Poodle (19.06.2021)

Céus, que dia cansativo este!

E não só parecia que nunca ia acabar, eu já tinha plena certeza disso! Em algum momento entre largar aqueles papéis na mesa da cozinha e levantar para pegar um copo d’água, depois de passar um tempo com as mãos nos olhos cansados e o óculos de armação fina jogado na mesa, decidi sair de casa. Sem carro mesmo, apenas caminhar e tentar ver se o tempo tinha melhorado um pouco para que eu pudesse sentir a brisa do cais ali perto sem o clima de tristeza da neblina.

Mas hoje, como dizem nos filmes, não é o meu dia. A neblina estava tão densa que consegui ver-me no vidro da porta, o rosto refletindo o que o clima queria me dizer. Olheiras... Olheiras, não... Crateras embaixo dos olhos, os cabelos cacheados em uma confusão ruiva e alta, as roupas amarrotadas cobrindo o corpo magro e quase não aguentando-se por si mesmo.

Respiro fundo e abro a porta de casa, pois preciso, não porque o ar externo me tente. Está frio. Levanto a gola do casaco e ponho as mãos no bolso, sem chegar a fechar o zíper da frente porque acho que mereço sentir essa lâmina gelada.

O famoso “pensar na vida” é o que faço enquanto caminho de cabeça baixa para o cais. Ser professor foi algo que escolhi desde os tempos do Ensino Médio, e isso parecia-me algo surreal e mágico; era a coisa certa a fazer, somente a isto eu podia me dedicar, já que não havia outra perspectiva. Mas este pensamento mais pessimista veio mais forte com o tempo, já que a utopia é linda, mas o desencanto também há e não posso fugir dele... E acabou que as alegrias começaram a não compensar o desgaste e o cansaço... Pelo menos para mim... É com certa tristeza que chego novamente a esta linha de pensamentos, mas triste também é a realidade que me leva a pensar assim.

Sinto já o ar marítimo sem que tenha chegado muito perto, aquela salinidade me envolve de um jeito quase acolhedor. Quase. Chego à beira do cais, sentindo a madeira molhara sob meus pés, apesar dos sapatos de segunda mão, e desfruto da visão do mar, de seu cheiro, seu ar... Por apenas um minuto antes de ouvir o primeiro tiro. Me abaixo em reflexo e, em meio ao meu atordoamento, só consigo fazer-me uma pergunta.

Esse tiro veio em minha direção?!

Ainda abaixado, procuro a origem daquele afronta como se minha vida dependesse disso. Mas logo descobri que dependia mesmo, pois vi um homem, vestido com roupas típicas dos pescadores da região, aproximar-se de mim com uma carranca maior que os barcos ancorados e com uma espingarda em mãos.

Não conheço muito sobre armas, mas sei que esta é uma das que atiram apenas duas vezes antes da próxima necessidade de recarga. Com a adrenalina também atirando para todos os lados em meu organismo, decido dar as caras mais uma vez, para ouvir o segundo estrondo e depois desatar a correr como um doido.

E talvez estivesse doido mesmo, correr assim de alguém armado que pode muito bem ter técnicas rápidas para recarregar a arma... Ou simplesmente doido por estar alucinando esta situação mais que surreal. E perigosa. Consigo correr com uma velocidade inimaginável, algo que nunca tinha conseguido nem em meus melhores dias de forma física. Mas o desespero é um combustível poderoso, então corro!

Mas parece que em cada esquina dos depósitos de peixe que viro, encontro o tal homem, agora acompanhado de um amigo parrudão, e, não sei se por sorte ou sonho, escapo sempre de levar um tiro. Tudo acontece como se eu estivesse em um looping temporal, não sei...!

Até que algo ainda mais inexplicável acontece:

Um vulto meio cinza, com roupas nobres, aparece correndo sobre os quatro apoios, passa por mim de um salto, quase chego a sentir seus pelos em meu rosto, e cai sobre meus perseguidores. O primeiro pensamento que me ocorre é apenas uma palavra: poodle. Ridículo! Hoje sei que assim foi, mas a única coisa que eu queria na hora era ir para bem longe daquele lugar. Ainda escuto os rosnados, mesmo depois de ter me distanciado bastante, tanto em espaço quanto em tempo.

Corri, apanhei um carro e pedi que o motorista fosse o mais rápido possível para o aeroporto, pois meu desespero me levou a querer comprar uma passagem no primeiro voo disponível! Estourei o limite do cartão de crédito e, ao entrar no avião, pensando se voltaria ou não para buscar minhas coisas, o primeiro pensamento que me ocorreu foi que o lugar estava cheirando a cachorro molhado.

Paulia B. Sousa

Paulia Barreto
Enviado por Paulia Barreto em 24/06/2021
Código do texto: T7285528
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