QUANDO ARRULHAM OS POMBOS

QUANDO ARRULHAM OS POMBOS

De súbito, dentre os colombinos do bando, desloca-se um tarjado de marron e branco, planando aos trancos em voo desengonçado, afastando-se dos pares que ganham distância. Acompanho-o, esgueirando-me através da janela que dá para o quintal, ele flanando em círculos a perder altura num bater de asas, ruidoso. Salto à janela e corro na direção de sua queda. Encontro-o no charco que alaga as raízes das bananeiras, a debater-se. Elevo-o entre as mãos com cautela, bicando o ar, desesperado; removo-lhe a lama da cabecinha desarticulada. E ele expira.

Relanceio para a direita, mas é na esquerda que vou enquadrar, além do terreno descampado, a janela aberta de um sobrado. Ao peitoril, uma figura esquálida, pele branca pintalgada pelo tempo, tramando uma trança com os parcos cabelos longos e esbranquiçados que lhe restam: Dona Nila. Não lhe posso ver o semblante de todo, mas posso inferir que há um riso de lábios presos de puro deboche, e amendoados olhos claros embasados por bolsas de rugas. Ela arremata a trança com uma fita lilás, joga-a por sobre o ombro; detém-se por instante a olhar na minha direção, e fecha a janela num baque, que me chega, fração de segundo depois. Volto-me para o cadáver inocente em minhas mãos.

”Assassina!”

É ela quem está pouco a pouco a eliminá-los. Nutre um ódio visceral aos pombos. Proclama às vezes para os que ouvidos lhe dão, que eles cagam tudo em volta, têm um arrulhar agourento e perturbador; pior ainda, são transmissores de doenças. Em sua abençoada ignorância desconhece que o animal que mais, potencialmente, traz essa condição é o homem. Há algum tempo que forja alimentá-los, cujos punhados, pelo que tenho observado, trazem sempre um ou dois caroços de milho impregnado de potente veneno. Em seu quintal, quando morrem, ela os põe numa lixeira. Na rua, quase sempre acabam esmagados pelos carros. Em meu espaço, ganham o destino de todo animal morto, uma cova. Ela não tem pressa. O holocausto que vai impetrando, às aves que arrulham, vai sendo degustado sem pressa, na malícia, na astúcia, no ódio, redescobrindo recônditos bestiais de sua alma, num mórbido prazer.

Enquanto enterro o pombo no quintal, ouço, como se num réquiem, de sua garganta caprina o bodejar de uma canção de igreja, cuja letra diz algo como “viver eternamente nos braços do Senhor!” Não se sabe quando, mas a qualquer tempo um novo inocente cairá morto. Ela, em sua sanha de vingança, antecede a sina daquelas criaturinhas aladas que embelezam o céu, como se o simulacro de uma divindade; indiferente ao subtrair-lhes a vida. Mandou cortar o coqueiro do seu quintal onde os pombos costumavam pousar enfileirados para se catar, arrulhar e fazer amor. Há o tronco de uma mangueira que fora serrado, e um jamboeiro estranhamento ressecado. Não raro, vejo-a acocorada arrancando ervas daninhas com as próprias mãos. Extirpa qualquer coisa verde que desponte da terra. Nenhuma planta decorativa em torno do sobrado; sequer um cróton. Os nichos que encontram no madeiramento do velho telhado, os pombos servem-se como abrigo para a construção dos ninhos; até que ela descubra-os, e quando tal acontece, são destruídos a cabo de vassoura, e os ovinhos postos esmagados com as próprias mãos, como já pude testemunhar.

Os dias e as noites se processam enlaçados pela revoada dos pombos. Vejo-os quase sempre alçarem voo do campanário da matriz quando o sino anuncia a Hora do Ângelus, circunvagando pelos telhados das casas, desaparecendo para além dos eucaliptos que ficam do lado leste da cidade. Ontem mesmo encontrei um de penas negras reluzentes, pintas brancas em torno do pescoço. Ainda estava quente, quando o enterrei no quintal. Ao sair à tarde, cruzei com D. Nila na pracinha; ela, discretamente, trocou a sombrinha de lado entrincheirando-se para não me cumprimentar. O “réquiem”, solfejado em ganidos, saía de sua garganta caprina, quando passei a seu lado, “...viverei eternamente nos braços do Senhor, eternamente!” Ela sabe que encontrei mais um pombo envenenado, as frestas das janelas, como postos de observação, revelam-lhe tudo.

