A caveira de lava

George Luiz - A caveira de lava

Entre tantas testemunhas que já interrogara, aquela parecia ser a mais irri-tante para o delegado Afrânio Moreira. Era um homem, de meia idade, vesti-do corretamente um terno de sarja azul marinho, camisa social branca e u-ma gravata discreta. Era um funcionário da companhia fornecedora de ener- gia elétrica. E tinha sido testemunha visual de um homicídio.

- E então, senhor Juvêncio ? O senhor poderia reconhecer o assassino se uma foto dele lhe fosse mostrada ?

- Ah, doutor ! O senhor sabe como é. Estava escurecendo e foi tudo tão depressa !

- Está bem, mas ao menos um detalhe, alguma coisa que tenha lhe cha-mado a atenção, mesmo naquele momento tenso ?

- O senhor vai achar absurdo se eu lhe disser...

- Não hesite, diga-me !

- Bom, acho que ele usava um alfinete de gravata.

- Um alfinete de gravata...e por que lhe chamou a atenção ?

- É que se tratava de uma caveira, doutor. Uma caveira perfeita em mi-niatura. Do tamanho assim de um grão de ervilha, pouco maior que is-so, digamos do tamanho de um olhinho, sabe, aquelas bolinhas de gu-de, das menorezinhas.

- Entendo e de que cor era? , seria de massa ? De cristal ?

- Acho que de massa, doutor, cinza bem clara. Nunca vou me esquecer dela.

O ambiente na delegacia de homicídios estava até tranqüilo. Na sala do de-legado titular, este conversava com seu braço direito, o inspetor Gonçalves.

- Agora me diga, Gonçalves. Nossa única testemunha não viu o rosto do assassino. Não, isso não...Mas reparou numa caveira de massa cinzen-ta do tamanho de uma bolinha de gude, que ele usava como alfinete de gravata...

- Nossa, chefe ! Que pista dificil !

- Não é ? Como vamos descobrir uma pessoa, pelo simples fato de que usa um alfinete de gravata, objeto difícil de ser usado atualmente, e do formato de uma miniatura perfeita de uma caveira ?

- Trabalho muito difícil, chefe. Por onde começaremos ?

- Ótima pergunta, Gonçalves. Acho que poderemos começar conversan-do com os antiquários da cidade...

- O senhor está brincando, não é, doutor Afrânio ?

- Estou e não estou, Gonçalves. Por onde você começaria a investigar esse homicídio ? Me diga !

- Bom, chefe. Poderíamos procurar em nossos arquivos, bandidos que usam alfinetes de gravata.

- E chapéus coco ? Bengalas de cabo de marfim ? Luvas cinzentas ?

- Esse seu Juvêncio falou nessas coisas, chefe ?

- Não, não falou. Mas eu não estaria surpreso se ele tivesse falado...

- Qual chefe ! O senhor inventa cada uma !

- Estou muito desconfiado de uma coisa.

- Do que, chefe ?

- Da identidade da vítima, Gonçalves. Acho que a ficha que foi levan-tada não configura a realidade.

- Uma identidade falsa, doutor Afrânio ?

- Isso mesmo, Gonçalves.

- E de quem seria esse cadáver então ?

- Esse, a meu ver, é a chave desse caso. O crime não foi um latrocínio. Não levou um centavo sequer o assassino. O relógio, a carteira, che-ques, cartões de crédito, o morto estava intocado. E além disso, a ar-ma usada pelo criminoso, um punhal, parece querer indicar uma vin-gança, ou, pior, uma queima de arquivo.

- Entendo, chefe, mas continúo a achar difícil determinar por onde co-meçaremos a investigação.

- Vamos esperar o laudo dos legistas. Talvez surja alguma luz para nos orientar.

Mais tarde, no meio da tarde, o laudo do IML ficou pronto, bem como o laudo dos peritos do Instituto de Criminalística. O delegado Afrânio Moreira tivera a idéia de pedir a ambos a presença de algum indicio que esclarecesse defi-nitivamente a possibilidade do morto ser um estrangeiro. Isso confirmaria a suspeita de Afrânio de que a vítima usava uma identidade falsa.

Como já tinha acontecido várias vezes, ele acertou na mosca.

- Veja só, Gonçalves ! Ao que tudo indica o morto era um italiano, usan-do a identidade de um brasileiro !

- Incrível, não é chefe ? Como foi que o senhor suspeitou que fosse um estrangeiro ?

- A aparente falta de motivo para o homicídio, Gonçalves.

- E agora ? O que poderemos fazer ?

