A Companhia

Ela nunca me abandonou. Sempre estivera perto de mim como uma leal companheira. Sorrateira, surgia sutilmente até mesmo em meus momentos mais íntimos, parecia incapaz de tolerar uma só experiência minha sem a sua presença marcante.

Talvez sofresse de algum tipo de ciúme doentio, afinal, ela sempre fez de tudo para me manter afastado dos outros. Torturava-me emocionante de tal maneira que me fazia desejar a dor física. Só me libertava da agonia quando finalmente estávamos à sós, mais uma vez.

Não há dúvidas de que nossa relação era, no mínimo, desgastante, mas não me atreveria a ser tão injusto com ela. Não há ninguém neste mundo que me conheça tão bem. Seja em meus festejos eventuais, seja em minhas frustrações habituais, ela sempre esteve lá, ao meu lado, ainda que quase ninguém a notasse.

Aprendemos muitas coisas juntos, quase sempre nos questionando e discutindo os fatos. Nosso dia a dia é uma sequência bizarra de crises e brigas, mas também de afeto, sabedoria e conforto. Consigo tocar a minha vida, cumprir meus afazeres, e admito que essas ocupações são ótimas para tirar algum tempo só para mim. Creio que todos mereçam ter o seu espaço, ainda que raras vezes. Ela, por outro lado, não parece entender isso.

No final das contas, entretanto, acabamos nos dando bem, e já estamos assim há um longo tempo. Se me perguntassem quando essa história começou, eu realmente não saberia dizer. Algumas coisas acontecem naturalmente, sem qualquer sombra de avisos ou planejamentos. E, convenhamos, são essas coisas que costumam perdurar, gostemos ou não.

Confesso, no entanto, que me sinto mal ao olhar para trás. Talvez seja um óbvio desperdício lógico e emocional, mas é inevitável me questionar como teria sido a minha vida se ela não estivesse sempre ao meu redor me limitando, me diminuindo, me sugando. Muitas vezes não pude me compreender de outra forma, se não como um fantoche. Fui obrigado a fazer exatamente o que não queria, dizer o que não sentia. Tudo isso para não ter que lidar outra vez com a sua fúria e violência.

Mas, afinal, que saída tenho eu? Ela conhece todos os meus defeitos, é testemunha de todos os meus erros. Estou inteiramente nu diante dela, entregue aos seus pés. Me pego pensando às vezes: será possível existir uma pessoa tão cruel e, ao mesmo tempo, tão sedutora? Provavelmente seria mais fácil resolver essa situação se pudesse encará-la de frente. Infelizmente esse não é o meu caso. Eu, simplesmente, nunca a vi e, se ainda me encontro em posse das minhas faculdades mentais, posso afirmar que ela nunca existiu.


* * *
Coletânea Ditos e Feitos - 2020
Recanto das Letras

Créditos da imagem: “Stress Monster” by John Kenn Mortensen