Declaração de amor - parte 2 de 5

No dia seguinte, Luiza, Marco Antonio, Jéssica e Vanessa visitaram Vilma Helena e Ulisses. Não eram oito horas da manhã quando chegaram à casa deles. Saudaram-se calorosamente. Dálton dormia. Acordou um pouco antes das nove horas, envolvido pelas vozes de Luiza e Marco Antonio, que falavam em tom alto. Esfregou os olhos com os nós dos dedos; e com os dedos indicadores removeu a remela dos olhos. Semi-desperto, puxou a colcha para baixo; com movimentos dos pés e das pernas, descobriu-se. Foi nesse momento que ouviu seu tio pronunciar seu nome e sua mãe dizer-lhe que ele, Dálton, dormia como um anjo. Dálton mal ouviu o que eles disseram; captou algumas palavras, que lhe permitiam fazer idéia do assunto que eles tratavam. E sentou-se na cama; e passou as mãos pelo rosto, e bocejou. Sentia pesados os olhos. Passeou as mãos pelos cabelos; e coçou a cabeça. Sentiu algo a lhe incomodar o nariz. Assoou-o, e na sua mão direita atirou muco nasal. Levantou-se, e foi ao banheiro. À pia, abriu a torneira, e limpou a mão. Regressou ao quarto, pegou algumas roupas, encaminhou-se ao banheiro, e banhou-se com água fria. Vinte minutos depois, retirou-se do banheiro com aparência melhor do que a que apresentava ao nele entrar. Na sala-de-estar, encontrou-se com seu pai, sua mãe, seu tio, sua tia e suas primas. Luiza atraiu-o, beijou-o nas duas faces, e, com as mãos pousadas no rosto dele, deu-lhe um beijo na testa – Dálton teve de reclinar-se para que ela o beijasse. Em seguida, ela elogiou-lhe a beleza e o porte físico. Na sequência, ele saudou, com um abraço caloroso e um aperto de mãos, seu tio, que dele se aproximara quando ele conversava com Luiza, e, com beijos e abraços, Vanessa e Jéssica.

– Tua mãe disse-me, Dálton – disse Luiza -, que tu estás namorando uma princesa: Marta. Quando tu a apresentarás para nós?

– Traga-a aqui – antecipou-se Vanessa, sorridente. – Quero conhecer a mulher que irá pôr um pouco de juízo na cabeça de meu primo.

Todos riram do comentário.

Vanessa evocou as aventuras de Jéssica, Dálton, Claudionor e dela, na fazenda dos avós, e os passeios que empreenderam no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro, e nos Estados Unidos. Riram dos contratempos que enfrentaram e dos dissabores que os afligiram. E foi ela quem evocou o dia em que, no Rio Grande do Sul, num passeio de ônibus, o motorista do ônibus quase perdeu a direção e o ônibus quase despencou em uma ribanceira. Aludiu aos insultos que os passageiros cuspiram contra ele e ao medo que sentiram. Dálton evocou outros momentos inesquecíveis de tal viagem e as aventuras sucedidas nos Estados Unidos. Seus olhos brilharam ao evocar a Califórnia, um país, disse ele, surreal.

Beberam café, leite, café-com-leite. Comeram pães com queijo, pães com manteiga, maçãs, bananas, sucrilhos, bolachas com recheio de morango e bolachas com recheio de chocolate, waffes, biscoitos, pães-de-fôrma com geléia de pêssego, e goiabada com queijo.

