Obsessão e Devaneio

Tenho muito medo das coisas que posso fazer e que podem causar danos a alguém, ou a mim mesmo, pelo fato de não poder voltar ao passado para consertá-las.

Sempre penso muito antes de fazer algo que tenha a possibilidade de dar errado. Sei que todos estão sujeitos a erros, mas existem coisas que acontecem, como certos acidentes provocados pela falta de atenção, que não me permitem repousar em paz durante muitos dias. Um exemplo para isso é um fato que me ocorreu há pouco tempo. Trata-se do seguinte: eu caminhava rumo à casa de um grande amigo, por volta das dez da noite, quando resolvi parar num bar para tomar alguma bebida, não que eu estivesse com sede, parei apenas por não ter pressa alguma em minha viagem.

Perto de mim, num canto isolado do bar, dois rapazes, cujos semblantes não me inspiravam confiança, conversavam de tal maneira que eu poderia ouvir se prestasse muita atenção, pois falavam baixo, mas preferi dar atenção ao som dos músicos que se encontravam distantes de mim. Lembro-me de ouvir um deles usando a palavra “bomba” quando os músicos fizeram uma pausa, mas ignorei pensando que a usavam no sentido figurado.

Logo saíram apressados do bar e, após cerca de cinco minutos, também me retirei e prossegui em minha viagem.

Tendo decorrido pouco mais de dez minutos de caminhada, avistei, saindo de uma casa, os dois rapazes que há pouco estavam no bar. Traziam semblantes incomuns nas pessoas que possuem a consciência limpa.

Estava eu a uns dez ou quinze metros de distância dessa casa e logo que cheguei diante dela, senti certa e inexplicável vontade de tocar a campainha que via ao lado direito da porta, como se algo me dissesse que o deveria fazer, mas, não achando motivos para isso, prossegui viagem.

Ao distanciar-me cerca de quarenta metros daquela casa, ouvi um estrondo em meio ao silêncio cujo som quase me arrancou a vida: era uma explosão, a explosão de uma bomba!

Retornei muito assustado para descobrir o que havia provocado aquele som e logo vi que aquela casa (a mesma que acabara de passar em frente e fitar a campainha) era o que havia explodido.

Entrei com muita voracidade por entre os escombros em meio ao fogo que havia tomado conta do interior da residência (uma vez que ela não havia desmoronado por completo) a fim de encontrar alguma alma viva.

Após ser afetado com queimaduras de primeiro grau em certas partes de meu corpo, avistei a silhueta de uma criança estirada ao chão que, pelo tamanho, não deveria ter mais de três anos de idade. Faltava-lhe um braço e parte de uma perna. Não acreditava no que via. Meus olhos encheram-se de lágrimas com a atrocidade da cena. Logo à frente havia outro corpo, o de uma mulher, provavelmente a mãe da criança. Seu corpo estava inteiro, não lhe faltava nenhuma parte embora o mesmo achava-se parcialmente corroído e carbonizado, o que dificultaria o reconhecimento da pessoa em questão.

Mesmo sendo ferido pelas chamas, não resisti a tudo aquilo e caí de joelhos entregue a um pranto terrível. Quando estava prestes a perder os sentidos senti que braços seguravam-me por trás impedindo minha queda. Os bombeiros chegaram ao lugar.

Acordei no hospital e logo tomei conhecimento do motivo de estar ali, o que me evitou um grande susto. Em seguida, comecei a pensar no que havia acontecido com aquela mulher e com aquela criança. Eu poderia ter impedido tudo aquilo se não fosse minha falta de atenção na conversa daqueles dois assassinos no bar. Minha falta de atenção evitou que fossem salvas duas vidas, o que para mim tornara-se imperdoável.

Logo tive alta e fiquei bem, com exceção do trauma mental que agora me perseguia. Desde então tomo muito cuidado com o que faço ou com o que deixo de fazer por temer seriamente um acidente causado por minha causa. O caso que citei acima não foi fruto de um acidente, mas algo provocado por homens frios, gente disposta a tirar vidas de inocentes para se vingar de seus inimigos. Mesmo assim eu poderia tê-las livrado da morte caso não houvesse mantido minha atenção naqueles músicos medíocres do bar.

Passaram-se seis longos anos desde esse fato horrível quando me vi apaixonado por Valéria. Conheci-a na faculdade e logo passei a amá-la como nunca pensei ser possível amar alguém. Combinávamos perfeitamente bem nos gostos e era raro encontrar algo ou uma situação em que não nos dávamos bem.

Noivamos. Estávamos com o casamento marcado para o meio do ano, que já se aproximava, quando ela recebeu uma mensagem de seu pai que morava em Gênova. Ele clamava pela presença da filha, uma vez que sua vida estava sendo destruída por um câncer que lhe devorava a alma.

Mesmo rezando sempre a Javé a fim de livrar-me de uma situação onde eu pudesse, por descuido, prejudicar a Valéria, sempre temi muito isso. Na verdade não havia algo que temesse tanto. O fato que narrei acerca da mãe e da criança serviu para justificar o motivo principal de todo esse meu medo.

Minha intenção primordial com essa narrativa, porém, é apresentar uma série de acontecimentos gerados por um pequeno descuido e, sem dúvida, guiados pela Teoria do Caos. O que narrarei a seguir foi responsável por quase me arrancar do mundo dos vivos justamente por se alinhar ao infortúnio que mais temia:

A data é 27 de abril de 1999, encontro-me dentro de um aeroporto junto à minha amada por ocasião da sua viagem ao encontro do pai.

