ESPÍRITO DAS ÁGUAS

Embora eu tivesse apenas doze anos de idade naquela época, eu já gostava dos livros e frequentava a biblioteca da cidade.

Bom, na verdade, nessa época, não existia propriamente uma biblioteca pública na Província de Cárpoles, ao norte do Paraná, onde eu morava.

Então, as pessoas que gostavam de livros, iam até a pequena biblioteca da escola pública do ginásio (era assim que chamávamos à época) e ali saciavam sua sede de leitura, embora fosse um acervo modesto, e como eu era aluno, não tinha problema algum em me debruçar por horas nos exemplares que eram do meu interesse. Em cada página, uma viagem e tanto.

Mas fora em um livro antigo, que se encontrava caído, atrás da porta da pequena sala, com capa rasgada, dourada, feita à mão e que me parecia de couro, que achei uns manuscritos amarelados e com alguns furos e manchas em todas as folhas e que iriam me surpreender e me deixar aturdido pelo resto dos meus dias.

O interior do livro trazia uma informação não muito nítida que datava de 1917 e os manuscritos que estavam soltos dentro dele, apresentavam uma caligrafia bonita, com tinta bem forte, que resistia bravamente à ação do tempo.

Nos manuscritos não havia data, mas continha a assinatura do subscritor ao final.

Retirei-os sorrateiramente do antiquíssimo livro e apanhando-os, coloquei na minha bolsa escolar. Eu nunca havia levado livro algum para casa, mesmo que fosse por empréstimo, mas nesse dia, ao passar os olhos rapidamente sobre os manuscritos, não hesitei. Dona Elza que me perdoe; a responsável pela biblioteca, acho que ela nem percebera, ou se percebera, fez de conta que não, afinal eram só papeis velhos amontoados em um livro mais velho ainda e que havia sido doado por um senhor idoso que trabalhava em uma companhia marítima na capital do Estado, (isso ela me relatara quando perguntei sobre a decrépita obra) e, portanto, não faria diferença.

Guardei os manuscritos e anos depois, algumas mentes mais brilhantes que conheci e outros estudiosos da matéria, ao examinarem a horripilante história contida neles, (que, aliás, não tinha nenhuma relação com o conteúdo do livro onde se encontrava “repousando”), afirmavam que, isso somente seria possível se tivesse ocorrido na Noruega, na Suécia ou em outras regiões nórdicas ou escandinavas.

Mas não, a história se passara aqui, no Brasil, e foi no Município de Lunar, também ao norte do Paraná que se deram esses fatos e aquela grafia forte e muito legível (embora parecesse um pouco trêmula) transmitia sincera confiabilidade.

Ryan Murphy, de descendência finlandesa, viera para o nosso País ainda adolescente, juntamente com seus pais. Ele crescera e posteriormente viria a trabalhar ao Sul do Brasil.

Após uma carreira de encarregado de uma grande multinacional, viajando pelo Brasil inteiro a trabalho, ele finalmente se aposentou e então, estabeleceu-se em Lunar.

A casa era afastada da cidade, um terreno imenso, que parecia uma chácara.

Havia um belo lago, enorme e profundo, que, se por um lado poderia representar um certo tipo de perigo para crianças, por outro, era um pedaço do paraíso dentro da sua própria casa. Dava para pescar, banhar-se nas tardes de verão e realizar muitos passeios de barco. Era uma vista incrível. Um papel de parede irretocável. Paz, sossego e tranquilidade, tudo que Murphy sua esposa e seus três filhos precisavam.

E foi ali que Alana Murphy, de seis anos de idade, começou a ouvir sons de violino, vindo da direção do lago.

Os pais e os dois irmãos mais velhos, George e Luma riam da menina e levavam na brincadeira. Ryan até ficara preocupado no início (parecia recordar-se de alguma coisa), mas depois desconsiderou.

Ao cair da tarde, estranhamente às quintas-feiras, em torno das dezessete horas, a menina apontava para o lago e dizia:

— Vejam! Vocês estão escutando? É o som do violino de novo, papai!

— Que legal, Alana! Eu já gostei muito de violino-dizia concordando-Ele também podia ouvir um som fino e quase imperceptível, mas julgava ser os vizinhos dos outro lado do lago.

George e Luma, os dois irmãos mais velhos, diziam quase sempre a mesma coisa:

—Ei Alana, deixe de ser boba, não tem som de violino nenhum!

— Tem sim e é tão lindo... eu adoro vir aqui pra ouvir. Fiquem em silêncio!

Ela sentou-se mais um pouco em uma pequena pedra, próxima ao lago e dizia estar ouvindo a linda e doce canção do violino.