- Acho que teremos que recorrer à policia italiana, Gonçalves. Vamos enviar a foto do morto e alguns detalhes, à Interpol de Roma. Embora eu ache que o morto não era romano.

- E de onde era, chefe ?

- Meu palpite é que era da Sicília ou da Calábria.

- Da Máfia, chefe ?

- Ou de alguma outra organização criminosa, Gonçalves. Vamos ver.

Naqueles dias, os homicídios foram relativamente poucos. A consulta do de-legado Afrânio à policia italiana, foi, por fim, respondida. O homem morto e-ra um tal Giuseppe Barili .Tinha uma ficha criminal pequena mas significati-va. Mas, o que era o mais importante era o fato de que ele pertencia a uma rede criminosa de Nápoles. E ainda mais significativo, os membros da qua-drilha, usavam, pelo menos os mais importantes, o alfinete com a caveira esculpida em lava, a lava do Vesúvio, o famoso vulcão que ainda ameaça com sua eventual fúria, a cidade italiana.

- E agora, chefe ?

- Agora teremos que esperar algum lance de sorte, Gonçalves. O que e-ra possível fazer já foi feito. Teremos que ser pacientes. Nesse meio tempo,a policia napolitana se comprometeu a nos informar sobre qual-quer movimento ou viagem dos membros mais conhecidos dessa orga-nização criminosa, em direção ao Brasil, Paraguai, Bolívia e Colômbia.

- Mas quais são as atividades principais da quadrilha, chefe ?

- Tóxicos e prostituição, Gonçalves.

- Coisa pesada, não é, doutor Afrânio ?

- E muito. Já comuniquei à delegacia de entorpecentes a nossa desco-berta. Ela que se mantenha alerta, assim como a policia de fronteira.

Quanto à prostituição, acho que a incidência maior deve se dar nas ca-pitais maiores.

- Mas e o nordeste, chefe ? As praias ?

- Aí, quem exerce essa atividade é comandado por brasileiros, homens e mulheres, que visam, principalmente a prostituição de menores, ofe-recendo a carne novinha para turistas estrangeiros.

- E qual terá sido a razão para eliminarem esse tal Giuseppe ?

- Não sei, Gonçalves. Nem tenho muita esperança de chegarmos a des-cobrir o motivo para esse homicídio. Uma coisa me intriga: por que a vítima não estava usando um alfinete de gravata com a caveira ?

- O que o senhor acha disso, chefe ?

- Acho que, das duas uma, ou ele não era um membro muito importante da quadrilha, ou então o assassino levou o alfinete consigo. Mas, nes-se último caso, deveria ter ficado na gravata da vítima, o sinal de um puxão, um rasgo ou qualquer coisa assim. É um caso difícil mesmo.

- Mas não vamos desistir, não é, doutor Afrânio ?

- Isso não, Gonçalves, mas teremos que ser pacientes.

De fato, um dos principais atributos de um bom investigador é a paciência. Há casos em que a autoria e mesmo as razões para um crime, só vêm a ser descobertos muito depois dele ter sido cometido. Esse homicídio parecia ser um deles.

Tinham se passado mais de três meses. O assassinato de Giuseppe Barili já tinha sido abandonado pela midi há um bom tempo.Não se falava mais dele.

Uma noite, como que por acaso, o inspetor Gonçalves caminhava com sua mulher pelo calçadão da praia de Copacabana. O calor era intenso. Em fren-te a um dos hotéis da orla iniciara-se uma discussão que logo transformou-se num pequeno tumulto. Uma jovem mulher morena agitava-se e recebia al-guns tapas de um homem de terno cinza. O homem tentava arrasta-la para um carro parado junto à calçada, onde outro individuo esperava. Instintiva-mente Gonçalves entrou em ação. O homem soltou sua presa e o encarou. De sua manga, surgiu , como num passe de mágica, uma faca. Alguém me-nos experiente que Gonçalves teria sido ferido pela lâmina. Mas o inspetor sabia muito bem como se defender. Com excelente reflexo ele se desviou do golpe e desfechou uma pancada brutal numa das temporas do agressor. O homem desabou na calçada. Gonçalves imobilizou-o e colocou um par de algemas em seus pulsos. Dois soldados da PM que faziam sua ronda corre-ram em direção a eles. Ao ver isso, o outro homem, que esperava dentro do carro, acelerou o motor e afastou-se em velocidade. A mulher que tinha sido a causa da ocorrência tentou correr. Mas foi detida pelos dois soldados. Foi então que o inspetor Gonçalves atentou para um detalhe do vestuário do ho-mem que tentara esfaqueá-lo. Em sua gravata preta, estava preso um alfine-te com uma pequena caveira cinza clara.