Durante a conversa, mudavam, constantemente, de assunto. Em certo momento, Jéssica perguntou de Marta a Dálton. Desejava saber se ela era bonita, qual a cor dos cabelos e dos olhos dela, qual a idade dela e onde ela morava. Dálton se tornou o centro das atenções. Sentiu-se intimidado. Carecia de tempo para responder às perguntas, pois todos lhe falavam ao mesmo tempo. Foi Vilma Helena quem disse que, se desejavam extrair-lhe alguma informação, teriam de permitir que ele falasse. Assim que sua mãe, como ela mesma disse, conseguiu pôr ordem na casa, ele falou de Marta. Elogiou-a, sem ressalvas. Evocou o dia em que a conhecera. Falou da cor e do comprimento dos cabelos dela, da cor dos olhos, do formato do nariz, do rosto, do tipo físico e da altura dela, das roupas que ela mais gostava de usar, dos filmes prediletos dela, dos livros que ela leu e dos que ela não leu e não pretendia ler; e do início do ano letivo, na faculdade de Direito. Estava orgulhoso do sucesso de Marta, que, como o pai e a mãe dela, seguiria carreira de advogado; mas ela ainda não havia decidido em qual ramo do direito se especializaria. Marco Antonio teceu comentários sobre advogados e outros profissionais do ramo jurídico. Jéssica declarou que advocacia era uma profissão que ela jamais exerceria. Vanessa disse que não conseguia entender como podia existir pessoas que viviam mergulhadas em livros de códigos e constituições, analisando pontos, vírgulas e pontos-e-vírgulas de milhares de leis, e perguntou qual a razão de tantas leis, e se elas eram escritas para melhorar a vida das pessoas, ou para piorá-la. Marco Antonio tomou a palavra, e afirmou, categoricamente, que muitas leis são criadas tendo-se em mira a defesa de interesses de grupos privilegiados, a garantia de reserva de mercado para certas empresas e a impunidade a certos políticos.

A conversa estendeu-se, com comentários favoráveis e comentários desfavoráveis ao sistema legal brasileiro. Marco Antonio entremeou com perguntas retóricas as suas argumentações. Falaram da criação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, da extradição de Cesare Battisti, da Lei da Ficha Limpa, da formação ideológica dos representantes das leis, e das faculdades de Ciências Jurídicas. Luiza disse, em certo momento da conversa, que as universidades brasileiras são antros de pervertidos. Nenhum dos seus interlocutores corroborou tal opinião. Marco Antonio dela divergiu frontalmente, e ela mencionou exemplos de casos que lhe chegaram ao conhecimento e concentrou-se no protagonizado por Jennifer, filha de Lúcia, uma das suas vizinhas:

– A Lúcia contou-me, um dia, na casa dela, que Jennifer, sua segunda filha, foi, no primeiro ano de administração de empresas, assediada e chantageada por um professor, cujo nome não me recordo, ao tratar com ele das notas que ela tirara nas provas. Na somatória das notas de todas as provas do ano, Jennifer não havia conseguido a nota mínima necessária para passar à série seguinte; restou-lhe meio ponto. O professor, não reservando consigo as suas segundas intenções, disse para ela que ela poderia passar para a série seguinte se aceitasse o convite que ele lhe fazia para jantar. O seu sorriso cínico, as reticências, o realce que deu ao ‘jantar’, o olhar enviesado e o timbre da voz não deixaram dúvidas a respeito do que ele desejava. Jennifer, momentaneamente privada da voz, ensaiou uma resposta grosseira, mas calou-se. Disse que mordera a língua, para não faltar com o respeito ao professor, não perder a compostura, e não se debulhar em lágrimas, de decepção, num misto de raiva e medo. Aquele professor, de todos os professores, era o que ela mais estimava. Afligiu-a o descaramento dele. Incapaz de falar, no receio de não perder o controle de si, abreviou a conversa e, as pernas bambas, foi-se embora. Ao chegar na sua casa, contou o ocorrido para a Lúcia. No ano seguinte, matriculada no segundo ano, ela estudou, do primeiro ano, a matéria na qual fôra reprovada, agora com outro professor, e mais as matérias do segundo ano. E ela foi aprovada, e com louvor – fez uma pausa, para avaliar o impacto das suas palavras naqueles que a ouviam, e prosseguiu: Quantas mulheres são vítimas, nas universidades, de professores canalhas? As universidades são antros de perdição. Nas universidades os alunos fumam maconha, frequentam festas regadas a bebidas alcoólicas e drogas. Brutalizam-se. Emburrecem-se. Na cabeça, eles têm, além de piolhos, minhocas. Os professores os deseducam, os deformam.

– Tu exageras, mãe – sentenciou Vanessa.

