*Adriana Ribeiro

      

 Assombração de morão de cancela é estória comum em cidade pequena, mas eu nunca tinha ouvido um relato de aparição fantasmagórica tão inusitado quanto o que presenciei na tarde de ontem entre alguns vaqueiros reunidos numa roda de apartação e marcação de animais da pequena fazenda São João, propriedade de um amigo da família.

     Entre os vaqueiros mais velhos tinha um senhor simpático e cheio de prosa chamado Seu Abelardo. Os amigos de longa data o chamavam de Seu Abel, o Velho-macho, por ser um sujeito ativo, falante e corajoso.

     Famoso aboiador, toda hora puxava uma toada e até arremedava o toque dum berrante. O povo da região sul gosta de chamá-lo para os eventos porque é diversão garantida nesses tipos de festas rurais.

 

     Instigado por um dos colegas de profissão, resolveu contar a quem quisesse ouvir um causo de assombração que vivenciou quando era um rapazote de vinte poucos anos.

     Contou que sempre foi um cabra que gostava de coisa boa e andava sempre muito bem arrumado. Segundo ele, o relógio Orient na década de 1970 era artigo de luxo. Objeto de desejo de quem tinha dinheiro. Mas ele era um jovem vaidoso e gostava de ostentar, por isso não se apartava de um.

 

     Sendo o filho do meio de um velho fazendeiro - que deu cabo da fortuna antes de morrer para não deixar herança para os filhos pois dizia que estes não o ajudaram em nada a não ser a aumentar as despesas que já tinha com a propriedade - o rapaz era um ex-rico com manias de grandeza. E assim que recebeu de herança os sete alqueires de terra, única coisa que o pai não conseguiu se desfazer completamente sob pena de não terem onde morar,  tratou de vender um pedaço ao irmão mais velho para comprar algumas coisas que considerava importantes, entre as quais o relógio oriente que tanto cobiçava.

 

__ Escolhi um modelo de última geração, o Orient Jaguar Focus, num tom de verde degradê devido ao vidro multifaces. E comprei sem pechinchar. Gabou-se.

__ Já saí da loja com o bichão no braço. Passei no mercado de couro, comprei arreios novos para uma mula fogosa e recém-amansada que também tinha herdado e umas peças de roupa que estava precisando.

     Segundo ele, só gostava de camisas de mangas compridas e por isso escolheu logo três de cores diferentes e duas calças de brim para revezar. Ainda passou num armazém para comprar mais algumas coisas que considerava necessárias, entre elas um par de botas de couro, um facão e uma faca peixeira, ambos com bainhas de couro e fivelas. Não tinha arma de fogo, mas gostava de andar prevenido. Reforçou.

 

     Quando os amigos questionaram sua valentia, justificou que morava em uma fazenda afastada da cidade e naquela ocasião já não tinha mais as costas quentes do velho Coronel seu pai. Que embora não fosse militar, gozava do prestígio que o título adquirido por clientelismo lhe dava.

 

     Mas voltando ao relato do episódio mal assombrado, Seu Abel contou que havia arranjado casamento lá para as bandas duma fazenda num povoado chamado Camboatá, situado entre as cidades de Arauá e Itabaianinha no Estado de Sergipe.

     Contou que o fato aconteceu quando já estava de casamento marcado e foi passar um final de semana na casa dos futuros sogros, pois sempre que tirava um tempo para ir visitar a noiva, devido à distância, precisava ir para dormir.

     No final de semana em questão, o então jovem vaidoso, Abelardo Ribeiro, se arrumou todo. Se perfumou, arriou a mula e colocou o relógio oriente novinho no braço para não perder a oportunidade de mostrar aos sogros, aos cunhados e à noiva naturalmente.

     Quando o Sol começou a cair o rapaz pegou a estrada e por volta das dezoito horas o escuro completo se fez, pois em fins de outono na hora da Ave Maria a noite já caíra e a lua ainda não havia saído.

     Ao chegar na última casa da cidade onde havia uma venda resolveu apear a mula para tomar uma bebida ante de pegar o trecho deserto da estrada em que só iria ver pastos e pequenas matas. Além disso o frio estava começando a incomodar e pelos seus cálculos ainda levaria mais de uma hora até chegar na casa da noiva.

     

     Entrou na bodega da beira da estrada e se dirigiu ao balcão cheio de mercadorias espalhadas sobre a tábua escura onde se cortava desde a charque até o fumo de rolo curtido. Tudo ali aliás cheirava a três Artigos: fumo, charque e cachaça.

     Já no pé do balcão pediu uma dose de milone ao Senhor que o atendeu. Não era mais o antigo dono, que havia morrido fazia alguns meses quando fora fazer um tratamento de hepatite em são Paulo e por lá mesmo fora enterrado. Agora era um filho que atendia os clientes. E dava para sentir a diferença no atendimento frio onde antes era cortês.

     O homem o serviu sem dar uma palavra e Abel já ia tomar a sua dose quando um tapa amistoso nas costas quase o fez se arrepender de apear, pois a bebida se agitou no copo-medidor e esparramou um pouco em cima do balcão. Por pouco não foi sobre a camisa do viajante.

