Frágil

Sabe quando você acorda e sente que não deveria sair da cama? Esse era um desses dias, mas você se levanta. Tem obrigações a cumprir, eles dizem, então tem que estar em pé não importa o quanto você as odeie. Se elas fossem uma pessoa você a torturaria durante dias e a mataria com um sorriso no rosto. Elas, porém, não são, então você as cumpre.

Você coloca os seus fones de ouvido, espera o ônibus e sobe nele. A partir desse momento você passa a ouvir um “poc” a cada passo que dá. Você senta e confere os seus sapatos. Eles estão limpos. Na metade do caminho, começa a ouvir o mesmo barulho a cada vinte segundos mais ou menos, mas levanta a hipótese de que pode ser algo quebrado no ônibus. Mesmo assim, tem medo que isso possa ser uma doença ou alguma outra coisa errada com o seu corpo. Quando sai do ônibus, o barulho está cada vez mais frequente e a sua cabeça cada vez mais impaciente. Começa a apressar o passo como se pudesse fugir do som. Você não pode. O som continua pipocando em sua mente cada vez mais alto e deixa impossível de ouvir o que está ao seu redor. No momento em que estava em frente ao prédio do seu trabalho, fechou os olhos com força, tampou um de seus ouvidos vigorosamente com uma das mãos, empurrou a porta com pressa e entrou velozmente. O barulho parou.

Você demora para abrir os olhos porque tem medo do barulho voltar. A paz que o seu espírito sente parece com os efeitos de uma droga forte e te traz uma leveza que há muito tempo não sentia. Mas as suas velhas inimigas, as obrigações, continuam sussurrando que você tem que abrir os olhos para voltar ao trabalho e as cumprir. Pouco a pouco, esse sussurro começa a incomodar e você abre os olhos porque acha que é o certo a se fazer. A luz vai entrando lentamente, ofuscando os seus olhos e causando um incomodo estranhamente satisfatório, mas as suas retinas vão gradualmente se acostumando com o brilho.

Você enxerga. Não está no prédio onde trabalha. Você vê a cidade toda. Fica encantado com a paisagem, principalmente pelo contraste entre o azul do céu e as pálidas nuvens brancas. Percebe que está flutuando. Está muito alto. Algo transparente e frágil como uma bolha de sabão está te transportando. Você não sente medo, só encantamento e paz. Mas lentamente os seus pensamentos voltam a pensar normalmente e os “comos” e “por quês” inundam a sua mente em uma enxurrada devastadora. O encantamento se perde e o medo de cair daquela altura começa a apertar o coração.

Você gostaria que a bolha tivesse um volante, um guidão ou algo tipo ao olhar para o horizonte e perceber que uma grande tempestade está se formando. Mas como não tem, começa a pensar em maneiras de manobrá-la e evitar o difícil destino. O medo, que só aumenta, tenta te paralisar, mas você luta. Inutilmente, você tenta soprá-la para ver se ela se move de alguma maneira para outra direção. Até pensa em tocar nela, mas tem medo que, em sua fragilidade, acabe estourando e te faça cair. Medo por medo, preferiu esperar pela tempestade e torcer para que a sua bolha passe intacta.

Você sente as primeiras gotas da tempestade furando a bolha e atingindo o seu rosto, mas ela continua firme. Mesmo sabendo que podia apenas torcer e que isso não fazia diferença, continuava seguindo com uma fé cega de que o destino estava ao seu favor. A chuva aumentava e gotas cada vez mais grossas passavam pela bolha, o colapso era eminente. Uma outra gota passa, a bolha finalmente não aguenta mais e estoura num estrondoso “poc” ensurdecedor. O escudo, que antes te protegia, vai desaparecendo em um piscar de olhos e terminando por sumir em um único ponto.

Você parece flutuar por um segundo depois que a bolha estoura e nesse segundo parece que tudo irá ficar bem, mas rapidamente você começa a cair. A linda paisagem vista no começo foi substituída pela escuridão e as gotas das lágrimas se confundiam com as gotas de chuva que continuavam a atingir o seu rosto. O vento, que não era sentido quando estava na bolha, se tornava agressivo na sua queda e o frio que vinha junto só trazia o desejo de que o chão chegasse mais rápido. Mas não sabia o tamanho da queda e só soube que terminou quando o seu rosto estava a um segundo de atingir o concreto. Nesse momento, ele fechou os olhos.

Quando viu que continuava pensando mesmo quando deveria estar morto, abriu os olhos. Estava na porta do prédio onde trabalhava e, depois de respirar fundo umas três vezes, voltou a cumprir as suas obrigações. Nesse dia, foi demitido e, embora tenha procurado qualquer outro emprego, ficou meses desempregado. Não conseguiu pagar o aluguel e foi despejado, tendo que morar com um amigo diferente a cada mês até não ter mais amigos a quem recorrer. Embora não percebesse, a sua realidade era frágil e num piscar de olhos estourou. Poc!