– Não exagero – replicou Luiza. – Conhecemos este caso. Quantos outros não nos chegaram ao conhecimento? Se não fosse moça decente, a Jennifer aceitaria a proposta indecente daquele professor calhorda. Quantas alunas aceitaram a chantagem dele?

– Que eu saiba – comentou Marco Antonio -, as moças que estudam nas universidades são adultas. Se decidem aceitar as chantagens de um professor canalha, o fazem de livre e espontânea vontade.

– De livre e espontânea vontade!? – exclamou Luiza.

– E não é? – prosseguiu Marco Antonio. – É de livre e espontânea vontade. As alunas são adultas. Podem dizer não; ou, se já conhecem a reputação do professor, que não o procurem para dele receber, sem o merecer, o meio ponto que lhe restam para passarem de ano letivo. Os alunos não podem abordar os professores e lhes solicitarem meio ponto, um quinto de um ponto, que seja. Não conseguiram a nota mínima, nas provas oficiais, as mesmas provas que todos os alunos fizeram, então que aceitem o resultado, se não adulterado, e calem-se. Se um aluno não consegue a nota mínima para aprovação, das duas, uma, ou ele não se aplicou ao estudo, ou não tem inteligência para assimilar os conhecimentos.

– A Jennifer, no ano seguinte, passou de ano – observou Luiza.

– Portanto – retrucou Marco Antonio -, ela tem inteligência para assimilar os conhecimentos; então, por que, no primeiro ano que cursou a matéria, ela não conseguiu, nas provas, a nota mínima para aprovação? Por que ela teve de, carente de meio ponto, recorrer ao professor? Talvez ela não tenha se aplicado nos estudos, como o dever lhe exige.

– Ela trabalhava, durante o dia, e ia à faculdade, à noite – disse Luiza.

– Ela é uma aluna universitária – tornou Marco Antonio. – Era a única universitária que trabalhava? Responda-me: Os alunos que estavam na mesma situação que ela foram reprovados?

– Tu queres dizer que o professor não estava errado… – comentou Luiza.

– Não foi isso o que eu disse.

– O que tu disseste, então? – perguntou-lhe Luiza.

– Agora, eles discutirão pra valer – anunciou Jéssica, sorrindo.

– A conversa está ficando divertida – comentou Vanessa.

– Por que a Jennifer foi pedir meio ponto ao professor? – perguntou Marco Antonio. – Se, durante o ano letivo, ela não havia conseguido, nas provas e nos trabalhos, a pontuação mínima para aprovação, ela que admitisse, para si mesma, que não estava preparada para dar mais um passo em sua jornada universitária, e se detivesse, e aceitasse o seu fracasso. Não seria o fim do mundo. Que aprendesse com o insucesso. A Jennifer pediu meio ponto ao professor porque…

– Ela não pediu meio ponto ao professor – interrompeu-o Luiza, alterada. – Ela lhe pediu um trabalho; e ela o faria, e pelo trabalho o professor lhe daria meio ponto.

– Certo – tornou Marco Antonio. – Por que, diga-me, o professor teria de dar um trabalho para a Jennifer em troca de meio ponto? A Jennifer é bonita…

– O que tu estás insinuando? – interrompeu-o Luiza, transparecendo indignação na fisionomia e na voz.

– Nenhuma insinuação eu fiz. Pergunto-me se a Jennifer não pensou em tirar vantagem de sua beleza. E se ela fosse uma feiosa desdentada, um bagaço?

– A Jennifer é moça decente – disse Luiza, num tom de voz alterado.

– Eu quero dizer o seguinte, e que fique bem claro: um aluno, ao não conseguir a pontuação mínima para aprovação, não pode pedir ao professor um trabalho em troca ou de meio ponto, ou de um ponto, ou de dois pontos, ou de dez pontos. O professor não pode, ao ouvir um aluno apresentar-lhe tal proposta, aceitá-la. Se decente, sério, compromissado com a formação intelectual dos seus alunos, tem de, obrigatoriamente, dizer-lhe que nenhum trabalho lhe dará e que os alunos aprovados o foram devido ao esforço próprio, sem obterem facilidades. Se um aluno não consegue a nota mínima, que ele seja reprovado.

