Contos de Minas - A Sina do Jorginho

Com a certeza quase igual a que se tem do nascer do sol, os moradores da localidade, todos os dias pela manhã, no mesmo horário, olhavam lá para a saída da cava funda na cabeceira do morro. Dia após dia, ano após ano, nunca falhava. Alguns tinham a curiosidade de saber quando aquela rotina terminaria.

Surgiu de lá da cava, pelo meio da estrada lá vinha o Jorginho. Nada diferente, o mesmo terninho azul turquesa, surrado ao extremo. Chapeuzinho coco na cor parecida com o terno. Usava uma gravatinha curta em cima da camisa branca, encardida e colarinho roído. Seu sapato era de bico arredondado, que transparecia ser duro e desconfortável.

A rotina fez o medo das pessoas deixar de ser um grande incômodo, mas as precauções continuavam e aumentavam na medida das histórias que alguém contava.

Os homens que trabalhavam nas roças ao longo da estrada, tratavam se embrenhar no meio da plantação ou se escondiam atrás de algum barranco ou arbusto.

O medo que tinham não se justificava na aparência do Jorginho, que era bem pequenino na altura e raquítico. Seus passos eram tão curtinhos, que a ponta de um dos pés não distanciava do calcanhar do outro pé.

Nenhum dos homens correria algum perigo se ele simplesmente lhes dissesse um bom dia ou uma boa tarde, mas aí daquele que olhando nos olhos ouvisse: “Bom dia amigo!” ou “boa tarde amigo!”

As mulheres se enfurnavam dentro de suas casas. Muitas chegavam a se esconder embaixo das camas. Elas sabiam bem que não podiam olhar o Jorginho de perto. Uma simples troca de olhar seria o início de seu tormento.

As crianças também fugiam e se escondiam em casa ou onde fosse possível não serem vistas por ele. Embora as advertências fossem renovadas todos os dias, elas pecavam por conta da curiosidade. Eram ensinadas a manter a precaução, para que no futuro não se tornassem vítimas.

Depois que ele passava, tudo voltava à normalidade. O ritual tornava a se iniciar no meado da tarde, quando ele retornava. A mesma coisa, ano a ano, a mesma coisa.

Obedientes a algo que parecia absurdo, ninguém questionava. Parece que tinham convicção de suas atitudes. Se existia essa certeza, é porque alguém já teria procurado saber a origem de tudo e encontrado uma explicação que os convencera.

Como sempre existe, ali também existiu um que achava tudo uma grande bobagem. Salvador era metido a saber das coisas. Resolveu que iria seguir os passos do homem e descobrir de onde vinha esse poder que ele exercia sobre as pessoas.

Um dia, quando Jorginho passou, tratou de segui-lo. De longe e com paciência, em razão da lentidão, facilitado pelo fato do Jorginho nunca olhar para traz. Seguiu-o estrada a fora até ele chegar na última casinha da colônia na fazenda de baixo.

Viu quando Jorginho se abaixou e pegou dois pratos de comida que estavam na soleira e depois entrou fechando em seguida a porta. As janelas estavam todas fechadas e assim permaneceram.

Aguardou até que Jorginho saiu e colocou os pratos vazios, no mesmo lugar onde estavam antes. Seguiu-o pela trilha que se iniciava logo depois da casinha, rumo ao rio. Viu ele se sentar embaixo do grande ingazeiro que ficava no barranco, bem onde o rio faz uma curva, formando uma lagoa e logo em seguida um redemoinho e uma grande cachoeira.

Salvador escolheu um local de onde pode ver Jorginho conversar com alguém que só poderia estar dentro d’água, quem ele, Salvador, não conseguia ver.

Jorginho falou bastante e depois chorou por um tempo, até que se levantou e tomou a trilha de volta. Entrou novamente na casinha e fechou a porta. Não demorou, saiu, fechou novamente a porta e rumou de volta para o lugar de onde viera.

Salvador, curioso, entrou na casinha com muito cuidado. Nada encontrou a não ser um pequeno banco de madeira e uma cama. Nada mais na casa, nem móveis nem pessoas. Agora a curiosidade era muito maior. Não conseguira explicação nenhuma. Falou ali com gente boa de prosa, mas quando se referiu ao Jorginho, só conseguiu silêncio.

Voltou para casa com muito mais coisas para desvendar. Estava convencido que só obteria algum êxito, lá no local onde Jorginho passava as noites.

Na tarde do dia seguinte, quando Jorginho passou de volta, Salvador o seguiu. Chegou à fazenda de cima já com o escurecer. Viu quando Jorginho entrou em uma das casas da colônia.

Tentou passar a noite na fazenda sem ser percebido, mas os cães não permitiram. Foi perseguido por eles até uma parte do caminho. Achou conveniente e acabou dormindo por ali, ao relento, encostado em um barranco úmido e sob o frio da noite.

De manhã, depois que o Jorginho passou, saiu do lugar onde estava escondido e rumou para a fazenda de cima. Foi até a casa onde Jorginho entrara na noite anterior. Bateu com insistência até que foi atendido.

Uma mulher bem velha abriu a porta e o convidou para entrar. Disse a ele que era meio irmã do Jorginho e narrou pacientemente tudo o que acontecera na vida de sua família.

Contou que na estrada lá na fazenda de baixo onde moravam, passava todos os dias há muitos anos um andarilho, e havia a crença de que esse andarilho fora amaldiçoado pelo pai, que não era de fato seu pai. Ele seria fruto de uma traição.

Sua maldição era percorrer o mesmo caminho por toda a sua vida. Teria que seguir a sina de seu pai verdadeiro, que perambulava pelas estradas. A maldição somente terminaria quando aparecesse alguém que o substituísse fazendo a mesma coisa.

Apenas dois jeitos existiam para que esse substituto aparecesse: Quando seu olhar cruzasse o olhar de uma mulher, o primeiro ou o próximo filho homem dela, nasceria exatamente igual a ele, e seguiria pela vida o substituindo nessa sina.

O outro modo seria quando um homem o encarasse e ele pudesse olhando nos olhos dizer: “bom dia amigo!” ou “Boa tarde amigo!” Esse então o substituiria já no dia seguinte.

Assim teria acontecido com sua mãe, que não acreditou no que diziam e permitiu que o andarilho se aproximasse e a olhasse nos olhos. Daí teria nascido o Jorginho. Quando seu pai se deu conta de que o menino não era seu filho, assassinou sua mãe e em seguida se atirou no rio, bem embaixo do ingazeiro.

Jorginho, nunca aceitou a morte da mãe, todos os dias tem que ir até lá dar almoço a ela. Pesado de culpa, vai até o rio pedir perdão ao pai, por ele não ter sido seu filho legítimo.

Alguém da fazenda de baixo, por misericórdia, entendendo o seu sofrimento, deixa os pratos de comida para que ele possa cumprir o ritual.

Salvador voltou e contou o que tinha ouvido. Em consequência da sua noite ao relento, ficou muito doente e faleceu em pouco tempo.

Sua breve morte fortaleceu a crendice, pois passaram a achar que o rapaz teria morrido, por conta de ter se metido na misteriosa vida do Jorginho.

JV do Lago
Enviado por JV do Lago em 11/07/2020
Reeditado em 21/01/2023
Código do texto: T7002700
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