Quarentena

Depois de nove dias de confinamento, eu quase posso dizer que já não a suportava mais, pouco antes de precisar dividir a mesma casa, confinados e durante tempo indeterminado, eu já estava considerando a separação, haviam sido sete longos anos, os primeiros três anos foram ótimos, os dois seguintes foram quase indiferentes e os dois últimos foram anos que talvez, eu oculte das histórias que contarei no futuro.

Ela caminhava de lá pra cá, mais especificamente para os cômodos onde eu não estava, havia se tornado uma rotina programada, se eu estava na cozinha, ela ia para sala, se eu ia para sala, ela ia para o quarto e se eu ia para o quarto, ainda que fosse para dormir, ela achava que era uma hora conveniente para fazer uma boquinha na cozinha.

Aquilo aos poucos ia me enfurecendo, da minha parte tinha apenas uma certa indiferença com relação a ela, depois de certo tempo, eu não sorria mais ao ver ela chegar ou passar por mim; mas da parte dela, eu quase podia sentir um nojo nos olhos dela, como se ela quisesse me afastar de qualquer forma, eu me sentia muito mal ao ter ela por perto, pois eu sentia os olhos dela sobre mim, ou sem sentir vontade de colocar eles sobre mim.

A impossibilidade de poder ter a atenção dela quando eu procurava me comunicar com ela me deixava frustrado, em soma, a forma absurdamente ríspida com o qual ela se referia a mim me enfurecia absurdamente.

Durante um café da manhã, eu fiz uma tentativa de me comunicar, comentei sobre um filme que havia assistido quando fui deitar, filme esse que ela não viu pois estava na cozinha, falando com alguém… Ela simplesmente disse que não gosta dos filmes que passam naquele horário daquele canal, algo um tanto amplo na minha opinião, podia dizer apenas que não gostava do filme em questão, mas a resposta já anulava toda e qualquer opção de conversa. Dito isso, ela tomou um grande gole de café e disse que precisava ir à farmácia… Ela não precisava, eu havia ido no dia anterior, antes que eu tivesse feito essa consideração em minha cabeça, ela já havia saído porta à fora, eu não consegui terminar o café, joguei fora a metade de um pão e uns três dedos de café com leite.

Aquilo havia sido uma mistura de frustração e raiva, de fato, eu só joguei aquele pingado fora, pois não consegui quebrar a caneca a apertando-a movido pela raiva. Respirei fundo e tentei ir para o sofá descansar um pouco. Com pouco mais de uma hora, ela voltou com uma sacola com algumas compras, pão de forma e alguns frios, nada que devesse vender em uma farmácia. Olhei para a sacola e levantei os meus olhos para ela, como se quisesse dizer bem próximo dela, “você mentiu!” Mentiu sobre ir a farmácia para ir ao mercado, isso nem tem qualquer relevância, mas eu sentia uma vontade real de dizer isso, naquele momento, eu entendi que na verdade eu queria iniciar alguma briga, alguma coisa para colocar toda aquela frustração e raiva para fora.

Perguntei então, se a farmácia estava muito cheia e por isso ela desistiu de ir lá e como havia saído resolveu ir ao mercado, o que seria algo minimamente compreensível no meu ponto de vista; em contra partida, ela disse que não se lembrava de ter dito que ia a farmácia, que lembrava ter dito que queria apenas comprar umas coisas, eu sabia que ela havia dito que iria a farmácia e eu admito que usei essa desculpa esfarrapada para começar uma discussão com ela, falamos, aumentamos o tom de voz e com pouco, estávamos aos gritos e ofensas; para tudo o que eu dizia, ela mais me cortava do que me respondia, sem contar que durante a discussão eu precisava ficar caçando ela pela casa toda, assim que entrei no quarto, ela simplesmente esperou que eu deixasse a porta livre para passar, em direção a cozinha como de costume.

Assim que ela saiu do quarto, eu respirei fundo e olhei para o teto, tentando acalmar o coração que batia em disparada, sem o sucesso esperado, eu fui em direção a cozinha também, aquela discussão ainda não estava acabada, eu tinha muita coisa engasgada para falar, cheguei a cozinha continuando do exato ponto onde eu parei, respirando mais entre as palavras, tentando manter a calma, com o coração ainda acelerado e enraivecido eu olhei ela se afastando em direção a sala e num impulso, fui a té a pia e peguei a caneca onde eu havia quase bebido o meu café com leite e num movimento quase automático, atirei ele contra a cabeça dela, a força foi tamanha que o objeto se estilhaçou ao entrar em contato com a nuca dela; ela não teve tempo de gritar, ou gemer, ela já caiu desacordada, mas não estava morta, no entanto naquele momento o meu coração se acalmou, começou a bater mais devagar e a minha respiração havia voltado ao normal, olhei ela no chão enquanto o sangue que escorria da cabeça dela corria entre as partes mal rejuntadas do piso, eu olhei fixamente para ela, naquele instante o celular dela vibrou no bolso da calça, resolvi pegar para ver quem era, poderia ser alguém esperando alguma mensagem, ou ligação, quando abri a tela do celular havia uma mensagem, um amigo que estava agradecendo pelo encontro no exato momento em que ela disse estar indo a farmácia… Naquele momento, eu senti uma certa satisfação ao vê-la no chão e desacordada.

Voltei para a pia e ao lado dela havia gaveta dos talheres, onde eu peguei uma faca de cortar carne, fui em direção a ela, achei que era prudente terminar o trabalho, por efeito de reduzir a bagunça, eu arrastei o corpo dela até o banheiro e decidi terminar o processo cortando o pescoço dela e em seguida liguei o chuveiro… Ela ainda está num canto do banheiro e apesar do mau cheiro, a quarentena tem sido mais sossegada desde então...

Henrique Sanvas
Enviado por Henrique Sanvas em 02/04/2020
Reeditado em 29/08/2020
Código do texto: T6904039
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