– Mas… e as alunas que não têm opção, e são obrigadas a aceitar a chantagem do professor? – perguntou Luiza.

– Quais alunas não têm opção? – perguntou, surpreso, Marco Antonio. – Nenhuma aluna é obrigada a aceitar chantagens.

– As que não podem recusar a chantagem não têm opção – replicou Luiza.

– Quem não pode rejeitar a chantagem? – perguntou Marco Antonio, aparentemente mais surpreso do que antes.

– As alunas que temem o professor, que tem algo contra elas – respondeu Luiza, como se desse uma resposta irreplicável.

– Então, é caso de polícia – respondeu Marco Antonio.

– Há professores que descobrem segredos dos alunos e os usam contra eles – disse Luiza.

– É caso de polícia – sentenciou Marco Antonio, severo. – Todos os alunos têm opções. Podem falar a respeito com alguém. Saiba que há muitos alunos que se calam, ou por conveniência, ou por covardia. Por conveniência, sim, pois, ao curvarem-se à chantagem, passam de ano letivo, e não desgostam os familiares e os amigos, e ganham diplomas, e conquistam fama de estudiosos.

– Queres dizer que os professores chantageiam as alunas, e elas são as culpadas por serem chantageadas? – perguntou Luiza, impaciente. – A Jennifer foi a vítima do professor, um calhorda, que de professor não merece ser chamado. O professor chantageou-a, e ela tem de ser punida?

– Vamos pôr os pingos nos is – replicou Marco Antonio. – Vamos dar nomes aos bois. Não confunda alhos com bugalhos, e saiba que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa.

– O que eu disse? – perguntou Vanessa, para si mesma e para todos os presentes. – A conversa está divertida.

– Detesto quando tu fazes isso, Marco Antonio – disse Luiza, em tom de censura, chateada. – Tu debochas de mim. Tu zombas de mim.

– Acabou-se a conversa – sentenciou Marco Antonio. – Vou, agora, fazer da minha boca um túmulo.