     Mas ao rever o amigo Zé Cardoso, o palavrão que se formou em sua boca foi logo substituído por um:

__ Ei, meu irmão! Bom te ver por aqui!

     O amigo, vendo-o todo arrumado, não conseguiu conter a curiosidade e perguntou:

__ Aonde o amigo está indo assim tão bem apessoado?

     O rapaz então sorriu e respondeu:

__ Tô indo na Fazenda Salobro ver minha noiva. Vou me casar meu amigo! Tá na hora de formar uma família para tomar conta das terras que meu pai me deixou.

__ Arre égua homem, não tinha moça bonita na cidade não pra você ir noivar nos confins do Camboatá?

     E os dois caíram na rizada.

__ Tem sim meu amigo! Mas não igual a minha Maria.

     Zé Cardoso deu uma piscadela de olho e disse:

_ É! Pelo visto essa Maria deve de ser realmente muito bonita, para fazer o amigo esquecer até as visagens que vai ver no caminho até lá.

__ Por falar nisso, por que tomou essa rota?

     Zé Cardoso se referia à estrada da fazenda Buril que cortava caminho até a fazenda Salobro. Uma estrada velha e bastante conhecida por suas estórias de episódios de assombração.

     Mas o jovem Abel não acreditava nesses relatos e como nunca vira nada dessa natureza também não acreditava que assombração existisse. Mas não disse nada ao amigo. Apenas tomou sua bebida e começou a se despedir para retomar sua viagem.

     O amigo então disse que ele podia pegar a estrada que a bebida era por sua conta. E era melhor que fosse logo enquanto era cedo.

     Abelardo Ribeiro não rejeitou a cortesia. Pegou uma capa de fumo, pôs na boca e começou a mastigar. Em seguida bateu a aba do chapéu de baeta preto no peito da mão esquerda e saiu da venda em direção a sua mula.      Após colocar o chapéu na cabeça e montar no animal, deu a volta no apeador e partiu em direção à escuridão da noite.

     Na curva da "baixa da Buril" havia uma cancela antiga de morão reforçado pois a mesma dava acesso a um velho sítio de Jenipapo. Matéria-prima do vinho e do vinagre produzidos no alambique da fazenda.

     A tal cancela era tida por todos como uma das três cancelas mal-assombradas do percurso até a fazenda, e ao que tudo levava a crer, a mula não queria passar por ela. Pois começou a andar para trás e quando era esporada dava coices e andava de lado.

     Exímio montador, Abel começou a se impacientar e bater no animal.

     Mas não tinha jeito. O rapaz não via nada e por isso nada temia mas desceu da mula, pegou as rédeas e começou a andar conduzindo o animal que vez ou outra assoprava e andava de lado até que finalmente atravessaram o trecho da cancela.

     Depois de já ter andado uma certa distância, Abel voltou a montar para seguir viagem normalmente e sem nenhuma razão especial olhou para trás e teve a impressão de ver um menino de branco acenando pra ele de cima da cancela onde estava sentado.

     Balançou a cabeça. Devia tá impressionado por causa da mula medrosa.

 

     Passaram pelo trecho da sede da fazenda Buril sem problemas. Mas ao chegar no passadiço de ferro que separava a mesma da Fazenda Bomfim, a mula deu um salto para trás que se o rapaz não fosse ligeiro teria caído estatelado.

__ Burra sua diaba! Quer me derrubar? Reclamou o rapaz que já estava sem paciência e soltou uma série de palavrões.

     E como o animal não passava de jeito nenhum sobre a grade de ferro, ele manobrou as rédeas do animal para se dirigir ao desvio que era fechado por uma segunda cancela tão grande quanto a do sítio velho.

     Olhando diretamente para a cancela Abel reparou num vulto de homem adulto encostado no morão principal. E ao avistar aquela pessoa encostada na madeira que sustentava a porteira, os pelos dos braços do jovem cavaleiro se eriçaram e um calafrio o fez estremecer.

     A mula voltou a se afastar de costas e um vento estranho balançou com força os galhos dum pé de juá de boi que havia ali ao lado da cerca.

    Com o barulho do vento a mula corcoveou e caiu de lado devido a espora que o rapaz cravou no vazio do animal.

     Na queda os dois ficaram se debatendo, parte da mula havia prensado a perna esquerda do rapaz, mas logo a mula se levantava e se não fosse o hábito que ele tinha de segurar a ponta do cabresto para rodar acima da cabeça do animal simulando um chicote, ela teria escapado.

     Depois de alguns minutos lutando para acalmar a mula e conseguir fazê-la passar pela segunda cancela mesmo arrastada o rapaz voltou a olhar para o morão da cancela e já não viu mais nenhuma forma estranha. Pelo visto a mula também não via mais nada porque passou pela cancela sem muitos melindres.

     Mas assim que o rapaz tornou a montar ela saiu em disparada pela estrada afora e só parou novamente à beira de um riacho e se tocou dentro da água para beber e resfolegar.

