrados de que quando nós entramos, eu anunciei que era um assalto. Certo?
- Ninguém aqui é surdo, e muito menos idiota. E claro que lembramos. – Respondeu um dos presentes, que nem parente era.
- Pois bem. Gostaria muito que não entendessem dessa forma e não registrassem queixa na delegacia deste roubo.
- Então você acha que pode entrar aqui, nos roubar, sair e viver como se nada tivesse acontecido? – Reagiu o mesmo que falara anteriormente.
- É isso o que quero que todos entendam. O que aconteceu aqui não foi um roubo, mas sim o pagamento de algumas dívidas, de jogo, que o senhor Damasceno deixou na praça.
- Você além de ladrão é um gozador. – Reclamou um dos filhos do morto.
- Não reclamem comigo. Reclamem com o morto.
- Além de tudo você deve ser louco, para fazer uma sugestão dessa. – Um outro filho deixou no ar a afirmação.
- Engano seu, Altair. Fazermos esse assalto no dia em que ele estivesse sendo velado foi ideia dele mesmo. Ele nos garantiu que todos os presentes estariam com dinheiro e portando tantas joias que daria para saldar todas as suas dívidas. Sou obrigado a concordar que ele estava com razão. A dívida está totalmente paga.
Dizendo isso, saíram como entraram; – rapidamente.
Os ladrões, além de levarem todo o dinheiro e as joias dos familiares, comeram e beberam o lanche que os parentes e amigos tinham levado para passar a noite no velório, deixando-os morrendo de raiva e também de fome.
Quando tudo serenou puderam constatar mais uma vez, que o defunto continuava sorrindo. Começaram a atribuir aquele ar de riso, ao constrangimento e susto que acabaram de sofrer com o roubo encomendado por ele.
Pela manhã acharam muito estranha a presença do padre da pequena cidade, uma vez que Damasceno era ateu, e para completar a surpresa ele estava acompanhado do Arcebispo de Goiânia. Afinal, quem e porquê os teriam chamado ali.
Não dando importância à surpresa e incredulidade dos presentes, o padre Alvarez foi logo cumprimentando um a um e em seguida aproveitou para apresentar o Arcebispo.
- Caríssimos fiéis. Gostaria imensamente de neste momento dizer algumas palavras em sufrágio da alma do nosso querido Damasceno, porém deixarei essa honra para que Dom Aloísio, nosso Arcebispo, o faça.
Feita a apresentação o religioso tomou imediatamente a palavra.
- Meus irmãos, eu sei que não devia dizer isso, mas não vejo outra maneira de expressar todo o nosso contentamento, não só meu, mas de toda a igreja. Nós tivemos o privilégio e a graça de conhecer o senhor Damasceno. Homem íntegro e de caráter nobre. Eu tenho certeza de que assim que vocês tomarem conhecimento de quem realmente foi esse nosso irmão que acaba de fazer seu desenlace, também se sentirão orgulhosos de terem convivido com ele.
Como todo religioso que se presa, Dom Aloísio aproveitou o momento para dar vazão aos seus dotes de oratória. Falava muito, mas não chegava aos finalmente, e isso estava deixando os parentes cada vez mais curiosos em saber o tamanho da integridade e da nobreza do velado. Até que não aguentando mais tanta falação e querendo dar um basta naquilo tudo, Altair, um dos filhos perguntou:
- Dom Aloísio. Convivi com meu pai durante toda sua vida. Dia após dia, noite atrás de noite. E pelo que sei, ele sempre deixou bem claro a sua posição religiosa; – ele foi um ateu convicto. Muito me espanta essa sua rasgação de seda para com alguém que nunca frequentou sua igreja e muito menos acreditava no seu Deus?
- Por isso mesmo, meu filho. Esse homem durante toda a sua existência teve posição contrária a nós, entretanto nos últimos momentos de vida deu-se conta do quanto estava errado em negar o Divino, e num ato de total desprendimento nos procurou e doou todos os seus bens. Sua fazenda em especial deixou para que a igreja fizesse dela a morada dos necessitados, e nela montasse uma escola que ajudasse seus filhos a alcançar a sabedoria. Sinto-me orgulhoso de tê-lo conhecido em vida e digo com toda certeza, que Deus o está recebendo de braços abertos no céu. Agora que todos tomaram conhecimento do que este grande homem fez, espero que a paz possa estar presente no coração de todos.
Com essas palavras, assegurando a Damasceno sua entrada no céu, pareceu aos olhos dos presentes que o defunto sorria mais ainda. Agora só restava saber se esse sorriso era por sua entrada no paraíso ou porquê havia pregado aquela peça em todos.
Ninguém acreditava no que acabara de ouvir. Mas era o Arcebispo que falara, então não podia ser mentira, pensava a maioria.
O enterro estava marcado para as quatro horas da tarde. Altair desesperado, por saber não ter mais direito a nada, resolveu ir até ao cartório da cidade, precisava por a limpo aquela história. Lá constatou que realmente seu pai havia doado tudo o que tinha para a Arquidiocese, que era a responsável pela administração da fundação religiosa. Voltou ao cemitério e confirmou a todos o que tinha sido dito pelo Arcebispo.
Não ficou ninguém para assistir ao sepultamento de Damasceno, mas quando o caixão desceu ao túmulo, uma forte gargalhada foi ouvida no cemitério se misturando com a dos coveiros, que acabavam de saber da história.
Fernando Antonio Pereira
Enviado por Fernando Antonio Pereira em 19/09/2019
Reeditado em 01/03/2020
Código do texto: T6749166
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