– Sábia decisão – sentenciou Luiza. – Sábia decisão. Direi o que penso. Se tu me permitires, meu querido marido. Há muitos malandros nas universidades. Muitos professores são canalhas. Não educam os alunos; e seduzem as alunas incautas. Os universitários, aos dezoito, dezenove anos, sabem o que da vida? Nada. O ambiente universitário é favorável à transgressão de leis, normas sociais, e à transvaloração de todos os valores. Não é assim que os seus amigos intelectuais falam, Marco Antonio? Aqueles soberbos de cabeça oca que, por terem lido meia dúzia de livros, consideram-se os maiores gênios de todos os tempos. Basta ler jornais, revistas, assistir à televisão, e ouvir o que as pessoas falam, e atentar para o teor das conversas dos universitários, para se saber que o mundo está de cabeça para baixo. Para os universitários o certo é errado, e o errado certo; a vítima de um crime é o criminoso, e o criminoso a vítima. Os intelectuais dizem que os criminosos, que, ao nascerem, eram homens bons, cometem crimes porque a sociedade os obriga a cometê-los ao negar-lhes acesso à riqueza e ao corrompê-los. Tal idéia faz a cabeça de muitas pessoas, que estão prontas para aporrinhar a vida das pessoas de bem. Elas justificam todos os crimes e inocentam os criminosos. Tais idéias professores universitários inoculam na mente sugestionável dos alunos. Os professores, ou são bichos peçonhentos, ou desmiolados, que não têm a mínima idéia das idéias que inoculam no espírito dos seus alunos. Se eles justificam os crimes, fazem das vítimas culpados, e dos culpados vítimas… São vigaristas! É com espírito de transgressão que eles querem reformular o mundo, para melhorá-lo, dizem. Mas o pioram. Os universitários são bombardeados com idéias prejudiciais à sociedade. Um professor chantageia as alunas, e ninguém o denuncia porque a sociedade já está corrompida. Se há alunas que se calam, e a Jennifer se calou, embora não tenha aceitado a chantagem; se há alunas que aceitam a chantagem, pensando nas vantagens que terão, é porque a sociedade já está corrompida. Muitas alunas saem de uma cidade, lá do cafundó do Judas, e vão, sozinhas, para uma universidade situada lá onde Judas perdeu as botas, conhecem pessoas que nunca viram mais gordas, expõem-se às tentações, e não têm uma pessoa da família, ou um amigo, para quem possam confiar os seus pensamentos e de quem possam receber orientações. E com uma decisão impensada caem no fundo do poço. Vivem à mercê de outras pessoas, e têm de arcar com as conseqüências. Nem todos os professores são ruins, sei. O Dálton terá de prestar muita atenção ao comportamento da Marta, que poderá vir a ser vítima de um professor canalha, ou, até, de alunos canalhas. Dálton, tu sabes o que acontece nas festas que os universitários promovem? A Camila e a Samantha, filhas da Beatriz, disseram-me que os alunos… Pergunto: Os universitários frequentam as bibliotecas da universidade e as livrarias, ou os bares e as bocas de fumo? Se pensaram em bibliotecas e livrarias, erraram redondamente. Eles não lêem livros. Muitos deles os professores os acompanham nas aventuras alucinógenas. A Marta poderá vir a ser vítima desse tipo de gente. Os universitários, longe das famílias, consideram-se donos do poder. Sem uma autoridade moral para contê-los, perdem-se. Muitos deles, sem a renovação das lições morais que receberam, em casa, de seus pais, e com repetidas lições recheadas de idéias contrárias às quais foram educados, acabam por abandonar as idéias que lhes freavam os instintos auto-destrutivos, e se destróem e destróem outras pessoas. Sei que a Marta não irá para uma cidade longe e que ela irá morar na casa dos pais dela; todavia, ela irá às aulas na casa de amigos e às festas. Os universitários não têm escrúpulos e têm muitos estímulos para a transgressão e a auto-destruição. Os professores não ensinam o respeito ao próximo e à moral cristã. Dálton, tu achas que o cristianismo é bem-visto em uma universidade brasileira? A Samantha disse-me que uma amiga dela, católica, certa vez, lia, no pátio da faculdade, a Bíblia. Ridicularizaram-na os alunos. Dela zombando, perguntaram-lhe porque ela se interessava por aquelas histórias do arco-da-velha e disseram-lhe que ela era muito tola por acreditar que Adão e Eva, e Noé, e Sansão existiram. Ela ignorou-os, e pôs-se a ler a Bíblia. Intransigentes, embora se apresentassem como tolerantes, abertos às idéias diferentes, eles lhe disseram que não perdiam tempo lendo a Bíblia. Um deles disse-lhe: “Nunca li este livro, e nunca irei lê-lo. Não perderei o meu tempo com baboseiras de antigos povos analfabetos e supersticiosos.”, orgulhoso do seu desprezo pela Bíblia e por outros livros sagrados. Muitos alunos ouvem, nas salas de aula, dos professores, as idéias moderninhas, e arrotam sabedoria que não possuem. Imaginem o que há na cabeça dos universitários! Preconceitos. E eles ousam se apresentar como tolerantes e respeitáveis. As universidades são fábricas de imoralidades. Dálton, tu tens de amar a Marta, e acompanhá-la, sempre. Atente para o comportamento dela, ou irás perdê-la.

– A tua visão de mundo é injustificadamente pessimista – admoestou-a Marco Antonio, num misto de reprovação e incredulidade.

– Não é pessimista – retrucou Luiza, alterada. – Nas universidades brasileiras, o ataque aos valores universais tradicionais são intensos; e os universitários, muitos deles distantes de pai e mãe, tornam-se presas fáceis de professores vigaristas, que, defensores de ideais revolucionários, e sonhando com a destruição da civilização, os deformam ao incutir-lhes falsas idéias, ensinar-lhes a transgredirem a moral cristã, a desprezarem mãe e pai e avós, a cuspirem no prato que comem. E os alunos levianos intimidam os alunos educados, a ponto de persuadi-los a renegarem os valores que defendem e a praticarem atos reprováveis. A Samantha não foi a única pessoa que me disse isso. E a Jennifer não foi a única aluna chantageada por um professor.

