O intruso

A trepidação causada pela passagem por sobre um buraco inesperado, ainda na altura dos subúrbios mais distantes, trouxe-lhe de volta ao estado de vigília, após um breve cochilo tormentoso. Nos tempos ainda em que os coletivos do Rio de Janeiro tinham o chamado curral na sua parte de trás, ia ele sentado num banco ao lado do trocador. Dali a poucos segundos passaria pela roleta. Antes, no entanto, perdia-se em reflexões sobre mais um dia em que teria de exercer seu ofício. Eram então 10h e as rodas do ônibus — saído de algum bairro da Zona Oeste — rolavam pela Avenida Brasil em direção ao Centro da cidade.

Caminho que mais fazia lembrar uma estrada para o inferno, tal era o calor — 40º marcavam os termômetros — expelido pelo asfalto, progênie do sol de verão. A temperatura atingia em cheio sua mente, fazendo fervilhar seus miolos. Ele suava em bicas, sua camisa larga encharcada, como se houvesse acabado de tomar uma ducha. Lá fora, o cinza infinito da avenida aumentava o desconforto.

Entregou-se aos pensamentos. Lembrou-se dos três filhos e de suas três mães. As contas atrasadas sobre a mesa da sala. As reprimendas dos pais a respeito de suas atitudes. O fornecedor, que lhe perseguia dia e noite, ameaçando represálias caso a dívida não fosse saldada. Os negócios não iam bem. “É preciso fazer dinheiro”, pensava ele, já convicto de saber como.

Seu destino estava próximo. Levantou-se, indo ao encontro do assento do trocador. Por um instante, deteve-se. Sentiu estranha sensação percorrer-lhe o corpo, desde o cóccix até a primeira vértebra, perpassando toda a sua espinha, tal qual o fogo engolindo o rastilho. Alguém o ouvia.

Não se tratava da audição normal que acompanha o homem com habilidades plenas. Nem ele ao menos emitira um sussurro. Todavia, alguém o escutava. Imaginou estar quedando louco naquele instante. Mas fora real demais para ser apenas ilusão. Sentira como se seus pensamentos, suas emoções, fossem desvelados por um dos passageiros do ônibus. Descobriu-se violado, seus mais íntimos anseios e temores trombeteados para todos os convivas, por mais que o invasor fosse apenas um. Mas o que é pessoal, para ser tornado público, basta apenas vir à tona. E foi o que sucedera, supunha.

Tão feérica sensação lhe escapou momentaneamente, assim que o ônibus, em baixa velocidade, colidiu com outro coletivo, ao arrancar de um ponto sob uma passarela, no subúrbio carioca. O choque fez alguns passageiros, que estavam em pé, serem arremessados para a frente. O pára-brisa do veículo estilhaçou-se em mil pedaços. Um senhor de seus 60 anos, que estava num dos bancos dianteiros, cortou a mão direita quando tombou no soalho. Concomitantemente, um bebê de não mais que seis meses começou a chorar, protegido no colo da mãe. Tomado por insólito senso de colaboração e, ao mesmo tempo, por incômodo crescente, ele pulou a roleta e assomou à baia dos feridos.

Por essa hora o calor parecia multiplicar-se por mil. Uma criança de sete ou oito anos não suportou a sensação térmica e vomitou no piso do coletivo. Rapidamente, o mau cheiro espalhou-se. Ele aproximou-se, então, e estendeu a mão direita para um negro forte, alto, caído no soalho, com a pochete de couro semi-aberta, algumas notas de R$10 à mostra. Sentiu o cheiro acre do suor exalando do corpanzil de ébano. Ao mesmo tempo em que seu estômago embrulhou, deu-se conta novamente da razão de seu desconforto. Agora fora tomado pela certeza de que alguém ali ouvia seus pensamentos.

Mas quem seria o agente de tão desagradável omnipatia? Percorreu o olhar de cada presente, encarando o indizível. Transtornado, o motorista pedia desculpas a todos. Uma mulher de meia idade, exaltada, altercava com o homem, balançando a bolsinha de guardar moedas. “Puta quil pariu, tu tá maluco, seu filho da puta! O que tu pensa que nóis é? Tá achando que é a vaca da tua mãe que tá aqui nessa porra?!”. Acompanhante da mulher, uma garota magricela, de indescritível fealdade, chorava copiosamente.

Um homem de terno, relógio de prata brilhando no pulso e falando ao celular, tentava transpor as barreiras humanas que se colocavam entre ele e a porta do ônibus. “É, Waldemar, o idiota do motorista fez o favor de enfiar a merda do ônibus na traseira do outro e eu vou chegar atrasado...”.

Ele procurava, mas não encontrava, ali entre os passageiros, quem lia sua mente. Mas sabia estar sendo observado, devassado. Lá fora, uma camelô cantava, com voz de contralto, versos de funk adaptados a uma lógica capitalista, tentando atrair a atenção dos curiosos que agora se aglomeravam para ver as conseqüências do pequeno acidente. Logo, a polícia não tardaria a chegar para registrar a ocorrência.

Teve receio ao pensar isso. Fosse como fosse, sua máscara caíra. Do delator não sabia o nome, mas alguém ali o haveria de denunciar se ficasse por mais tempo. E, mesmo que não houvesse contra ele prova evidente, a simples intenção já bastava para lhe conspurcar a imagem. Naquele instante, como que para tentar recuperar a confiança, tocou o revólver que carregava na cintura, oculto sob a camisa. Em seguida, tratou de evadir-se. Mas não sem antes imaginar que, se por um lado sua liberdade poderia ser mantida por algum tempo, por outro seus negócios estavam definitivamente comprometidos. Pois, entre os milhões de habitantes da metrópole, havia alguém que o conhecia — e invadia sua alma.