O GRITO

Ele não dormiu muito bem porque teve seu sono roubado pelos gritos noturnos. Foram gritos indistintos, estridentes e repetitivos; foram gritos solitários na escuridão. Apesar do susto e do despertar repentino acordou disposto. A noite mal dormida não foi suficiente para tirar o seu entusiasmo ,afinal de contas experimentava nos últimos meses uma sensação completa de bem estar e não havia nada e nem ninguém que seria capaz de lhe tirar isso. Ele e sua esposa viviam de forma confortável, se dedicou com afinco por anos para poder proporcionar tal condição para si mesmo e para ela; foi conquistando de forma obstinada e gradual novos patamares em sua carreira, sendo necessário até mesmo abdicar esporadicamente de sua vida pessoal, de reuniões familiares, jantares românticos, hobbies. Agora com toda a sua vida em ordem não seria uma noite mal dormida que iria subtrair o seu bom humor pela manhã. Acordou apressado e ansioso para desfrutar de mais uma de suas conquistas, um bem precioso de alto valor sentimental: seu conversível azul. Uma de suas satisfações era dirigir seu estimado carro e as manhãs eram momentos especiais pois a leveza do ar matinal o fazia se sentir revigorado; eram momentos em que as experiências de dirigir se convertiam na primeira vez em que ele dirigira aquele carro.

Antes de chamar o elevador ele olhou diretamente para a face de sua esposa e novamente sentiu a sensação de reinício, contudo naquela manhã especialmente ao contemplar as feições harmoniosas e belas de sua amada esposa foi como se um frescor adicional tivesse aparecido naquele momento e os olhos dela estavam tão iluminados como no primeiro encontro; a voz dela ao desejar um bom trabalho e ao dizer que o amava estava mais melodiosa e ao mesmo tempo soou como a primeira vez que se viram há nove anos atrás. Em segundos, um filme atravessou seus pensamentos em altíssima velocidade exibindo a primeira visão daquela que se tornaria a mulher de sua vida e não foi apenas isso, apareceram os percalços superados por ambos, as crises amorosas e financeiras e seu coração palpitou ao ter esse vislumbre momentâneo. A certeza de que eles eram felizes renasceu poderosamente em seu coração. Ele reafirmou em silêncio que a amava e que faria o impossível para jamais desapontá-la.

Não seria um grito noturno que tiraria o seu contentamento. Nada desestabilizaria a ordem do seu dia que apesar de ser agitado era conduzido de maneira equilibrada e com muita satisfação, até mesmo porque em suma as suas preocupações representavam uma conquista. Por alguns segundos ele se deu conta de que toda a sua vida era fruto de suas próprias escolhas que foram tomadas do modo mais assertivo possível; era uma obra inacabada cuja autoria exclusiva pertencia a ele mesmo. Se sentiu orgulhoso por ter construído a própria vida e entendeu que de certa forma foi capaz de domar o próprio destino e por alguma razão sentiu uma angústia minúscula por saber que algumas pessoas não poderiam desfrutar a vida nos moldes semelhantes que os da vida dele, como aquela pessoa desconhecida que gritava pela noite. Ele lembrou com bastante clareza dos gritos noturnos, agudos, indecifráveis, aterrorizantes e pela primeira vez sentiu um calafrio inexplicável, foi como se um bloco de gelo enorme com mais de cem quilos colidisse com todo seu corpo. Decidiu ligar o aquecedor portátil guardado no porta luvas e foi então que percebeu que não sentia suas mãos; suas pernas estavam pesadas também e quando ele tentou virar a cabeça para abrir a janela se deu conta de que também não conseguia movê-la. Seus membros estavam imóveis e até mesmo a sua boca estava enrijecida, não era capaz de articular nenhuma palavra e com bastante dificuldade emitia sons, só era capaz de murmurar de modo incoordenado. Mesmo sendo uma situação inesperada não se desesperou, não deixou escapar nenhum vestígio de pavor por aquilo. Sua visão subitamente se tornou clara, como se um holofote potente tivesse sido ligado diretamente em seus olhos. Ele se lembrou daquela mesma sensação de quase ausência de sentimentos e de consternação ao final de uma apresentação nos seus primeiros anos na escola. O clarão foi diminuindo gradativamente e ele pôde constatar que o sol não havia despontado, ainda era noite. Sua memória foi se reconstituindo e notou que estava no carro, parado. Suas lembranças surgiram em retrocesso e numa velocidade atordoante. Ele se lembrou numa rajada de consciência do acidente que acabara de cometer. Seu carro havia batido no cruzamento, lembrou dos gritos que vieram dos pneus em uma tentativa vã de frear e evitar a colisão com o muro. Ele dormiu no volante após um dia exaustivo de trabalho, seu senso de perfeição o obrigara a cumprir o prazo de entrega do relatório naquele dia e com isso sacrificou mais uma vez o seu jantar. As reflexões sobre a sua vida surgiram velozes e misturadas as lembranças das paisagens vividas. Eram cenários de uma vida que viveu prazerosamente. Estava prestes a comemorar trinta e quatro anos naquela semana e preferiu não cerrar os olhos nos seus últimos instantes porque queria contemplar o céu noturno, em uma derradeira tentativa de capturar a beleza da vida e, mais uma vez como por toda sua existência interrompida prematuramente, ele teve êxito porque em uma fração de tempo foi capaz de ver e sentir o silêncio celestial das estrelas.