A conversa prolongou-se até o almoço. Luiza realçou o seu ponto de vista. Contestou-a Marco Antonio. Ao divergir de ambos, Vanessa declarou que, com uma fusão dos dois pontos de vista, obter-se-ia uma idéia exata do que se dá nas universidades.

Dálton ouviu-os, atentamente, pensativo.

Luiza e Marco Antonio, e Vanessa e Jéssica ficaram para o almoço. Estas, após o almoço, pediram a Dálton que as levasse à casa da Marta. Lá, conversaram, animadamente. À noite, participaram da conversa Lucrécia e Floriano. Às vinte e uma horas, Jéssica, Vanessa, Dálton e Marta foram em visita a outros familiares.

Três dias depois, Luiza, Marco Antonio e suas filhas regressaram a Belo Horizonte.

Transcorreram-se os dias. O namoro de Dálton e Marta, entremeado de rusgas passageiras, prosseguia alvissareiro. Ciúme espicaçava-os em certas ocasiões – nada que os arremessasse um contra o outro a ponto de eles romperem o namoro. Sempre que desentendimentos esfriavam o relacionamento, eles se continham, e, para evitar discussões estéreis, pensavam nas palavras que diriam um para o outro. Sabiam como se portar ao ouvirem comentários de maledicentes, desafetos e invejosos. Chegaram-lhes aos ouvidos boatos cujas origens não ignoravam.

Floriano e Lucrécia convenceram Marta a trabalhar no escritório deles. Ela relutara; no início, dissera-lhes preferir trabalhar em outro escritório, mas os argumentos que deles ouvira a dissuadiram de seu propósito original.

No primeiro dia de aula, Marta foi à faculdade; acompanharam-na Dálton, e Roberta, sua amiga, e Ricardo, namorado de Roberta. Ao final das aulas, às vinte e três horas, Dálton e Ricardo, no carro deste, foram à faculdade buscar Marta e Roberta. No trajeto, de quase trinta quilômetros, da faculdade até a casa de Marta, Marta falou da sua apreensão nos minutos que precederam o início das aulas e teceu comentários sobre as impressões que os professores lhe provocaram, em particular Basílio, que, dos cinco professores, foi aquele que revelava melhor domínio do assunto que ensinava e o único que exibia postura adequada ao ofício, e, entendia ela, o mais inteligente deles. Dos outros quatro, ela fez breves comentários, apresentando, deles, mais aspectos negativos do que positivos.

Chegando à casa de Marta, Marta e Dálton desceram do carro. À frente do portão, ele a enlaçou, ela visivelmente exausta, pela cintura, e beijou-a. Pouco tempo depois, despediram-se. Marta despediu-se de Roberta e de Ricardo, e entrou na sua casa. Dálton regressou ao carro. Ricardo rumou à casa de Dálton. Lá chegando, este despediu-se dele e de Roberta, e retirou-se do carro. E Ricardo e Roberta foram à casa dela, diante da qual, no interior do carro, beijaram-se durante longos minutos, até que ela se retirou do carro. Ricardo observou-a abrir o portão da casa e entrar para a varanda. Assim que ela o fitou, e mandou-lhe um beijo, e foi para a porta que dá acesso à casa, ele girou a chave na ignição, deu a partida, pisou no acelerador, e chegou na sua casa quatro minutos depois.

Transcorreram-se os dias.

Habituada ao ambiente universitário, Marta estabeleceu amizade com vários alunos, criando relacionamento mais estreito com Mariana, Andréia, Denise, Tábata, André, Murilo e Nilton. Com eles possuía afinidades de formação familiar, intelectual, e de interesses e objetivos. Eram alunos aplicados, que conservavam certo distanciamento dos alunos relapsos, que iam à faculdade para farrear e tinham, como único interesse, obter o diploma ao final do quinto ano. Marta não precisou de muito tempo para identificar os alunos descompromissados com o estudo. Eles eram barulhentos, tagarelas e levianos. Com eles não estreitou laços de amizade, conquanto alguns fossem extrovertidos e com eles ela adorasse conversar.

