O Caso da Redenção - Parte III

Aquela segunda-feira amanheceu um tanto atrasada. O céu cinzento e fechado cobria a grande Porto Alegre, que mostrava continuar viva diante de todos aqueles cidadãos. Heitor acordou precisamente às cinco horas da manhã. Precisava acordar neste horário, já que deveria pegar o ônibus de rotina até a redação do Diário e estar lá pontualmente às sete horas.

Com uma densa e ensopada lambida de Haole, Heitor despertou e sentiu uma friúra nas partes intestinais. Acariciou o cão, dobrou simultaneamente os joelhos e afastou as cobertas com os pés. Ao estralar os dedos teve de forçar mais que de costume. Percebeu que o dia estava de alguma forma, fora do comum. Olhou através da janela e, percebendo aquela penumbra, encheu-se de preguiça e agonia.

Levantou-se e se dirigiu ao banho matinal. Renovado e limpo, vestiu-se com uma calça jeans azul escuro, meio desbotada nos joelhos e uma camisa azul de botão, enfiada dentro das calças. Calçou os coturnos de seu pai e, com grande satisfação, vestiu sua jaqueta de couro marrom.

Preparou o café da manhã; uma caneca com café preto, alguns biscoitos de maisena e um pão torrado com manteiga. Após terminar a refeição apanhou o papel que estava sobre o balcão de mármore da cozinha, onde deixou na noite anterior. Serviu-se com outra caneca de café e sentou-se em frente ao balcão, contemplando o texto. Mais uma vez sentiu-se satisfeito com o trabalho. Não escrevia assim desde os tempos de faculdade.

Como já eram quase seis horas, Heitor dobrou o papel em quatro e enfiou-o no bolso da calça. Apressado, saiu de casa sem nem mesmo despedir-se de Haole, que ficou choramingando atrás da porta.

A Rua Mostardeiro parecia a mesma naquela manhã. Os mesmos mendigos dormindo embaixo das proteções dos edifícios e lojas, o trânsito “sufocado” pelos tantos carros que despertavam a cada manhã na grande Porto Alegre, o mesmo zumbido de tantas outras pessoas que, como Heitor, seguiam habitualmente a seus afazeres.

Chegando à redação do Diário Gaúcho, Heitor deparou-se com uma cena que raramente tivera a oportunidade de presenciar em toda sua carreira como jornalista. As portas fechadas. Simplesmente lacradas. Ficou sem reação. Então um grito o chamava no meio do formigueiro de gente.

“Heitor!”

Olhou para a sua direita, de onde ouviu o grito e facilmente reconheceu o rosto. Era Mário Cunha, seu companheiro de profissão e velho amigo de faculdade.

Mário Cunha, 48 anos. Cursou jornalismo com Heitor na faculdade federal de Porto Alegre, mas se formou um ano depois, devido a uma viagem um tanto desagradável que tomou conta da sua vida naquela época.

Sua mãe, que morava em Rio Grande, no extremo sul do estado, fora diagnosticada com câncer. Uma sentença que fez com que Mário sentisse que precisava passar os últimos dias da mãe ao seu lado. E foi o que fez.

Foram exatamente oitenta e sete dias de luta, consternação e agonia. Mas foi o bastante para que Mário se despedisse informalmente de sua mãe.

Depois disso, Mário voltara à faculdade para terminar seu curso. Sempre foi um apaixonado pela carreira. Nunca deixou de escrever algo sobre os fatos que rondavam a grande Porto Alegre a cada dia. E aquele era outro dia normal.

“Fala tchê! O que houve aqui?” perguntou Heitor, estendendo a mão direita para cumprimentar o companheiro.

“Não sei” Respondeu Mário, devolvendo o aperto de mão do colega. “O que sei é que estou aqui faz meia hora e, logo que cheguei, havia um delegado da Polícia Federal à sua procura.” Complementou.

“Como? À minha procura? Como pode?” Perguntou Heitor, espantado.

“Eu que pergunto tchê! Vamos tomar um café e tu me explicas isto direitinho...”

“Longa história... Vamos então meu velho.” Replicou Heitor, virando-se em direção à rua.

Os dois atravessaram a rua e, proseando como nos velhos tempos de faculdade, foram tomar um café.

Daniel Pereira
Enviado por Daniel Pereira em 26/11/2007
Reeditado em 26/11/2007
Código do texto: T753479
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