Como de costume e devido ao medo de um possível assassino que possa prejudicar Valéria, trago comigo um pequeno frasco contendo curare e uma pequena seta de madeira cuja ponta está concentrada com a substância mortal. Guardo-os no bolso de meu casaco de modo que ninguém, nem mesmo Valéria, saiba de suas existências. Em caso de emergência (como a que citei acima), basta que eu tome posse dessa seta e a use para perfurar o mínimo que seja a pele do assassino. Ao penetrar na corrente sanguínea, o curare logo travará as vias respiratórias do indivíduo e o presenteará com uma dolorosa morte.

Tomo extrema cautela para que a seta mantenha-se sempre numa posição na qual seja impossível sua penetração em mim mesmo, o que poderia ser efetuado por meio de um abraço ou um esbarrão. Mantenho-a sempre na horizontal do meu bolso. Periodicamente levo minha mão até o mesmo e tomo precaução de segurar a seta pelo lado oposto ao da ponta a fim de não agregar parte do veneno em minha mão, pois isso poderia acarretar a uma desgraça. Também toco (muitas vezes por acidente) no pequeno recipiente que contém certa quantidade do veneno a fim de confirmar a posição deitada da seta.

Talvez a agitação de meu bolso ou mesmo um descuido de minha parte (embora eu seja muito cuidadoso com isso) fez com que o recipiente em meu casaco não permanecesse lacrado, o que levou algumas gotas da substância maldita até o fundo do bolso onde estava.

Pouco antes de despedir-me de Valéria, conferi a posição da seta e acidentalmente toquei na substância que molhou levemente o fundo do bolso. Então levei minha mão até o ombro dela, ao despedir-me, e isso fixou ali certa quantia da substância que estava em meus dedos. Falo de uma quantidade bem pequena, uma vez que sequer senti que estava em meus dedos.

Embarcou, por fim, no avião que logo decolou. Não pude acompanhá-la nessa viagem, pois minha mãe encontrava-se numa crítica situação mental e precisava de mim. A demência estava tomando conta de sua pobre pessoa.

Sentada em sua poltrona, Valéria foi gentilmente atendida por uma aeromoça que, por infelicidade do destino (ou da desgraça, como prefiro dizer), havia provocado, acidentalmente, um pequeno corte no indicador de sua mão direita ao lidar com alguns objetos cortantes.

A aeromoça ofereceu algumas guloseimas à Valéria e, após orientá-la a respeito da viagem, despediu-se com aquele gesto cotidiano de levar a mão direita até o ombro da pessoa.

Quis a desgraça que o corte de seu dedo entrasse em contato com a região do ombro de Valéria onde havia uma minúscula quantidade de curare, e esse penetrou pelo corte!

Segundos mais tarde, a aeromoça foi tomada por um ataque que a levou ao piso do avião. Ela se retorcia em desespero, recusando entregar sua vida nas mãos lúgubres da morte.

O piloto, que tinha um caso afetivo com essa aeromoça, logo foi avisado e, com o pouco que sabia de primeiros socorros, dirigiu-se às pressas até a aeromoça. O copiloto, irmão da aeromoça em questão, correu para ver o que ocorria com ela. Estavam desesperadamente concentrados na vida da jovem aeromoça. Tinham em mente que o piloto automático poderia guiar o avião enquanto estavam ausentes. A questão era a seguinte: quem o havia ativado? A notícia do ataque da jovem aeromoça transferiu suas atenções de uma forma tão intensa e imediata que ambos esqueceram de ativar o piloto automático! Perceberam isso quando seus tempos de vida haviam chegado ao fim: o avião logo perdeu o controle e se chocou violentamente contra um pico montanhoso. Ninguém sobreviveu.

Caí de joelhos quando soube desse fato terrível. Me recusava a crer que um descuido de minha parte havia acabado com a vida de várias pessoas e de minha amada Valéria.

Pranteei dolorosamente enquanto implorava a Deus para que me permitisse voltar no tempo a fim de consertar o que eu havia feito. Sei que Deus não concede essa possibilidade aos pobres mortais, mas eu insistia para que quebrasse essa regra somente dessa vez.

Como todos podem prever, Ele não quebrou a regra por minha causa. Isso me compeliu a tomar a decisão de nunca mais causar prejuízo a alguém.

Levantei-me e fui até o interior de minha casa decidido a fazer o que tinha em mente. Chegando ao meu quarto, abri a porta do guarda-roupa e tomei posse de uma caixa onde guardava um recipiente com o temível e mortal curare.

Peguei o canivete que usava para afiar a ponta das setas e fiz um corte em minha mão esquerda. Removi a rolha do recipiente que continha o veneno e, olhando para cima, disse em voz alta:

“Nunca mais prejudicarei alguém como já fiz nessa vida fútil e torpe, só gostaria de uma chance de livrar a vida de Valéria e daquelas outras vítimas do avião… Ajudei-me, ó Grandiosa Providência…”

Em seguida, pensando não poder mais contar com a ajuda divina, virei o recipiente de veneno sobre o corte provocado pelo canivete. Antes, porém, que a primeira gota o tocasse, fui acordado por Valéria, que me trazia o café na cama.

Aparentemente tudo não havia passado de um sonho. Não conseguia conter minha felicidade de ver minha amada viva e ao meu lado. Abracei-a com tanta força que chegou a causar-lhe espanto.

O que não queria sair de minha mente era o seguinte: tudo aquilo parecia um mero sonho provocado por uma mente obsessiva, mas também é possível concluir que a Majestosa Providência havia concedido aquela segunda chance que eu tanto havia implorado.

Março de 2006

Alexandre Grasselli
Enviado por Alexandre Grasselli em 13/07/2022
Reeditado em 13/07/2022
Código do texto: T7558691
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