Por milagre, caridade e misericórdia

 

     Seu Zeca Lorota é um velhinho simpático que gosta de contar algumas mentiras inocentes. Mas de uns tempos para cá o povo da cidade Devoção, onde passou a morar desde a década de 1980, anda muito desconfiado.

 

     Ele que chegou na cidade já maduro, na casa dos quarenta anos e se dizendo um pesquisador, nunca se casou, mas agora deu de dizer que é o grande patriarca da cidade.

 

     Anda dizendo que para Santo só lhe falta um nome porque ninguém vai querer rezar missa em nome de Zeca Lorota. Onde já se viu? Santo tem que ter um nome decente! Distinto. Mas o seu não passa confiança.

 

O povo cai na risada...

 

Mas ninguém leva o velho loroteiro muito a sério. Somente lhe dá ouvidos algum tipo de forasteiro. Assim mesmo até terminar o primeiro lote de anedotas.

 

     Dia desses chegaram na pequena cidade uns professores universitários acompanhados dos seus alunos.      Ouviram dizer do Santo não canonizado que vivia em Devoção e resolveram conhecê-lo. Chegaram numa comitiva de pelo menos 15 pessoas, entre estudantes e pesquisadores. 

   E a razão: A última lorota do velho Zeca que cruzou as fronteiras do município de tão estapafúrdia.

   

  Ele começou a espalhar que é o pai de pelo menos uns quinhentos habitantes. Logo é o grande povoador daquele lugar. E já estava espalhando que Nossa Senhora estava pensando em aposentá-lo do serviço. Só estava esperando o novo forasteiro para tomar o seu posto.

 

     Mas a lorota cabeluda causou alvoroço até nas melhores famílias e a notícia foi parar na capital. Ele, para se defender, se declara inocente. Que não tem culpa de nada pois foi só um instrumento da Padroeira da localidade - A Virgem da Conceição. Que só fazia o que ela lhe ordenava.

    

    Quando os estudiosos chegaram e foram levados ao local onde Seu Zeca morava, este os recebeu com simpatia. Disse que já os estava esperando. Que a Virgem Mãe nunca lhe deixara na mão. Que já estava cansado e sua aposentadoria agora ia sair.

   

   A princípio os Antropólogos e seus alunos ficaram achando que ele era demente. Mas logo viram que não. E começaram a perguntar as razões de ele estar alardeando tais absurdo sobre a paternidade generalizada.

 

    __  Absurdos não meus rapazes. Eu só cumpri ordens da minha Madrinha: A Virgem da Conceição.

As primeiras gerações foram por milagre. E eu teria parado por ali de bom grado, mas a Virgem ficou com dó do povo de Devoção por causa da feiura e me deu uma nova incumbência. Dessa vez por caridade.

    

    Nesse momento um dos alunos mais gaiatos perguntou:

__Quantas foram dessa vez?

     Seu Zeca percebendo a chacota respondeu:

__ Todas as que a Virgem mandou me procurar eu servi de boa vontade. Mas não dava para guardar a fisionomia de tanta mulher feia. Aliás, elas bem que podiam ser as mesmas pois no escuro não dava para diferenciar.

  

   Os caras novamente caíram na risada.

 

__ Mas eu achei de me queixar para a Virgem. Continuou seu Zeca.

     Reclamei do serviço que ela me deu e fui punido. Passei quase dez anos sem poder fazer nada. Ainda que eu me interessava por alguém não vingava.

 

 As risadas se repetiram.

 

__ Então voltei lá na igreja e me coloquei de novo a serviço da Virgem.    

  Passei mais outra temporada cumprindo minha penitência. Servindo a minha querida Devoção.

 

  O povo foi ficando mais bonito. E eu fui ficando velho...

 

  Agora estou na última fase. E só cumpro meus afazeres vez ou outra por misericórdia!

 

   Agora era que se ouviam mais gargalhadas. Não teve quem não sorrisse do jeito como seu Zeca falou aquilo. O duplo sentido caiu como uma luva no meio de tantas mentes maliciosas.

 

     Mas aí um dos pesquisadores mais sérios perguntou quando e como aquele compromisso dele com a Virgem da Conceição havia começado.

   

  Seu Zeca puxou pela memória e se concentrou. Então começou a dizer que chegara à cidade há muitos anos e a primeira coisa que fizera foi ir até a igreja para vê-la. 

E fora ali que tudo começara.

