A sombra

Todos os jornais tinham anunciado que a neblina chegaria e pelo que Helena via da janela, ela de fato chegou. Um cinza fraco e poeirento cobria todo o horizonte. As recomendações tinham sido para ficar em casa, beber bastante água, buscar manter o ambiente o mais limpo possível.

– É fuligem das queimadas. Já faz uma semana que a mata está queimando. – disse o especialista na TV.

O gosto salgado de fumaça no fundo da boca incomodava. Era salgado, sujo e sufocante. Um pano molhado sobre a face ajudava mas não resolvia. Nem nos seus sonhos mais loucos Helena imaginaria que viveria num mundo onde fosse impossível respirar.

Foi na noite da chegada da neblina que ela teve o primeiro sonho. Ela estava num prédio velho, abandonado e sujo. As paredes estavam mofadas e descascadas. Mas o prédio era habitado; toda vez que tentava abrir uma porta dava de cara com uma criatura estranha, deformada, despida de humanidade. O prédio é um grande labirinto e ela não consegue achar a saída. Ela chega a uma sala na qual não existem portas. Atrás dela, uma enorme sombra surge. Helena se encolhe no canto da sala. A sombra se torna cada vez mais visível, mas a criatura que a produz nunca chega.

O segundo sonho foi no dia seguinte. Dessa vez, ela estava num campo aberto. Um sítio amplo e verde, no qual surgiam seres pequeninos e peludos. Pareciam inofensivos, mas eram muitos. Logo, Helena se sentiu encurralada e começou a correr. Então a sombra negra reapareceu, com proporções colossais, encobrindo o próprio sol, e mesmo assim Helena não era capaz de enxergar o que a produzia.

O terceiro sonho foi no terceiro dia. Ela sonhava que dormia. Logo, o escuro do quarto se tornou tão denso que esmagou o peito dela. Ela tentava acordar e acender a luz, mas era impossível. A sombra estava sobre ela. Sentiu o peito rachar, os pulmões pularem para fora e a cabeça explodir. Assumiu que a umidade que sentia era sangue, mas quando finalmente despertou notou que estava mergulhada em suor. Ligou a TV, e o jornal da madrugada falava sobre a neblina.

– Mas isso nunca vai passar? – disse em voz alta para ninguém.

Começou a pensar sobre a sequencia de sonhos. Era o inconsciente processando a neblina, disso não tinha dúvida. Era uma metáfora muito clara. Mesmo assim, ainda se sentia incomodada de não enxergar a origem da sombra.

Todo mundo sabia o motivo da serra queimar. O governo era negligente com os fazendeiros e garimpeiros que queriam explorar a região. Estava fazendo vista grossa pro incêndio e apenas fingindo apagar o fogo. A mata queimaria até que a fome dos fazendeiros e garimpeiros estivesse saciada.

Mas quando dormia, Helena não via garimpeiros ou fazendeiros ou mesmo o presidente da república. Ela via apenas uma sombra negra. Uma sombra negra sem origem, sem natureza, sem substância. Um vazio sem nome.

– Estão abrindo caminho.

Quem disse isso foi uma mulher negra coberta de fios dourados. Sua imagem era distorcida, como um quadro modernista. Não era bonita, e não era feia. Era esquisita. E Helena achava que a tinha visto no primeiro sonho. Esse era o quarto sonho. Não se lembrava de nada, apenas da frase e da mulher. “Estão abrindo caminho”. Nos anos 1970, a ditadura dizia estar abrindo caminho para o futuro quando derrubava parte da floresta amazônica. O governo atual certamente diria o mesmo. E o fogo abre caminho para que fazendeiros e garimpeiros possam plantar e extrair. O inconsciente, de novo, sendo bastante óbvio.

No íntimo, Helena sente que não é só isso. Não é só uma associação de palavras. Ela sente, no fundo do coração, que algo está errado. Estão abrindo caminho para alguma coisa. Alguma coisa tão grande que é capaz de produzir uma sombra que oculta o sol.

No quinto dia ela não sonhou. Nem no sexto. No sétimo dia, a neblina passou. Da janela de casa, Helena podia ver um outdoor em agradecimento ao presidente. O caminho estava aberto.