Da demissão à paranoia

A rotina criou uma segurança na minha vida. Todo dia sentava nos mesmos 3 bancos que pareciam já parte de um cenário próprio da minha existência. Primeiro era o banco do ponto de ônibus, depois a minha cadeira do trabalho e por fim a poltrona de minha casa. Esse ciclo era confortável, minha vida calma e meu futuro programado, tinha mesmo certa paz. Esse hábito da rotina me fazia bem.

Um dia o pessoal da empresa começou a especular uma possível demissão em massa. Não lembro se realmente a economia estava em crise na época como espalharam quando da notícia da suposta demissão em massa, mas hoje suspeito que não, nada mesmo indicava isso. Eu acreditei. E por que não acreditaria nisso, se todos acreditavam? Não se pode ser bobo.

Aquele trabalho era importante para mim, eu gostava. Toda minha vida, que houvera planejado nas fantasias que criava nos tempos ociosos em que passava nos três principais bancos do meu dia a dia, estavam ligados com minha carreira na empresa. Era mesmo um bom funcionário, não o melhor, mas me empenhava. Com certeza, se eu fosse chefe não me descartaria facilmente. Mas o rumor assustava.

Depois de alguns dias, comecei a ficar realmente assustado. O rumor começou a ficar elaborado. Não só haveria mesmo uma demissão em massa como seria no setor onde eu trabalhava. O chefe ainda não tinha se pronunciado, mas diziam que o faria em menos de duas semanas. Nesse momento já havia começado a pensar na minha vida desempregado, mas ainda tinha certa segurança de nada aconteceria comigo; sempre trabalhei bem, por que teria que ser eu um dos demitidos.

No dia seguinte, entretanto, o chefe me avisou para encontrar com ele na próxima semana de trabalho. Aí tive certeza, seria mesmo demitido. Perguntei a outros colegas se o chefe os haviam chamado também, mas a resposta era sempre negativa. Fora só eu.

Com a notícia de que o chefe me chamara a empresa confirmou o rumor, a demissão havia começado. Provavelmente ele chamaria um por um, para não criar o clima de demissão em massa e estragar a rotina da empresa. Mas seria subestimar demais a inteligência dos empregados, todos tinham a consciência do esquema. Agora o que restava era calcular os próximos da lista.

Eu não esperei. Sabendo da demissão comecei a procurar outro emprego. Era difícil ter que arrumar outra coisa, já estava acostumado e, como disse, gostava do antigo. Mandei meu currículo para todo e qualquer tipo de negócio imaginável e calculei que, no momento da demissão, eu já teria alguma resposta de algumas das empresas para quais enviara meu currículo.

Nesse meio tempo os dias já não eram mais os mesmos, e aqui quero detalhadamente dizer o que sentia, se é que conseguirei me expressar. O banco de ônibus já não era meu amigo, a cadeira de trabalho já não me acomodava nem um pouco, e tudo que eu conseguia fazer sentado na minha poltrona era pensar, não mais em fantasia, mas eu futuros difíceis em que eu perdia o controle.

Passava o dia sem conseguir me concentrar. Para não fazer feio em frentes aos colegas de trabalho demonstrava alteza, não me mostrava abalado. Hoje fico pensando se eles perceberam a perturbação que me turbava os sentidos e fazia minha pele formigar. Nessa semana em que esperava a notícia do chefe desenvolvi um vício num seriado de TV, que conseguia de alguma forma me tirar um pouco da realidade.

Tentei pensar menos possível no futuro, mas pouca atenção me chamava o presente e o passado quase não valia a pena, já que tudo estava perdido. O pior de tudo era sensação de que nada poderia fazer. Que culpa tinha eu se o chefe decidiu me demitir? Mas ao mesmo tempo pensava que talvez devesse ter trabalho mais e melhor.

Ao fim me convenci disso, eu era o culpado. Minha diligência, medíocre, que não me colocava no pódio dos empregados, mas também não me chamava atenção pelo descaso, incomodava o chefe, pensei. Fazia parte, agora era tocar a vida para frente.

Eu tentei manter, nessa semana em que aguardava a demissão o máximo de foco que eu consegui, mas era difícil. Mal começava a trabalhar, ou mesmo me divertir com algo, eu desconcentrava, e, depois de uns 3 minutos, pegava-me pensando na minha nova vida, sem o emprego que tanto gostava.

Depois de uns três dias já tinha me acostumado com a ideia de ter perdido o emprego. Fazia parte, um designo maior, provavelmente encontraria novos gostos no próximo que arranjasse. As coisas são assim, bons arranjos, de tortas formas.

Contei para minha mãe da demissão e ele ficou triste, meu pai não disse nada (e isso era dizer muita coisa). O que podia fazer? Agora era tentar ser melhor no próximo emprego. Consolava-me pensando que era melhor isso do que a morte, mas isso não serviu de muita ajuda.