     Contou que no banco da frente da igreja tinha uma moça muito linda sentada. De início não vira seus olhos, só percebeu que era muito Jovem mas já usava aliança. Estava com a cabeça coberta por um véu escuro que não deixava ver a cor dos cabelos, mas pela brancura da pele de suas mãos ele presumiu serem loiros.

 

     Ficou em pé diante da estátua do altar por alguns minutos. Então ouviu o som de um pigarro mal disfarçado. E olhou na direção da moça que o mirava com os olhos mais verdes que ele já vira, porém irados.

    Talvez por achá-lo desrespeitoso, já que não se curvara diante do altar.

     Paralisou.

     No mesmo instante ouviu uma voz em sua mente dizer:

__ É ela!

     E lembrou-se do sonho que tivera com a Virgem da conceição. Era a mesma voz e os olhos verdes também.      Mas agora estava confuso. Se a voz dizia “é ela”, então aquela moça não podia ser a própria Virgem.

    

     Quando pensou em se aproximar a moça já se levantava e saia pela lateral da igreja. E ele ficou só olhando enquanto ela desaparecia pela porta no fim do corredor.

     Ficou ali por mais alguns segundos e foi embora. Não sem antes indagar da Virgem o que ela queria.

     E novamente a voz na sua mente respondeu-lhe:

__ Um milagre!

     Um milagre! Repetiu alto.

De onde tirara aquilo? Não era nenhum santo para ficar achando que era capaz de fazer milagres. Devia tá ficando fora de juízo.

     

    Zeca contou que, ainda confuso, saiu da igreja e se dirigiu até a única pousada da cidade. Se registrou e ao receber as chaves havia só uma no chaveiro. Achou aquilo estranho pois todos os outros tinham duas chaves iguais penduradas.

     Mas não fez caso daquilo e seguiu com a bagagem para o quarto. Estava cansado e com fome. Queria tomar um banho e comer alguma coisa para depois dormir por umas boas horas. Estava precisado...

     Chegou no quarto colocou a mala numa cadeira do lado de uma janela cujas cortinas estavam fechadas.      Pensou em abri-las mas desistiu e pegou uma muda de roupa da mala e pôs em cima da cama. Em seguida pegou uma toalha e foi tomar banho.

    

      Na volta do banheiro ficou paralisado de novo. A moça da igreja estava ali. E sem dizer uma palavra se aproximou dele, retirou a toalha em que havia se enrolado e deixou cair o véu escuro que a cobria por inteiro.

     Zeca não viu mais nada. Só sentiu. O instinto fez tudo pois a razão não estava mais ali.

     Quando tudo terminou ele voltou ao banheiro para se limpar e esperou que a moça imprudente fosse fazer o mesmo mas, para sua total surpresa, quando voltou ao quarto ela já não estava mais. Sumira como fizera na igreja.

 

     Ele ainda tentou encontrá-la várias vezes na cidade. Indagara de muitas maneiras quem era a moça do véu, mas ninguém a viu ou conhecia alguém com olhos tão verdes como ele descrevia.

   

     Nesse momento um dos professores da comitiva chegou mais perto para ouvi-lo e Zeca reparou que tinha os olhos tão verdes quantos os da moça que conhecera, e suas feições lhe pareciam um tanto quanto familiares.

     Os olhos do homem também deram sinal de que aquela história fazia-lhe algum sentido.

   

     Mas logo alguém fez uma nova pergunta:

__ Você a encontrou?

     E Seu Zeca voltou-se para responder:

__ Antes tivesse encontrado. A teria pedido em casamento. Mas não era a vontade da Virgem. Depois dessa moça misteriosa não tive mais sossego. Precisei alugar uma casa porque fui expulso da pensão.

 

     Perdi as contas de quantos milagres e caridades eu tive que fazer em Devoção. E ainda continuo fazendo por misericórdia, só que agora estou cumprindo meus últimos dias de penitência.

 

     Novamente os estudiosos deram risadas.

 

     Só um homem ali presente não sorriu. Apenas assentiu com a cabeça.

  

     No dia seguinte seu Zeca deixou a cidade de Devoção.

     Dizem que foi para não ter que fazer o DNA nem se explicar para a polícia já que estava espalhando calúnias contra as mulheres da cidade.

 

     Mas vai saber a verdade...

 

     Da comitiva apenas um pesquisador não voltou para a capital...

     Está tentando entender até agora os desígnios da Virgem da Conceição...

 

     Adriribeiro/@adri.poesias

 

 

Adriribeiro
Enviado por Adriribeiro em 12/10/2022
Reeditado em 25/04/2024
Código do texto: T7626070
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