As samambaias que se curvam num pequeno cercado que divide meu quintal padeciam com muitas folhas amareladas. Eu estava a podá-las quando me deparei com D. Nila, mãos ao peitoril da janela, meneando para os lados à procura dos pombos no céu. Ela sente falta deles. Inquieta-se quando não estão por perto. Criou um vínculo empático em que não pretende dar cabo deles a um só tempo. Quer sempre tê-los em torno, para ceifar-lhes as vidinhas a seu bel prazer, na linha direta de seu sadismo.

No primeiro punhado de milho lançado da janela, eles logo aparecem e aterrissam disputando, à debicadas, no terreno pedregoso abaixo. Ela sustém um punhado numa das mãos e fica a fitá-los, aguçando-os. Já os domesticou a esse ponto. E é o que ocorre. Um deles bate asas até ela, e arremete, planando, com certa hesitação, pousando-lhe no pulso. Ela abre a mão em garra, deixando cascatear alguns grãos, e contempla o pombo que debica, um a um, avidamente; os dedos da outra mão achegam-se, alisando-lhe o dorso. Aguarda até ele pinçar o último grão, e, naturalmente, agarra-o com ambas as mãos em concha, relanceia para as laterais como se a procurar testemunhas, e abre-as simetricamente, libertando o pombo para o alto. Num bater frenético de asas ele retoma o voo e distancia-se por sobre o telhado de minha casa, à mira de seu olhar perscrutador, acompanhando-lhe a direção tomada. Joga a trança para trás e adentra a casa.

“O príncipe louco da Dinamarca” sempre me chamou a atenção pelo drama que padece ao ver desmoronar os laços de sua família, e a sua impotência em intentar resgatá-los, caindo em depressão, angustiando-se com a existência humana, a sua, na excelência da personagem. Releio-o mais uma vez, deitado na rede no alpendre lateral de minha casa, em tragos de vinho. Já estou há uma hora a acompanhar uma das melhores inspirações literárias legada à humanidade pelo notável William Shakespeare.

Reponho o marcador no livro e vou à janela. Da saca de milho que fica ao lado retiro alguns punhados e vou jogando no quintal. No alguidar de madeira alguns já se banham ou bebericam a água, à borda. Os pombos que se perfilavam no telhado do sobrado de D. Nila planam a um só salto para o meu quintal e atacam os grãos, ávidos, esfomeados. As janelas do sobrado permanecem fechadas, e não há peças de roupa no varal. Ela deve ter passado o dia todo fora. Tanto melhor, sem “imolação de cordeiro” para hoje. Por instante, fico contemplando os colombinos se saciando.

A noite se avizinha, e preciso voltar à Shakespeare para partilhar da sangria no embate final do “príncipe louco da Dinamarca”.

HAMLET _ And therefore as a stranger give it welcome.

There are more things in heaven and Earth, Horatio,

than are dreamt of in your philosophy!

Quase uma semana é passada, e nenhum pombo morto. Quem sabe, uma trégua! O que estaria ela tramando num dia tão quente desses?... Após um demorado banho para me refrescar do mormaço da tarde, vou ao quintal. Alguns pombos debicam os últimos grãos do milho que joguei, ainda há pouco, próximo às bananeiras. Ela não está à janela entreaberta. Avanço alguns passos para poder divisar a varanda onde costuma ficar “domesticando” os condenados. Esgueiro-me por entre as bananeiras para não ser visto. Lá está ela, trança enrodilhada na cabeça, um punhado de milho na mão aberta, tenta aliciar três pombos que, cautelosos, estão sobre a balaustrada de madeira. Ela balança a mão de um lado para outro, deixando os pombos inquietos. Um deles, preto reluzente, bate asas até ela que vai recuando, fugindo dele. Outro, pousa-lhe rápido no ombro, ao que ela, contrafeita, afasta-o com um safanão. Mas o preto, já lhe alcança a mão com o punhado de milho; na ânsia de agarrá-lo ela desanda, e desaba de costas sobre o primeiro degrau da escadaria de madeira, e vem rolando aos baques até chegar embaixo, derrubando uma jarra de barro.