Comecei a receber respostas dos currículos que havia enviado. O salário eram todos menores, lógico. Não podia esperar receber o mesmo do que recebo numa empresa na qual já estava estabelecido faz tempo. Pensei que era melhor aceitar algum do que estar desempregado. Tive, então, uma ideia brilhante. Se fosse para ser demitido, que eu fosse digno e saísse por conta própria antes, comecei a escrever minha carta de demissão. Nesse momento a aceitação era completa do meu destino.

Na carta não me detive pedir a demissão, como também gastei boas palavras para dizer que não queria mesmo mais trabalhar naquela empresa, que ela me limitava, que uma nova vida me faria bem, mesmo que mais difícil, precisava crescer e sair do conforto da mesma cadeira . Depois de redigi-la e colocá-la num envelope (mais bonito do que uma carta de demissão merece) estava até mesmo orgulhoso.

Na sexta-feira último expediente meu antes da próxima semana estava quase feliz pela demissão. Iria me livrar daquelas caras desconfiadas dos colegas que me viam como uma ameaça e ficavam se perguntando por que o chefe estava me demitindo, quase como se eu tivesse um vírus. Nessa altura eu já havia também deixado de lado toda minha vontade de continuar na empresa, trabalhava pelo hábito, mas pensar que à pouco estaria fora ainda me perturbava.

No fim de semana fiz questão de avisar uma empresa para qual havia enviado currículo que na segunda-feira pediria demissão da minha antiga empresa e na terça, sem falta, teria já começado a trabalhar para eles. Depois desse cuidado, passei o resto do fim de semana prostrado, tudo o que eu fazia era pensar na nova vida e me perguntar onde foi que eu errara. Acho que não preciso mentir, para sempre ficaria me perguntado o que seria de mim se não tivesse sido demitido.

Na segunda-feira, dia que encontraria meu chefe, acordei cedo (talvez nem tenha dormido) e me arrumei como nunca antes havia me arrumado para ir ao trabalho. Tinha se tornado uma espécie de dia especial para mim. Coloquei um terno - eu quase nunca usava terno na empresa -, passei o melhor perfume que tinha e depois sentei na poltrona para esperar o horário de ir ao trabalho. Essa mesma poltrona, acho importante mencionar, que antes era o local onde eu me divertia, passou a ser quase uma prisão, sentia-me compelido a sentar nela para ficar imaginando um futuro que nem sempre era agradável, numa espécie de tortura que minha própria mente me aplicava.

Quando deu horário, decidi ir a pé, me atormentava a ideia de ficar esperando o ônibus, isso só atrasaria a resolução do caso. Que engano! não só cheguei no mesmo horário de sempre, como cheguei suado, mais isso não importava, seria demitido de qualquer forma. No escritório, sentar no que costumava ser minha cadeira parecia ser um pouco estranho, sentia que aquele não era mais o meu local, então fiquei sentado no saguão de espera. Acho que todos notaram certa estranheza nisso.

Depois de um tempo o chefe chegou, ao me ver quase que expressando a paranoia no rosto me chamou à sua sala para uma conversa. Entrando lá, percebi que não havia preparado nada para o momento, acho que porque eu evitava pensar nele, mas logo me adiantei e disse:

— Eu sei o porquê me chamou aqui.

E o meu chefe respondeu:

— É uma pena, é um defeito meu não conseguir guardar surpresas… Quem te contou?

— Todos comentam. É a crise, suponho.

— Crise? Você fez por merecer.

— Imaginava que a culpa era minha, mas ainda fico um pouco perdido.

— Culpa? Não há culpa nisso… Bom, já que você já sabe de tudo, e imagino que sim, já que está até melhor arrumado, pode começar hoje o cargo de gerência do seu setor, te mando depois os outros ajustes. Não tomarei seu tempo.

Só consegui ficar calado, nem lembro se agradeci. Quebras de expectativas como essa tiram toda e qualquer capacidade de expressão, pois o cérebro se dedica a processar um mundo novo (ou, no caso, retomar a antiga forma de ver o mundo, mas agora como gerente).

Aí, como vocês podem imaginar, senti um alívio, mas seria muito simples descrever assim. Senti também um pouco de raiva, mais de mim mesmo do que de qualquer outra pessoa. A paranoia tinha tomado conta de mim, mas o paranoico só o é por desconhecer a paranoia e não teria fugido disso eu acho.

Depois da conversa com meu chefe eu fui até minha nova cadeira. Esta parecia ter ganhado de novo o conforto anterior, e suas sucedâneas do ônibus e da casa também pareciam mais agradáveis. Numa velocidade quase surreal esqueci toda a semana passada e as coisas voltaram ao normal, como se nunca as coisas tivessem mudado. Hoje, depois de tanto tempo, nem sei se escrevi mesmo a carta de demissão ou isso foi um delírio meu.

Por fim, agora falo diretamente a você leitor, desconsidere o que leu, pois tudo é fruto de uma imaginação fértil e de um medo. Não se pode dar espaço para a paranoia.