Usuário desconhecido

Laura acordou com o toque de seu celular. Com os olhos embaçados, ela leu na tela: “@pt1462 sent you a message”. Eram 3h15, quem seria a uma hora dessas? Ela fechou novamente os olhos na tentativa de voltar a dormir, mas um pensamento não saía de sua cabeça: “será um de meus pacientes? Pode ser uma emergência. Melhor checar”. Pegou novamente o aparelho, abriu seu instagram e leu a mensagem: “Você deveria ter vergonha do que fala. Logo logo você vai se arrepender”. Laura gelou. Seria uma ameaça? O que ela teria dito que deveria fazê-la sentir vergonha? Clicou no nome do usuário desconhecido. Perfil privado. Não era possível ver nenhuma de suas postagens, e sua foto principal era a bandeira do Brasil.

Um turbilhão de pensamentos tomou conta dela neste momento. Começou a pensar em todos os pacientes que havia atendido naquele dia. “Não houve nada fora do normal” ela pensou. “Júlia, a mulher que desconfiava de tudo e de todos, queixou-se dos problemas conjugais de sempre. O Caio está quase vencendo seu vício em jogos online. Espera... será que foi o Caio? Parece que ele não gostou nem um pouco quando eu falei que ele deveria se responsabilizar pelas próprias escolhas. Pela milésima vez. Mas também não demonstrou tanto incômodo a ponto de querer me ameaçar... A Vitória falou hoje que teve crises de ansiedade no último fim de semana, e eu ensinei a técnica da respiração diafragmática e aconselhei meditação. A última sessão foi com o Paulo. Ele estava mais calado que de costume, não se expressou muito durante a terapia. Provavelmente ele só vai à terapia porque a mãe dele o obriga. Falamos sobre a escola, o bullying que ele vem sofrendo. Seus colegas de sala o apelidaram de Paulinho Topete, quando resolveu adotar um novo visual a la “Johnny Bravo”. Paulinho Topete. @pt1462. Seriam as iniciais apenas uma coincidência?”.

Laura olha novamente o celular. Já são 5 horas. Logo será hora de acordar, não vale mais a pena tentar dormir. Ela então sai da cama e vai até a cozinha preparar um café. Paulo não sai de sua cabeça. “Só pode ser ele” – ela pensou. Mas o que teria ela dito a ele que o fizesse querer se vingar? “Talvez o seu silêncio estivesse me dizendo mais do que eu era capaz de ouvir. Talvez fosse raiva. Raiva por eu não o estar ajudando como deveria. E se o conselho que eu dei de tentar uma trégua com seus colegas não tiver dado certo?”.

Depois de mais algumas horas matutando sobre o assunto, Laura foi tomar um banho e se aprontar para o trabalho. Ao sair do banheiro, recebeu uma ligação de sua mãe:

- Meu amor, como você está? – disse dona Suzana

- Estou bem, e você mãe? Aconteceu alguma coisa para você me ligar as 7 horas da manhã de plena quarta-feira?

- Eu estou bem, filha. Eu estava assistindo o jornal com seu pai ontem à noite, e passou uma notícia sobre um homem abordando mulheres sozinhas nos arredores do Parque Trianon, e fiquei preocupada com você. Duas mulheres relataram terem sido assediadas pelo mesmo rapaz. Esse parque fica perto de onde você atende, não é? Tome cuidado quando estiver voltando, ta bom? Fique sempre de olho se não tem ninguém te seguindo, não fale com homem nenhum. Vá direto para casa.

- Mãe, você acha que eu sou criança? Pode deixar, eu não vou falar com estranhos na rua, fique tranquila! Você já me ensinou essa lição quando eu tinha 5 anos, esqueceu? – ironizou Laura.

- Está bem, meu amor. Eu confio em você. Mas tome cuidado! Um beijão!

- Ok, mãe. Beijos. Tchau.

Laura achou estranha a repentina ligação da mãe. Ela não era do tipo superprotetora, sempre a deixou ser livre. Quando saiu de casa, aos 18 anos, dona Suzana foi a pessoa que mais a incentivou para que fosse atrás de sua independência, construir uma carreira. Ela sempre soube que sua filha sabia se cuidar. Mas como todos dizem, mãe é mãe. Vai ver seria apenas uma preocupação maternal aflorando nela.