Dois de seus condiscípulos, Carlos Roberto e Wesley, não tinham o hábito de freqüentar as aulas; quando freqüentavam uma aula, conversavam, no fundo da sala, desinteressados do que o professor explicava. Certa vez, eles, fleumáticos e ansiosos, ocultando os seus desejos inconfessados, proferindo, com correção, as palavras, o que lhes era incomum, abordaram Denise, Tábata, Murilo, André e Marta – e destes não passou despercebido o esforço que eles faziam para emprestar à voz um tom de dissimulado respeito -, e pediram-lhes, solícitos, que incluíssem seus nomes no cabeçalho de um trabalho. Denise disse-lhes que não incluiria os nomes dos dois no trabalho porque, se o fizesse, seria desrespeitosa consigo e com os outros alunos que participaram do trabalho, pois, se lhos incluísse, eles, Wesley e Carlos Roberto, receberiam notas por um trabalho para o qual não deram nenhuma contribuição. Wesley, secundado por Carlos Roberto, prometeu-lhe, com voz melíflua, sorriso cativante, incluir o nome dela num trabalho que fizessem, se, por algum motivo, ela não pudesse fazê-lo. Ela rejeitou a proposta, com veemência, reprovando-os, com argumentos irreplicáveis, e não lhes franqueou espaço para que, posteriormente, em qualquer outro dia, eles lhe solicitassem outro favor, pois a resposta que dela ouviriam seria a mesma:

– Não incluirei o teu nome e nem o teu – disse, dirigindo-se a Wesley e Carlos Roberto – neste trabalho – e exibiu-lhos. – E eu jamais pedirei a vocês a inclusão do meu nome no trabalho que vocês fizerem, se fizerem algum. Se vocês não aprenderam as primeiras lições, como aprenderão as lições posteriores, que, compreende-se, serão mais complexas, e, para a sua realização, será indispensável o conhecimento das primeiras lições, as quais vocês não assimilaram? Eu faço os meus trabalhos, e quero reconhecimento pelo meu esforço, e não pelo esforço alheio. Somos gratos pelos elogios que vocês nos fizeram, mas, saibam, não iremos incluir o teu nome e o teu nome – e apontou para Wesley e Carlos Roberto – neste trabalho – e lhos exibiu.

Wesley fez esgares de zombaria, desdenhoso, e Carlos Roberto, mais contido, mas não menos desdenhoso, exibiu sorriso escarninho. E ambos afastaram-se, despeitados, rilhando os dentes.

Os dois notabilizar-se-iam, no decurso do ano letivo, como os alunos mais irresponsáveis e descompromissados daquela sala-de-aula.

Convidada para a festa de aniversário de Mariana, Marta, antes de dizer para Mariana se iria, ou não, à festa, consultou Dálton. A conversa não se desenrolou como ela desejava. Não logrou convencer Dálton, que lhe disse que teria de trabalhar, naquele sábado, à noite, a deixá-la ir à festa. Essa foi a primeira discussão séria que eles travaram. Marta disse, escandindo as palavras, que iria à casa da Mariana, pessoa que ele conhecia, e salientou: a festa não se daria nem numa discoteca, nem num clube, e nem se prolongaria pela noite adentro porque Mariana iria, domingo, às cinco da manhã, com Walter, o seu namorado, Valéria, sua irmã, e Renata e Larissa, primas de Walter, a Ubatuba. Dálton, irredutível, disse-lhe que ela não tinha a permissão dele para ir à festa.

– Não me dás permissão? – retrucou Marta, visivelmente irritada. – Tenho de pedir-te permissão para ir à festa de aniversário de uma amiga?

– Por que queres tanto ir à festa? – perguntou-lhe Dálton, de cenho franzido.

– Porque a Mariana é minha amiga.

– Essa é a única razão da sua vontade de ir à festa? O que tu não queres me dizer? O que não queres que eu saiba?

– Não acredito, Dálton. O que deu em ti? O que estás a pensar? Quero ir à festa de uma amiga. E quero que tu vás comigo, mas tu terás de trabalhar, e não poderás ir. Que mal há se eu ir sozinha à festa?

– Não irás.

– Eu irei à festa, Dálton.

– Não irás, não.

– Irei, sim. Irei. Tu não tens o direito de me proibir de ir à festa da Mariana.

– Sou o teu namorado.

– Eu sei. Irei à festa de aniversário da Mariana. Ela é minha amiga. Gosto muito dela, e irei à festa.

– Não irás, Marta.

– Dálton, pare.

– Tu nunca me trataste como me tratas agora. A faculdade não está fazendo bem para ti; está fazendo de ti outra pessoa.

– Não digas asneiras.

– Por que estás agindo assim?

– Assim como, santo Deus!? – e Marta riu.

– Tu debochas de mim.

– Não debocho de ti.

– Por que ris, então?

– Estás sendo ridículo, infantil. Estás com ciúme…

Dálton, com o punho direito cerrado, deu um soco na mesa. Marta removeu o sorriso do rosto, calou-se, fitou Dálton, que a encarava, os traços do rosto carregados, o olhar penetrante, as sobrancelhas arqueadas sobre os olhos, que estavam quase ocultos sob as pálpebras. Teve a impressão de que o ouvira bufar, rilhar os dentes e rosnar. Destacaram-se, intumescidos, os vasos sanguíneos do pescoço e os das têmporas dele. Marta pegou de sobre a mesa a sua carteira, a bolsa e os óculos pretos, e disse para Dálton que, depois, conversariam, beijou-o nos lábios, com a mão pousada no rosto dele, e anunciou a sua retirada da casa, e foi para a sua casa preparar-se para ir à casa da Mariana.

Quando se preparava para ir à empresa na qual trabalhava, Dálton telefonou para Marta, que lhe disse que iria à casa da Mariana. Dele Marta ouviu silêncio opressivo. Imaginou ouvir-lhe a respiração acelerada, a expulsão, com força, do ar dos pulmões, o rilhar de dentes e o estralar de ossos dos dedos. Ele desligou o telefone. Ela, pensativa, com o telefone celular na mão, perguntou-se se tomara a decisão correta ao confrontá-lo. Discou o número do telefone celular dele. A ligação caiu na caixa postal. Marta não deixou nenhuma mensagem. Iria discar-lhe novamente quando a campainha soou. Guardou o telefone celular na bolsa, e foi atender à porta. Era Denise, que a levaria à casa da Mariana. No caminho – trajeto de vinte quilômetros -, Marta discou três vezes para Dálton – e três vezes a ligação caiu na caixa postal. A preocupação, que lhe transparecia na fisionomia, não passou despercebida de Denise, que lhe fez observações e perguntas a respeito; Marta desconversou.

No dia seguinte, de manhã, Dálton foi à casa de Marta, que, sonolenta, o atendeu. Não a saudou com um beijo nos lábios, como de hábito. Antes que ela lhe dissesse qualquer coisa, exigiu-lhe, contendo-se, para não a ofender, explicações sobre a conduta dela na véspera. Fitava-a com olhar severo. Ela hesitou, ao vê-lo tenso. E tentou, em vão, acalmá-lo. Ao se convencer de que as suas tentativas de acalmá-lo exacerbavam-lhe os ânimos, contou-lhe, com pormenores, o que se dera na casa de Mariana. Ele a ouviu, atentamente; ao final da narrativa, contendo-se, tenso ainda, mas não tão tenso como estava ao chegar, disse-lhe, com voz contida, que contrastava com a sua fisionomia carregada, que iria embora. Ela se lhe aproximou, e, tímida, dir-se-ia cautelosa, beijo-lhe os lábios e acariciou-lhe os cabelos. Pouco tempo depois, ele dela se despediu, e foi-se embora.

Nas duas semanas seguintes, Dálton e Marta não falaram da festa de aniversário de Mariana. Ele conservou-se reservado. Ela aludiu-lhe à atitude dele – não foi direta, para não lhe ferir suscetibilidades. Se entendeu as alusões, e é certo que as entendeu, ele deu a entender que não as entendeu, e tratou de outros assuntos. Dias depois, uma loja de aparelhos eletrônicos contratou-o, comprometendo-se a remunerá-lo com um salário mínimo e meio por mês. E em poucos meses, ele se tornou um vendedor bem-sucedido; e de alguns vendedores ganhou a hostilidade; de outros a amizade, o respeito e a admiração.

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 08/07/2021
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