     

     Saciada a sede da mula, o rapaz também passou a mão molhada no rosto e pescoço porque estava todo suado de esforço e medo. Dali a instantes retomaram a viagem. Abel ainda estava bastante contrariado, mas a mula já lhes parecia mais tranquila.

     Começaram a subir um trecho da estrada de ladeira íngreme e assim os passos foram ficando mais lentos. E à medida que a mula ia subindo uma conversação começava a se fazer ouvir. As orelhas da mula começaram a dar sinais de que eles estavam se aproximando de gente e o rapaz começou a ficar alerta pois a burra já dava sinais de inquietação.

     Assim que a ladeira ficou para trás o jovem avistou a última cancela. Por dentro já estava dando graças por ter conseguido vencer o percurso apesar dos entreveros. Mas como nunca é bom comemorar antes do tempo, a mula começou a virar o pescoço como se desejasse voltar por onde vieram e Abel percebeu que três pessoas se aproximavam de ambos antes mesmo de haverem chegado à cancela.

     Dessa vez, já bem irritado, Abel apeou do animal, amarrou o cabresto do mesmo num poste da cerca ali perto, puxou o facão e a faca da bainha e se preparou para o embate. E enquanto a mula corcoveava para se soltar da corda amarrada na estaca da cerca, ele riscava o facão no chão e em seguida passava a faca na lâmina, fazendo um barulho de metal estridente com choque dos objetos.

     A uns cinco metros de distância dos três espectros ele reparou que se tratava de um menino, um homem adulto e um velho ancião.

     Os três pararam com as mãos estendidas e disseram!

__ Esteja em paz viajante! Não queremos lhe fazer mal algum.

     Abel então perguntou:

__ Quem são vocês?

__ O ancião respondeu primeiro e disse:

__ Eu fui ontem! Já não sou mais. Pegue aqui que tá pesado.

     E caminhou em direção a Abel que não soube por que fechou os olhos e só sentiu uma fumaça de charuto fresco passando por ele.

 

     O segundo vulto branco era de um homem e também respondeu:

__ Eu sou hoje. E aqui estou. Pegue aqui que tá pesado.

     E dizendo isso também se aproximou de Abel, que desta vez, por se tratar de outro homem, fantasma ou não, rodopiou seu facão mas cortou apenas o ar.

__ Na sequência o menino fez menção de se aproximar e disse:

__ Eu serei Amanhã! Não temas! Pegue aqui que tá pesado!

     Mas o rapaz também não obedeceu. E o menino passou por ele como uma brisa suave e mais agradável que os outros dois.

     Quando tudo se acalmou Abel guardou o facão e a faca, desamarrou a mula e atravessou a cancela a pé puxando-a como das outras vezes. Mais adiante tornou a montar e depois de alguns minutos de trajeto chegou ao destino.

     Mas chegou muito tarde e num estado tão lastimável que resolveu não chamar ninguém. Mas os cachorros não colaboraram. Seu Afonso, seu futuro sogro abriu a porta de cima e pôs a cabeça para fora pra ver de quem se tratava.      Pela cara dava pra ver que não esperava mais visita.

    Mas deparou-se com o futuro genro todo sujo de poeira e amarrotado como se tivesse passado uma semana na estrada, e então abriu a porta completamente para saber o que havia acontecido.

     Abel sentou-se na calçada do alpendre e, ainda tremendo, contou ao futuro sogro o que havia acontecido na viagem.

     O velho só balançava a cabeça de vez em quando concordando. E depois que Abel narrou toda a sua miserável saga noturna apenas perguntou:

__ Eles tentaram te dar alguma coisa muito pesada?

     Abel olhou estranhamente para o sogro e disse:

__ Como o Senhor sabe?

__ Ora meu rapaz, você não foi o único que passou por essa situação.

     Mas uma coisa eu lhe garanto, cabra macho. Você foi o único que conseguiu passar pelas três cancelas sem correr, devia ter aceitado os presentes.

__ Sei não seu Afonso. Nunca vi ninguém que se chama Ontem, Hoje e Amanhã dar nada a ninguém.

    

     De repente olhou para o braço esquerdo sentindo falta de algo.

     E ao dar-se pela ausência do relógio oriente novinho que estava no pulso antes de pegar a estrada, continuou:

__ Já tomar, acho que acabo de ver...

 

 

   Quando terminou de contar a sua saga Seu Abel coçou a barba branca e falou pensativo:

__Hum! Eu só queria era saber qual dos três tinha tanto bom gosto quanto eu naquela época. 

 

    E os piões relaxaram.

 

    Mas um dos velhos amigos mais humorados gritou do meio da boiada.

___ O mais vivo dos quatro!

 

    Seu Abel ficou quieto por uns instantes e respondeu.

___ Se eu não tivesse visto tudo com os meus próprios olhos também diria isso.  

     Mas pelo sim ou pelo não, voltei no dia seguinte com sol a pino. Passar em morão de cancela de noite nunca mais. 

 

 

Adriribeiro
Enviado por Adriribeiro em 16/10/2022
Reeditado em 24/10/2022
Código do texto: T7628973
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.