Minutos mais tarde, Laura saiu de casa, em direção ao seu trabalho. Não era longe, apenas 5 quarteirões de distância, por isso ela sempre ia caminhando. Como ela tinha saído um pouco mais cedo que o usual, ela resolveu passar no Starbucks para tomar um café. O dia seria longo, e ela precisava estar com bastante energia na hora dos atendimentos. Ela sabia que a vida de terapeuta não seria fácil, mas cada paciente seu que mostrava uma melhora fazia todo o esforço valer a pena.

Assim que entrou no Starbucks, ela já estava preparada para fazer o pedido de sempre. Quando chegou ao balcão, percebeu que o atendente de costume não estava lá. Ela fez então o pedido para o funcionário novo:

- Eu gostaria de um café mocha com dose extra de expresso, por favor.

- Claro. Qual vai ser a forma de pagamento?

- Vai ser no cartão de crédito.

- Pode inserir, por favor.

Ela digitou a senha. Compra aprovada. O atendente entregou sua Nota Fiscal, e pediu para que ela aguardasse. Enquanto isso, Laura checou seu celular. Nenhuma ligação ou mensagem. Navegou em suas redes sociais, para passar o tempo. Viu que uma amiga sua havia postado fotos de seu casamento que havia acontecido no ano anterior. Viu fotos do bebê recém-nascido de outra. Uma terceira amiga postara fotos de uma viagem que havia feito com paisagens paradisíacas. Enfim, nada de novo. Alguns minutos depois, escutou seu nome:

- Laura.

Foi imediatamente buscar seu café. No momento em que tocou no copo ela se lembrou: “Eu não falei meu nome para o atendente”. Ela ficou paralisada por um instante. Ao se recuperar, sentou-se numa cadeira, e começou a tomar sua bebida. Não conseguia parar de pensar “como ele sabia meu nome? Eu tenho certeza de que não falei para ele”. Ficou mais alguns minutos até terminar o café. Quando estava saindo da loja, não resistiu e perguntou:

- Oi, com licença. Desculpa perguntar, mas fiquei curiosa. Como você sabia o meu nome? Eu estou certa de que não te falei naquela hora. – falou desconfiada.

- Oi, moça... É... Eu vi no seu cartão de crédito. Desculpa por te assustar, senhora. Eu deveria ter perguntado.– respondeu o atendente, envergonhado.

- Nossa, que cabeça a minha. Claro, só poderia ter sido no cartão. – ela riu. - Bom, eu já vou indo, obrigada ... – ela então leu o nome em seu crachá. Pedro T.

Laura saiu do Starbucks com a pulga atrás da orelha. Pedro T. Seria novamente uma coincidência? “Não é possível. Será que é ele? Como ele teve tempo de ler meu nome no cartão se eu tirei tão rápido da maquininha? Mas se for ele, o que diabos foi que eu fiz para ele me mandar aquela mensagem?” – pensou.

Seu celular então tocou. Era uma notificação do Whatsapp. Uma mensagem de sua irmã.: “Lu, me liga urgente. Preciso falar com você sobre o PT.” Um segundo depois a mensagem sumiu. Sua irmã havia deletado. Percebeu que abrira a janela errada, o nome Laura estava logo acima de Luana.

“Não é possível. O que está acontecendo? Quem é PT?”. Laura estava ficando furiosa. E confusa. Paulinho Topete. Pedro T. PT. Ela não tinha ideia do que isso significava. Ela só sabia que ele queria se vingar. E o que sua irmã, o cara do Starbucks, e seu paciente tinham a ver com isso? Ela começou a suar. “Uma crise de ansiedade agora não”, reclamou. Ligou então para sua secretária e disse: “Bia, cancela todas as minhas consultas de hoje. Surgiu um imprevisto que vou ter que resolver”.