Num impulso, salto o muro, avanço através do terreno baldio, e alcanço o muro de pedras da casa dela. Transpondo-o facilmente, detenho-me, e vejo, por completo a escadaria de balaústres torneados em madeira aparente; na base, cacos de barro sobre um tapete de agave, que ladeia o corpo estanque de D. Nila, caído em decúbito dorsal. Uma alpercata está fora do pé, o braço esquerdo preso às costas, língua derreada nos lábios na boca entreaberta, numa cara que se mantém paralisada em rictus de autoridade. Liberto-lhe o braço. Toco-lhe o coração acima do seio murcho, sob o vestido. Um bando voluteia no ar num bater frenético de asas. A trança desalinhada na cabeça começa a minar sangue. Cerro-lhe as pálpebras, ocultando seus olhos verdes-lodo, vitrificados.

Soergo-me, e olho em torno, esquadrinhando o que vou encontrando: um pilão de madeira, uma velha cadeira de vime, uma arapuca de varas, uma pequena escultura católica pendente de ponta cabeça. Algumas sacas de milho, lacradas, estão empilhadas a um canto. Vou até lá e arrasto uma, recostando-a num dos pilares que sustenta o alpendre. Nas galhadas secas do jamboeiro os voantes vão se achegando, buscando pouso. No muro de pedras três pousam se unindo aos tantos que lá se encontram. No toco da mangueira um, solitário, azulado e branco, volteia sobre si. Vindo não sei de onde, outro entra no quintal num voo rasante, passa ao meu lado, pousa, e põe-se a catar grãos presos entre os dedos da mão crispada de D. Nila.

Tiro o lacre da saca e lanço intermitentes punhados de grãos contra seu corpo. Vindos do telhado, dois pombos achegam-se ao primeiro. Três outros mais ousados pousam em seus decaídos peitos, onde grãos se aglomeraram. E debicam ávidos, felizes entre incontroláveis arrulhos. E muitos outros se somam... de todos os pontos, de todos os tons, como se brotando de todos os cantos. Das galhadas ressecadas do jamboeiro partem dezenas em volteios, em voos de reconhecimento, pousando, por fim, sobre o corpo solícito ali distendido, braços cruciformes e pernas entreabertas, todo recamado de grãos de milho tocados pelo sol, que doura o que transpareceria uma mortalha de contas. A oscilar sobre ela matizes de marron, preto, branco, cinza, azul, uma festa de cores, uma coreografia minimalista de cabecinhas que sobem e descem, de passinhos que saltitam, de bater de asas que se equilibram.

A alegoria bizarra de um banquete antropofágico.

Segue-se o dia.

HAMLET _ To be or not to be: that is the question. Whether ‘tis

nobler in the mind to suffer the slings and arrows of outrageous

fortune, or to take arms against a sea of troubles, and by

opposing end them?... To die; to sleep; no more...

À noite, o Ângelus na igreja.

No entardecer do dia seguinte, um cumulonimbus dominante no céu traz o vento fresco que vem do leste, encrespando os eucaliptos, fustigando-os, levando algumas folhas secas a cair sobre uma lápide marmórea no campo santo. Um pombo branco reluzente, queda-se planando num semicírculo e pousa, asas verticalizadas, no topo da cruz gótica que encima a lápide. Acomoda-se em passinhos miúdos, e se cutuca no peito soltando algumas pluminhas, a planar preguiçosas, deixando descortinar a inscrição:

"Requiescat in Pace"

PETRONILA NEPOMUCENO DE OLIVEIRA

1947 - 2020

Rui López
Enviado por Rui López em 31/08/2020
Código do texto: T7050692
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