Mas, em pouco tempo eles subiram de volta para a casa.

No dia seguinte, Alana descera um pouco antes, com seu irmão George, até o lago e pedira que ele ficasse em silêncio, no mais absoluto silêncio e dessa vez George ouvira a suave e atraente canção do violino, mas o menino rapidamente se desviou do som.

Em uma quinta-feira, quase escurecendo, depois de George confirmar à irmã mais velha, (a primogênita dos filhos de Ryan Murphy e sua esposa Edith), que realmente teria ouvido aquele som doce e paralisante do violino das águas, Luma desceu de mãos dadas com Alana até o lago e após um período de silêncio, não acreditando muito que o som de violino viesse de fato das águas, ela disse:

— Eu consigo ouvir, Alana. Eu também consigo ouvir. É lindo, encantador e maravilhoso.

— Eu não te disse, Luma!

Nesse momento, Luma aproximou-se ainda mais, já colocando os pés e as pernas dentro do lago e ao olhar para o lado, ela viu a cachoeira aos fundos e uma imagem fantástica.

— Veja Alana, é um moço lindo, de cabelos compridos e encaracolados. Meu Deus, que rosto perfeito! Ele é perfeito, Alana! Nunca vi tanta beleza em um ser humano! O Violino está em suas mãos e ele está tocando a canção da “Merenneitoja” —disse isso e com um olhar hipnotizado, adentrou ainda mais ao lago até desaparecer por completo.

Alana não avistou mais sua irmã, nem a cachoeira e muito menos o belo moço com o violino e embora desnorteada, a menina teve forças para relatar os detalhes.

Naquela noite, buscas por todo o lago e por todos os arredores foram feitas, mas Luma não fora mais encontrada. A família estava em choque.

A família Murphy cercara os arredores do lago e os pais de Alana e George nunca mais permitiram que eles brincassem lá.

Um longo tempo após a tragédia, em uma quinta-feira, quase à noite, Alana, agora com aproximadamente oito anos de idade, olhara em direção ao lago de longe, da grande varanda da casa e avistou a cachoeira, um homem lindo e maravilhoso tocando violino, conforme sua irmã havia relatado. Mas, de repente, a face dele transmudou-se parecendo uma criatura seca, magra e velha, um Elfo, ou Duende muito peculiar, com cabelos desgrenhados e seu violino havia virado apenas um pedaço seco e velho de madeira em suas mãos. Ela correu para dentro assombrada, mas não disse nada.

Dona Edith Murphy estava grávida à espera de mais um filho e certo dia, (também de quinta-feira), quando seu esposo e os filhos saíram para a Cidade, ela estava varrendo o quintal da bela casa, quando então, ouvira de longe um som penetrante, doce, comovente, suave e maravilhoso de violino, vindo do lago.

Ela pensou em Alana, (quando a criança afirmava com convicção que ouvia o mesmo som), pensou em Luma que morrera afogada no lago e sumira sem explicação, pensou também que, embora quase ninguém acreditasse na versão de Alana, a respeito do sumiço de Luma, agora alguma coisa faria sentido para ela. O som aumentava a cada passo que ela dava em direção ao lago.

Mesmo com todos os perigos que sua mente pudesse projetar agora, em relação ao lago, o som era hipnotizante e Edith, uma bela mulher, estava entorpecida e paralisada e se aproximava ainda mais.

Ela avistara um homem maravilhoso, como Luma teria dito à Alana. Sua imagem era ainda mais hipnotizante.

Estava sentado sobre uma pedra ao lado da cachoeira, com seus cabelos compridos, cintilantes e um rosto cuja beleza era indescritível—teria relatado ela, depois.

Quando Ryan Murphy chegara com seus filhos eles não encontraram Edith e só viram a vassoura caída no quintal.

Eles correram em direção ao lago e avistaram a mulher se debatendo nas águas e Ryan em desespero, atirou-se no lago e arrastando sua mulher, conseguiu trazê-la até às margens do lago.

Ele fizera respiração boca a boca na esposa desvanecida.

Ela voltou um pouco, respirou por alguns minutos e conseguira relatar brevemente o que teria acontecido e em rápidas palavras disse um breve:

“eu amo vocês”.

E logo em seguida, Edith Murphy cerrou seus lábios para sempre.

Ryan não conheceu seu mais novo filho. E eles se foram.

Ryan Murphy estava decidido a mudar-se daquele lugar e ir para a cidade de Lunar, juntamente com seus dois filhos, George e Alana, que estavam desorientados.

No sábado à tarde, eles retiravam as mobílias da casa, quando Ryan desceu próximo ao lago, como se parecesse dar uma última olhada e despedir-se. