Mazelas que não vemos

João da Silva amava a terra. A terra provia o homem e a terra guardava o homem. Mas, a terra que João amava não provia, apenas trincava no sol escaldante e na privação da chuva. Então, uma vez ao mês, João da Silva caminhava duas horas pelas veredas que ligavam seu casebre até à cidade mais próxima, comprava os alimentos para sobreviver e caminhava de volta por três horas, já que o peso dos mantimentos o faziam parar duas a três vezes no caminho. Esse dia era o mais feliz do mês para seu filho de dez anos Guimarães, pois sua esposa Anete preparava a melhor refeição que eles teriam até a próxima ida à cidade. A renda da família vinha de objetos de artesanato que o casal fabricava e que João vendia a cada ida na cidade. A família não tinha televisão, não tinha vizinhos, não tinha perspectivas de melhora de vida, porém tinha um rádio que transmitia a vida que a casa precisava: os dramas fictícios das rádio novelas, os dramas reais das notícias, as músicas chorosas que pareciam descrever o dia de João da Silva e família.

Conforme o mês passava, a comida escasseava e se aproximava a data de comprar os alimentos na cidade, a família ficava mais tempo ao lado do rádio para alimentar o tempo e enganar a fome. E todos sentavam às 6 da tarde para ouvir A Mulher do Colar, a rádio novela mais popular da região: afinal, por que ela não tinha nome? Por que ela queria tanto conseguir o colar? Por que ela não tinha família? Eram os mistérios que João da Silva e Anete debatiam o dia todo enquanto produziam as maravilhosas peças de renda e palha e que Guimarães tentava entender escrevendo no caderno desgastado que havia ganhado três anos antes. O sol poente avisou sobre o horário e a família se reuniu mais uma vez sobre a mesa servida com o rádio. Entretanto, a música de abertura da novela não soou e João da Silva foi lá fora olhar se tinha visto a posição errada do sol é confundido a hora. Voltou pra mesa encucado. O locutor logo tratou de resolver o impasse: a hora estava certa, mas havia notícias que não podiam esperar até às 8. E foi desenrolando a informação de uma mazela que não só estava na região, mas no mundo todo. No mundo todo.

A notícia afobou os três. Se algo estava no mundo todo, estava ali também. E a notícia continuava, afirmava que nem precisava encostar na moléstia que ela passava pelo ar de quem estivesse próximo de um contaminado. O desespero então tomou conta da família, afinal nem precisava encostar no doente, bastava respirar o mesmo ar, que coisa! João da Silva e Anete trataram imediatamente de fechar as poucas portas e janelas da casa, o coitado do Guimarães nem teve tempo de pegar seu estimado cachorro Pulguinha que estava lá fora caçando lagarto, pois os pais temiam que o pobre animal já estivesse apregoado pelo bicho virulento.

E fez-se escuro! Só as frestas das falhas estruturais do casebre levavam algum tipo de iluminação ao interior do imóvel. A família agora sentia-se segura. Quase ninguém andava por aquelas bandas, mas se aparecesse um cristão vivo por ali não teria como adoecer a família enclausurada. As frestas serviriam para vigiar a aproximação de qualquer pessoa. E com tudo fechado, os três voltaram para o rádio e continuaram acompanhando a sequência dos fatos até o fim de jornal, momento em que desligaram o rádio sem nem querer saber o que iria acontecer em A Mulher do Colar naquele dia. Estavam perplexos e foi esse o assunto até a hora de dormir.

No dia seguinte, Guimarães acordou, mas como estava escuro, voltou a deitar, talvez a noite estivesse longa. Mas, ao deitar, lembrou que a casa estava completamente vedada e o sol reinava fora dali. Levantou-se para abrir a porta e procurar Pulguinha, mas Anete logo deu um puxão no filho e o repreendeu lembrando da doença mortal que estava no ar. Os três já estavam acordados suando o calor tórrido daquele ambiente lacrado. E foram para o rádio. Foi um dia longo atento ao que se deflagrava no mundo, as notícias eram uníssonas em afirmar que o problema que se gravava, que milhões estavam contaminados, que milhares morriam, que não havia mais hospitais para todos, que era preciso evitar sair de casa. Naquele dia, entre uma notícia e outra, Anete abria os últimos sacos de arroz e feijão para preparar pelos próximos quatro dias. E depois? Como venderiam os objetos de artesanato se não teria ninguém para comprar? Como João da Silva compraria mais alimentos se não teria a renda do artesanato? Como ele poderia sair de casa sem saber se voltaria com saúde? Ou mesmo vivo?

As dúvidas ficavam acentuadas a cada notícia, o escuro reinava no pequeno imóvel, a família suava pelo clima abafado e pelo temor constante. Os dias foram passando, a vigília pelas frestas continuava, mas não visualizavam ninguém se aproximando da casa, a comida estava acabando, já se começava a temer por dois lados: pela doença e pela fome. A rádio já não transmitia mais rádio novela ou músicas, era dia e noite espalhando as atualizações de quem vivia e de quem morria.

Chegou o dia: a comida acabou totalmente. Anete falou que era preciso de alguma forma ir na cidade pegar os alimentos, nem que fosse pedindo, já que não tinham artesanato pra vender. João da Silva falou que nada adiantaria, que não teria ninguém para recebê-los na cidade, que iriam apenas marchar para a morte indo lá. A escuridão da casa não permitia mais que se vissem, apenas ouviam e sentiam uns aos outros. E já sentiam também o clamor da barriga que estava a 2 dias sem ingerir nada, apenas água. Guimarães pedia apenas que colocassem Pulguinha dentro da casa para que ele pudesse se confortar com a cachorrinha, mas João da Silva não cedeu.

No quarto dia de fome, a bateria do rádio acabou, não se alimentavam mais de comida, não se alimentavam mais de notícias. O desespero do desconhecimento dos fatos abalou tanto quanto o desespero do estômago. Agora só restavam as conversas para hipotetizar o que acontecia lá fora. O relógio não parava e os dias acresciam.

A fome habitava o local como quarto morador, opinando mais nas conversas que Anete e João. Até que no sétimo dia sem comer, enfraquecidos e esqueléticos, Anete nem perguntou a João, abriu a porta e foi para a cidade. João da Silva ainda clamou para evitar sua ida e viu pelas frestas a companheira indo longe na estrada e sumindo de vista. Ficou o dia apreensivo, não se ela conseguiria trazer comida, porém se voltaria viva. Guimarães nem falou nada, já não tinha forças para tal. A noite chegou e nada, João da Silva mal conseguia manter os olhos abertos para vigiar as frestas. E o dia amanheceu, acordando João da Silva que estava com a cara enterrada na fresta de cansaço. Viu um ponto longe na estrada, mas não dava pra ter certeza. Virava a cabeça de uma porção a outra da fresta para ver melhor. O ponto foi tomando forma. Era Anete. Viva. Carregando três sacos com alimentos. João da Silva, ainda no escuro, sentiu-se iluminado. A companheira entrou na casa, fechou a porta e logo despejou os sacos no chão. João da Silva quis saber de tudo: como estava o ar? Existiam pessoas? Existiam corpos na rua? Anete respondeu serenamente que tudo havia acabado, que não tinha mais com o que se preocupar.

João da Silva sentiu um alívio purificador e logo foi abrindo as portas e janelas e a luz foi entrando e minando a escuridão. Abriu a porta da frente e dos fundos, janela de um quarto, janela do outro quarto... e a luz clareou tudo, inclusive o que não queria: Anete e Guimarães deitados na cama, calmos, pútridos, com os ossos mais visíveis que os músculos. João da Silva empalideceu, a incredulidade não permitiu que aceitasse a iluminação proposta pela luz solar. A sua sensação de culpa te derrubou no chão, ficou ali hipnotizado pelo dia todo. À noite, se levantou da hipnose que estava, pegou a caneta que o filho usava para escrever no caderno e, temendo que aqueles que encontrassem a casa tivessem medo de enterrar os corpos por contaminação pela mazela, escreveu na porta: MORTOS, MAS PELA FOME. Fechou a casa toda e foi dormir.