Laura começou a fazer o caminho de volta para casa. Mil teorias passavam pela sua cabeça. “Preciso descobrir quem me mandou aquela mensagem”. Chegando em casa, ela largou a bolsa em um canto, e se sentou no sofá. Abriu o instagram, e enviou uma mensagem para o @pt1462. “Quem é você? O que quer comigo?”. Cinco minutos se passaram, nenhuma resposta. A ansiedade aumentava. Resolveu então escrever para a sua irmã: “Bocão, quem diabos é PT e o que vocês estão tramando contra mim?”. Bocão. Há muito tempo não a chamava assim. Ela sabia que a caçula da família odiava aquele apelido. Mas não estava nem aí. A raiva tinha tomado conta.

Passados alguns minutos, seu telefone tocou. Era dona Maria, mãe de Paulinho Topete. Ela engoliu em seco, e atendeu.

- Boa tarde, dona Maria. Em que posso ajudar?

- Oi, Laura. Sua secretária me avisou que você não estaria na clínica hoje. Eu queria falar com você sobre o Paulinho.

- Claro, está tudo bem com ele? – indagou Laura esperando logo um sermão de uma mãe insatisfeita.

- Sim, na verdade é justamente sobre isso que eu queria falar. Decidimos parar com a terapia. Paulinho me falou que está se sentindo muito melhor na escola. Os colegas finalmente pararam de importunar. É perceptível a mudança nele aqui em casa, ele está bem mais alegre e falante. Como você já deve ter percebido, ele é bastante tímido, por isso eu queria agradecer por toda a ajuda que você deu. Ele está muito grato por tudo o que você fez por ele. Eu falei para ele agradecê-la e avisá-la que seria a última consulta, mas já sei que ele ficou mudo durante toda a sessão.

- Nossa..., que ... – gaguejou. - que boa notícia, dona Maria! Fico extremamente feliz em saber que ele se sente melhor. Foi um prazer atender vocês. – respondeu, sem jeito.

Após desligar, Laura sentiu a culpa invadir seu peito. Como poderia ter desconfiado dele? Não tinha nada de raiva em seu silêncio. Ele só estava envergonhado demais para falar alguma coisa. Paulinho era apenas um garoto bom e tímido. “Como pude julgá-lo tão mal?” – perguntou-se.

Logo depois, o telefone tocou novamente. Era sua irmã:

- Laura, que mensagem foi essa que você me mandou? Não estou tramando nada contra você, sua doida.

- Então me explica que história é essa que você precisa falar do PT pra Lu!

- A mãe não falou com você do maníaco do Parque Trianon? A Lu e eu tínhamos marcado de correr lá hoje à tarde. Depois que fiquei sabendo disso, eu queria falar com ela para a gente marcar em outro lugar. Eu que não quero dar de cara com esse maluco.

- Esses jovens e sua mania de falar em siglas – Laura murmurou. Depois riu. Percebeu que estava tão autocentrada que acreditara que todos estavam contra ela.

Respirou fundo. Sentiu-se aliviada, e decidiu relaxar. Trocou de roupa, e preparou seu almoço. Enquanto comia, mais uma vez checou suas redes sociais. “Maldito vício”, pensou. Percebeu algumas notificações não lidas. Uma delas referia-se a um post sobre política que havia comentado uns dias atrás. Ela teceu elogios ao Prefeito da cidade, que havia acabado de ser eleito. Abriu seu comentário para ver o que tinham respondido. A maioria dos usuários estavam demonstrando apoio. Exceto um: @pt1462. Ele estava discordando de tudo o que ela falara, dizendo que “todo político é igual. O futuro vai te mostrar quem ele é de verdade”.

Laura caiu na risada. O mistério estava resolvido. O temido vingador não passava de um internauta qualquer que discordou de um comentário seu. Ninguém estava querendo se vingar. Ninguém estava tramando nada contra ela. Agora está tudo bem...

Está?

Laura pegou seu celular mais uma vez. Rolou a lista de contatos até achar o nome que queria e ligou:

- Boa tarde, eu queria marcar um horário com o terapeuta”.

Claudia M K
Enviado por Claudia M K em 25/09/2020
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