Eles virão por nós
Jeff havia voltado da patrulha mais silencioso do que o costume. Acendeu um cigarro e ficou sentado do lado de fora da tenda de campanha, pensativo.
- Dia ruim? - Indaguei, ao passar por ele.
- Matamos dois VCs na selva, hoje - redarguiu, me encarando.
- Antes eles do que vocês, não é? - Avaliei.
- Normalmente, sim... mas estes estavam com cartões do Chieu Hoi. Eram desertores.
Havia um programa de incentivo à deserção entre os vietcongues, o Chieu Hoi. Basicamente, consistia em jogar folhetos de propaganda sobre a selva - e espalhar cartões plastificados de salvo-conduto em lugares onde poderiam ser encontrados pelos guerrilheiros norte-vietnamitas. Teoricamente, a integridade de um guerrilheiro portador de um desses cartões seria respeitada, e havia até mesmo a possibilidade de que passassem a servir ao exército dos Estados Unidos, como guias. Na prática, nossos soldados não davam a menor importância aos tais salvo-condutos, e atiravam em eventuais desertores.
- Ordens do sargento - discorreu Jeff. - Ele disse que muitos desses desertores são espiões, e que na primeira oportunidade fugiriam de volta para os VCs.
- Na dúvida... - ponderei.
- Não gosto de atirar em gente desarmada - comentou Jeff, olhar perdido na selva.
- Aqui, não sabemos em quem se pode confiar. Se não for um dos nossos, melhor gastar uma bala - insisti.
- Se formos levar esse raciocínio adiante, teremos que matar todos os vietnamitas - retrucou Jeff. - Essa é a terra deles.
- Da mesma forma que o nosso país era dos índios antes dos ingleses desembarcarem - minimizei.
- Nós não estamos aqui como colonos, mas como soldados - refutou Jeff. - Não há como traçar um paralelo.
- Enfim, viemos fazer o nosso trabalho que a cada dia se parece mais com enxugar gelo - argumentei. - Que vocês tenham se livrado de dois VCs hoje, é a certeza de que não virão nos assombrar amanhã.
Jeff me olhou de um jeito estranho.
- Como se não tivessem alma? - Indagou.
- Como? - Redargui intrigado.
- Não virão nos assombrar por que não têm alma?
Balancei a cabeça, penalizado.
- Você está mal, cara.
- Nos nossos sonhos - retrucou ele, dando uma tragada no cigarro. - Eles voltarão nos nossos sonhos...
- [16-02-2020]