Não é um bom presságio

Não é um bom presságio

Foi um sonho inquietante e asqueroso. Ele acordou com a sensação do sangue fresco escorrendo pelos dedos e bateu a mão na parede para que a luz enchesse o quarto. Sem marcas vermelhas no interruptor, mãos completamente limpas.

Na manhã seguinte, sentia uma angústia anormal e a cada passo preguiçoso até a cozinha, lembrava do maldito sonho. Esquentou um pouco de água sem deixar ferver e numa xícara colocou uma colher de açúcar e uma de leite, adicionando o pó de café e a água morna. Abriu um pacote de torradas insossas e já murchas, sentou frente a televisão e sincronizou no jornal matinal de costume. Não prestou atenção nas notícias, concentrado no café claro e na torrada que soltava farelos em demasia, até que a repórter anunciou um crime excepcionalmente sangrento. Olhou de imediato para suas mãos procurando vestígios de vermelho. Entre os dedos, farelos brancos, nada de sangue.

Não é surpreendente que um sonho perturbador persiga uma pessoa durante alguns dias. Mas para esse homem em particular, era improvável demais ter qualquer tipo de sonho. É um homem morno, como a água do café que toma todos os dias. Murcho e insosso em sentimentos e expectativas como as torradas de má qualidade que come. Rotineiro com seus horários de levantar-se e acostar-se, como o jornal diário que não atrasa para ir ao ar. Esse homem mediano em todos os aspectos não costuma sonhar, quem dirá ter um pesadelo ambientado em um açougue sujo, segurando carne crua e recém retirada da carcaça pendente do teto.

Tomou o ônibus no horário correto com o motorista já conhecido e sentou no décimo assento à esquerda, o qual marcava o centro do transporte, longe o suficiente da janela frontal para não ser atirado por ela e longe da parte traseira para não receber o choque nas costas, ambas possibilidades em caso de colisão. Contou quinze paradas, levantou-se na décima sexta e acionou o sinal; desceu na décima sétima e seguiu até o trabalho.

Já na sala cinza e iluminada demais pelas lâmpadas de Led, visualizou seu lugar entre os compartimentos individuais separados por placas de acrílico e sentou-se em seu próprio quadrado. Ouvia o arranhar das canetas de seus colegas e os montes de papéis sendo impressos enquanto distribuía seus carimbos nas folhas ainda quentes de impressão, calculando o melhor ângulo para fixar a tinta. Passou assim as duas horas iniciais.

— Você tem uma caneta vermelha? — A voz do companheiro à direita chamou sua atenção.

Caneta vermelha. Tinta brilhante como o sangue fresco.

— Desculpa, só azuis.

O homem não disse nada. Ele tampouco, manteve-se quieto e de forma inconsciente errando o ângulo apropriado para os carimbos enquanto revivem o sonho.

— Escuta - disse virando e olhando homem que pediu a caneta sob a fina estrutura de acrílico - Você já sonhou com carne crua?

— Carne crua? Nunca. Mas existem sites que descrevem os significados dos sonhos. Não sabia que você acreditava nessas coisas.

— Não acredito - respondeu de forma defensiva.

E realmente não acreditava. Esse homem não tinha crenças ou qualquer tipo de sensibilidade. Tão pouco era curioso, mas aquilo dominou seus pensamentos até a hora do almoço.

Quando o relógio marcou o meio-dia, correu para o banheiro com o celular em mãos. Suava frio dentro da cabine, os dedos tremendo enquanto digitava sobre sonhos com carne crua. "Não é um bom presságio". Todos os possíveis significados apontavam para uma tragédia ou traição iminente. Não tinha gente próxima o suficiente para ocasionar uma traição, então sobrava a tragédia. "Eu não acredito nessas coisas. Nada vai acontecer".

O resto do dia no escritório foi corriqueiro, um louco gritando a esquerda por não aguentar a monotonia, outro avisando que o papel tinha acabado de novo. Faltando exatos dois minutos para o fim do expediente, uma chuva torrencial se fez escutar. Suspirou entediado, outro dia enfrentando a roupa grudando de tanta água em decorrência do ponto de ônibus sem cobertura.

Apertou o botão do elevador, mas ele não chegava. Cinco minutos depois, ouviu um cochicho sobre falta parcial de energia. Uma ponta de desespero se fez presente, tomou a saída de emergência e correu pelas escadas dos dez andares. Não podia perder o ônibus, quebrar a rotina.

Era tarde demais, afinal. Conseguiu ver a traseira verde do ônibus virando a esquina e o coração acelerado do esforço saltou em completa aflição. Sentia as gotas espessas de chuva pesarem no terno e algumas escorrendo do cabelo como unhas finas resvalando pelo pescoço. "As coisas realmente estão saindo do comum" pensou olhando a avenida, implorando com o olhar para que magicamente seu ônibus aparecesse, com o décimo lugar livre e o motorista careca e velho para reclamar de mais um passageiro molhando o transporte.

As súplicas silenciosas não surtiram resultado. Outro ônibus apareceu meia hora depois, quando a chuva já demonstrava sinais de trégua. O motorista que cobrou sua passagem tinha cabelos demais e todos os assentos centrais estavam tomados. Sobrava apenas o primeiro. Sentou horrorizado, apertando a gravata molhada num movimento de dedos ansiosos. O trânsito não estava caótico, mas o coração não parecia entender isso, batia como se estivessem numa corrida cheia de adrenalina.

Faltava apenas uma quadra para chegar em sua rua quando ele soltou um sorriso irônico e pensou sobre o quanto o site de significados de sonhos era idiota. A volta foi atípica, mas tranquila e rápida. Que tragédia poderia acontecer dentro de casa? Obviamente nenhuma.

Ele começou a levantar para apertar o sinal de parada, sentindo a calça úmida prender no assento de plástico quando escutou os pneus gritarem, sentiu um solavanco e os pés deixarem o chão. Foi o primeiro a ser lançado pela janela frontal quando o ônibus não conseguiu frear na pista escorregadia e ser atingido por um caminhão de eletrodomésticos.

Deitado no meio da avenida, ele escutava as sirenes, sentiu o cheiro de pneu queimado e a quentura da água abaixo do corpo temperando o asfalto frio. Não conseguia abrir os olhos, mas ouviu os passos apressados aproximando-se.

— O senhor consegue me ouvir? Lembra do que aconteceu? — O paramédico soltava os equipamentos de primeiros socorros e fazia o contato indicado.

O homem deitado abriu os olhos cinzentos como o céu magoado pela chuva e levantou a mão arranhada de cacos de vidro, escorrendo sangue fresco.

— Lembro. Eu sonhei com carne crua.

Alicia Cintra
Enviado por Alicia Cintra em 10/04/2020
Código do texto: T6912680
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