A Jovem Dama

"Por favor, doutor, ven...ven...venha o mais rápido possível!" A jovem senhora chorava ao telefone.

"O que aconteceu, senhora? Preciso registrar a ocorência em meu diár-"

"M...me...meu so...sogro, el-"

"Senhora, se acalme! Soluça tanto que mal posso entendê-la!" disse o médico, já um tanto nervoso; nunca, em sua curta carreira, tivera de atender a um chamado tão urgente. "Estarei aí logo".

Ao chegar ao palacete barroco, localizado a aproximadamente três quilômetros do centro da cidadezinha, o médico e duas das enfermeiras que o ajudavam na clínica foram recebidos por uma das criadas que, apesar de não estar chorando, não escondia estar abalada. Logo ao abrir a porta, ela já começou a falar, "O senhor Mancini... " a pobre serviçal foi dizendo, andando em direção a um dos cômodos acessados pelo hall. "Ele...ele teve um infarto ou algum mal assim. Venham, venham rápido".

Estirado no chão da biblioteca de sua casa, com seu elegante sobretudo sujo do que parecia ser café e próximo a uns cacos do que se imaginava ser porcelana, lá estava o senhor Mancini, dono da fábrica de cigarros que, sozinha, gerava empregos e renda para toda a cidade de Garibaldi, além, é claro, de ser um dos homens mais ricos da região ou até mesmo de todo o estado. Sentada numa das muitas confortáveis poltronas do ambiente, a jovem dama que fizera a ligação estava em prantos. A governanta da casa, que também chorava, estava em pé ao seu lado, tentando prestar algum consolo.

Após alguns poucos minutos, o médico constatou o que já era óbvio e pediu para usar o telefone: precisava contatar a funerária existente no município vizinho e avisar a polícia - as autoridades precisariam tomar ciência sobre a perda de alguém tão influente.

"O delegado estará aqui logo" disse o jovem médico, colocando seu chapéu e apanhando sua maleta. "Já sabia que ele tinha problemas cardíacos, mas não imaginei que...que as coisas fossem tão sérias. Mantenham o corpo coberto aqui. Os agentes da funerária chegarão amanhã, pouco antes do começo da tarde. Preciso voltar à clínica para preparar o certificado".

Enquanto acompanhava o jovem médico e as enfermeiras até o pórtico, a jovem dama, que ainda estava inconsolável, mas já conseguia mostrar uma compostura parecida com a usual, notou que, na calçada, a alguns metros de distância da casa, uma pequena multidão de homens, mulheres e uns poucos operários da fábrica de cigarros, vestidos com seus macacões azuis, formavam uma aglomeração de algumas dezenas de pessoas. Ela também notou uns dois ou três repórteres do pequeno jornal da cidade. Eles, com suas câmeras enormes, não perderiam a oportunidade de tentarem conseguir o melhor ângulo para as fotos em preto e branco que estampariam a principal manchete da cidade.

Enquanto o médico e suas enfermeiras tentavam passar pela multidão, a jovem dama, agora parada no pórtico e acompanhada pela governanta, voltava a perder a pose e a se deitar no colo da tristeza. Os flashes das grandes câmeras fotográficas começaram a ser disparados com mais frequência neste momento e, alguns poucos minutos depois, quando duas viaturas chegaram e a elegante dama teve de receber o delegado, o burburinho só aumentou. Cidade pequena. Gente curiosa.

Já do lado de dentro, acompanhado por dois outros homens, o delegado parou no hall, próximo à entrada da biblioteca. Tirando o chapéu em sinal de respeito, começou, "Vejo que a senhora está muito abalada. Não acredito que esteja em condições de nos esclarecer como foram os momentos que sucederam a morte do senhor Mancini. Voltarei amanhã. Não é conveniente que a senhora vá até a cidade: será assediada não só pelos repórteres daqui, mas pelos das cidades vizinhas também".

Depois de dizer que muito lamentava e que dois policiais ficariam de patrulha em frente ao palacete, o delegado se virou de volta em direção à porta e, depois de um curto passo, virou-se novamente para encarar a jovem dama, que agora abraçava sua governanta, e acrescentou, "Seu marido já foi informado dos eventos de hoje? Toda a cidade sabe que ele viajou a São Paulo a negócios, mas não convém que a senhora fique sozinha".

"Ainda não, sen...senhor delegado. Fa...fare...farei isso logo" a jovem dama respondeu, ainda abraçada à governanta que, mais discretamente, também chorava.

"Tentem descansar. Sinto muito."

