Fogo eterno

“Sol brasileiro! Queima-me os destroços!

Quero assistir, aqui, sem pai que me ame,

De pé, à luz da consciência infame,

À carbonização dos próprios ossos!.”

Augusto dos Anjos

O fogo queima tudo, menos o passado. Eu pensava nisso enquanto bebíamos e jogávamos sinuca, entre arrotos e palavrões. Durante a partida, recostara-se no taco sabendo que nosso amigo João estava demorando a chegar. Eu o conhecia há pouco tempo, mas era como se já o conhecesse há décadas. Veio do norte de Minas, segundo dizia, e pouco nos disse depois. Apenas vinha para o bar, pegava o taco, pedia uma cerveja e olhava para o balcão como nos desafiando para qualquer coisa ou para jogar.

Ultimamente eu imaginava que ele não estivesse muito bem da cabeça. De uns tempos para cá andava bem mais quieto do que sempre foi. Chegava ao bar, sentava no canto com uma cerveja na mão e os olhos fundos de silêncio. Outro dia chegamos bem cedo e o vimos jogando sozinho. Que fosse para treinar, pensamos. O dono do bar nos segredou depois que não. Que João falava às paredes e chamava a si mesmo ora de José ora de João e dava tacadas, jogando contra si ou a favor de si, ele não soube explicar. Só pode estar louco, eu disse para os amigos naquela manhã. Ou será que era excesso de solidão?

Em casa cheguei a cogitar que na solidão deve existir algum prazer, senão muita gente não escolheria esse modo de vida. A menos que a pessoa esteja doente, endividado ou com o coração partido eu não consigo entender o motivo de se ficar sozinho. Mas, entre o que eu entendo e o que, de fato, significa a solidão para o solitário há uma distância enorme. Na minha cabeça calculista e pueril sempre entendi a solidão como um jogo perigoso e sem vencedor no final, aliás como é a vida. Em resumo: como eu não era João eu achava que João estava louco.

-Que louco, que nada! Disse Roger dando uma tacada violenta e encaçapando duas bolas seguidas. Aquele sujeito tem é remorso, prosseguiu ele. Semana passada ele me contou que era um filho pródigo. Tinha deixado pai e mãe em Minas Gerais e veio para longe gastar a parte que lhe coube. Eu, de boa vontade, ajudei ele a beber uma pequena parte da herança naquele dia.

O dono do bar nos olhava intrigado sem dar a sua opinião. Passava um pano úmido no balcão de madeira e ouvia atentamente. Depois, completou o estoque de cervejas do freezer e saiu para os fundos do estabelecimento.

-Parece mais um recluso, um criminoso, falou Paulão do outro lado da mesa de bilhar. Além do mais, quando não estava bebendo, estava rabiscando palavras numa agendinha de bolso. Palavras cruzadas, ideias cruzadas, sei lá.

Passando o giz na ponta do taco e esmagando o cigarro no cinzeiro eu disse para os amigos que ele era um mineiro tímido. Roger afirmou que eu havia dito um lugar comum. Heleno me garantiu que era só preconceito mesmo. Nos olhamos e demos de ombro. Recomeçamos a partida, observando a disposição das bolas sobre a mesa. Depois de uma tacada errada e de um suspiro profundo Heleno comentou:

-Acho que o João é um homem cheio de boas intenções e maus resultados.

Paramos. Descansamos os tacos, demos a volta à mesa. Fiz questão de pegar a cerveja e encher o copo dele. Acredito que todos falaram pela minha boca:

-Qual é a intenção dele, afinal?

Bebericando vagarosamente a cerveja, Heleno se dirigiu à porta do bar. Olhava as pessoas na rua e cutucava o nariz. Por fim, voltando-se para nós disse:

-Não dar trabalho a ninguém.

Paulão soltou uma gargalhada. Roger balançou a cabeça e eu, tomando de uma só golada a cerveja do copo, falei com ironia:

-Espero que ele consiga.

Duas horas mais tarde a gente soube que ele não conseguiu. Um pouco antes estávamos na calçada, pegando o sol das nove e meia, vendo as pessoas que vinham da periferia para o centro e ouvindo Amado Batista. Foi assim que, de repente, como se estivessem fugindo de uma vaca brava, pessoas passaram por nós correndo. Alguém gritava:

-Fogo, fogo, incêndio!

Um incêndio numa cidadezinha do interior é um acontecimento social. Os cidadãos desocupados, que somos nós, corremos para lá. Chegamos bem antes que muita gente. A fumaça espessa que saía do Hotel em chamas esparramava-se pela rua. Algumas paredes desabavam com um baque surdo, tijolos queimados fumegavam.

Tossindo e abanando fomos nos aproximando daquela massa quente. A curiosidade é maior que a prudência e assim, de camisas abertas e caras fechadas, chegamos perto. Foi o suficiente para notar que dentro de um dos quartos, sobre as cinzas de uma cama, tinha o esqueleto de uma pessoa deitada de boca aberta.

Nós abrimos a boca também, e as lágrimas chegaram bem antes que a polícia. Aquele homem era o nosso amigo e não havia nada mais que pudéssemos fazer. Ficamos parados como se o morto fôssemos nós. Fomos despertados pelos gritos alucinados do dono do hotel que dizia não ter seguro do mesmo.

Continuamos olhando e vimos as paredes chamuscadas da construção. Na rua a aglomeração era total. João, que não gostava de se expor, movimentou com sua morte muito mais gente que a maioria de nós movimentaria em vida: bombeiros, polícia, comerciantes e alunos do ensino médio.

Falava-se entre a multidão aquilo que já sabíamos: Que João bebia demais e fumava sem parar. Viram garrafas, litros e latas por todo o quarto. A perícia encontrou também entre os dentes queimados e a língua carbonizada um filtro do seu último cigarro.

Quando os bombeiros e a perícia deixaram o local soprava um vento morno e malcheiroso que, durante algum tempo, manteria acesa a brasa de nossas lembranças. Viramos as costas e saímos do lugar enquanto a funerária procurava juntar o que restou de João.

Uma semana depois as únicas brasas acesas eram as dos nossos cigarros. No céu o sol estava pálido devido a algum incêndio nas pastagens – o que era prática comum entre os fazendeiros do estado. Poucos carros transitavam. Pessoas passavam devagar. Saímos da calçada e entramos no bar. A mesa de bilhar estava livre e nós também.

make
Enviado por make em 06/12/2019
Reeditado em 09/12/2019
Código do texto: T6811991
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