Na delegacia de Copacabana estava acontecendo uma acareação. Presen-tes o bandido preso, a garota de programa, cujo nome era Valéria, um dos soldados da PM que participara da ocorrência, o inspetor Gonçalves,sua es-

posa e o recém chegado delegado de homicídios, Afrânio Moreira, além do delegado adjunto de plantão.

O homem do alfinete de caveira mantinha-se calado. Seus documentos eram com certeza falsos. Ameaçado, instigado a falar, ele permanecia silencioso como um túmulo. O delegado Afrânio dirigiu-se a ele.

- Tudo bem, meu caro. Vamos enviar suas fotos para a policia de Nápo-les. Amanhã mesmo você estará identificado. Nesse meio tempo, va-mos autua-lo por tentativa de assassinato contra um policial,entende ?

O homem não mudou de expressão.

- Vou enfia-lo numa cela bem apertada, doutor Afrânio. Ele vai passar u-ma noite meio difícil...

- Ótimo, doutor Abreu. E agora, vamos conversar com a nossa glamour girl...

- Ah, sim, a senhorita Valéria...

Os documentos de Valéria Soares não apresentavam qualquer irregulari – dade. Brasileira, 20 anos, nascida em São Paulo. Ela portava também uma carteira de estudante do ensino colegial. Era de um colégio particular, do Rio, datada de 2005. Parecia indicar que ela morava na cidade há pouco mais de dois anos.Sua bolsa foi cuidadosamente revistada,mas só continha, além desses documentos, trezentos e poucos reais, em dinheiro e produtos para maquilagem.

- Então, Valéria, pense bem antes de me responder algumas perguntas . Qual é a sua ligação com esse criminoso ?

- Juro que nunca tinha visto esse homem ! Eu estava andando pela cal-çada quando ele me agarrou e tentou me arrastar p ara um carro !

- Entendo, entendo. Mas, você não acha que está vestida e maquilada como, digamos, como uma garota de programa ?

- Que é isso, moço ? É que eu estava indo para uma balada.

- Sei, uma balada em casa de uma colega de escola...

- Isso mesmo, moço. Ema casa da Rutinha.

- Aqui ? Na avenida Atlântica ? em que número ? Do edifício e do apar-tamento ? Tem o telefone dela aí ?

- Tenho, mas não sei onde guardei...

O doutor Afrânio estivera observando o interrogatório, feito pelo delegado Abreu. Agora ele adiantou-se e disse:

- Você é muito jovem, Valéria. Tem sua vida inteira pela frente. Vai querer estraga-la sofrendo uma acusação de cúmplice de uma tentati-va de homicídio ? Quer passar alguns anos num presídio ?

- Ninguém pode provar nada contra mim !

- Você está equivocada, Valéria. Esse bandido vai acabar dando com a língua nos dentes. Vai envolver você com certeza.

- Meu Deus ! Eu juro que não fiz nada !

- Então colabore conosco. Você faz programas para a organização dele, não é ? Também trafica tóxicos para a quadrilha ?

- Não ! Eu juro que não, doutor ! Faço meus programas admito.Mas é pa-ra poder viver um pouco melhor, não ter que passar fome !

- Está bem. Vamos chamar uma policial feminina para revistar você.

- Mas por que, doutor ? Não carrego nada de errado em minha lingerie.

- Ótimo, então não vai se opor, não é ?

A revista não incriminou Valéria em relação a tóxicos. Mas trouxe à luz um detalhe surpreendente.Em sua virilha, bem próximo ao seu órgão sexual, ha- via uma tatuagem, de dimensões mínimas mas perfeitamente reconhecivel, uma caveira cinza clara.Diante desse fato novo, não restaram mais dúvidas. A policia estava diante de uma ação da quadrilha de Nápoles. As investiga-ções esbarraram contudo, no hermetismo do homem detido e indiciado por tentativa de homicídio. Foi impossível arrancar dele uma única palavra. Va-léria foi bem mais útil. Através dela foi possível chegar a mais duas prostitu-tas. Ambas tinham em seus corpos a tatuagem da caveira. Mas elas não ti-nham como ajudar a policia na localização de outros membros da quadrilha. O alfinete de gravata com a caveira de lava está até hoje guardado num cofre da secretaria de segurança pública. Para o desapontamento do dele-gado Afrânio Moreira que o desejava para a sua coleção particular de sou-venirs do crime. Mas ele tem esperança de voltar a lidar com algum homici-dio ligado à gangue napolitana e conseguir para si, um dos misteriosos obje-tos, criados a partir da lava do vulcão Vesúvio.

George Luiz
Enviado por George Luiz em 06/12/2007
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