Na manhã seguinte, a jovem dama se levantou mais cedo que o usual. Vestiu um dos poucos vestidos pretos que tinha, maquiou-se e desceu em direção à sala de jantar para tomar o café que já havia sido posto. Enquanto descia as escadas, ouviu batidas na porta e viu uma das criadas abri-la. Era o delegado, acompanhado pelos mesmos homens que fizeram a patrulha em frente a casa durante a noite.

Depois de se comprimentarem, a jovem dama os convidou para, juntos, tomarem café. Antes de começarem a esclarecer os fatos sobre a morte do senhor Mancini, cujo corpo ainda jazia no chão da biblioteca da casa, a jovem dama comunicou aos senhores que já havia dado a lamentável notícia ao seu marido, Pedro Carlos Mancini, filho único e, portanto, herdeiro de toda a fortuna do falecido senhor. Ela também acrescentara que, de acordo com uma carta que havia sido recebida no dia anterior e que, inclusive, estava sendo lida por ela e pelo sogro no momento do fatídico acontecimento, o marido já havia deixado a cidade de São Paulo e se aproximava da fronteira com o estado do Paraná.

"Havia alguma outra coisa nessa carta que pudesse ter causado grande comoção ao senhor Mancini?" perguntou o delegado, servindo-se de uma grande fatia de bolo de cenoura.

"Não" a jovem dama, pondo um guardapo de linho branco em seu colo, começou a explicar. "Na verdade, o único motivo pelo qual eu estava lendo a carta junto ao meu sogro é referente ao fato de meu marido ter tido muito pouco tempo livre durante esta última viagem. Só enviava uma carta por semana e todas eram adereçadas a meu sogro e a mim. Não só a que recebemos ontem, assim como todas as outras, não dizia nada que pudesse aborrecer ou a meu sogro ou a mim".

"Por que cartas? Acredito que onde ele esteja hospedado haja telefone" inquiriu o delegado, dicidindo-se entra as diferentes opções de queijos postas sobre a mesa.

"Junto com as cartas ele mandava anexos de contratos com fornecedores de São Paulo e do exterior. Além disso, " A jovem dama bebericou um pouco de seu café, "era o modo como costumavam se comunicar antes do meu marido voltar ao Brasil".

"Bom, gostaria de ter acesso às cartas. Peço que não se incomode... " disse o delegado, lutando para conseguir falar e comportar o grande pedaço de bolo que enfiara na boca. "É apenas um procedimento de rotina. Seu sogro era um homem muito influente. É provável que a polícia da capital venha querer alguns esclarecimentos. Precisamos ter o máximo de informação possível em mãos".

Três dias depois, o sepultamento do senhor Mancini já havia ocorrido. Pessoas influentes e representantes dos governos da região apareceram na pequena cidade para prestar solidariedade a jovem dama que, no dia em questão, sozinha, recebera um telegrama do marido avisando que, por conta da morte e bloqueio momentâneo dos bens do pai, ficara sem dinheiro e não chegaria a Garibaldi a tempo para o sepultamento do próprio.

Cinco dias depois, Pedro Carlos finalmente conseguiu retornar à cidade. Deu ordens ao seu motorista para levá-lo direto ao cemitério, pois queria visitar logo a sepultura do pai no recém-construído mausoléu da família. No portão do cemitério, viu uma senhora vendendo flores. Comprou um simples ramalhete de narcisos, a flor predileta de sua mãe, e caminhou até o imponente jazigo. Não estava triste a ponto de se debulhar em lágrimas, mas sentia, resignado, a morte do homem que, por ter vivido tantos anos estudando na Europa, mal pode conhecer, mas que sabia, assim como todos daquela cidade, ter sido muito bondoso e generoso em vida.

Depois de passar a noite de sua chegada satisfazendo suas necessidades com sua jovem esposa, uma pergunta fez Pedro Carlos tirá-la dos devaneios que ela parecia, com um sorriso, estar tendo em seus braços, "Quais foram as últimas palavras dele, Ana?"

"Ah, querido... Ele só falou algo sobre o gosto do café que eu mesma tinha preparado".

Ouvindo o coração de seu esposo bater acelerado e sentindo seu tórax se mover em descompaso, ela, com um sorriso vil, observou discreta enquanto ele, numa tentativa vã de apanhar a xícara de porcelana com o café que bebera quase todo, acabou derrubando-a no chão e estilhaçando-a em mil pedaços.

LucasRA
Enviado por LucasRA em 14/08/2020
Reeditado em 25/08/2022
Código do texto: T7035416
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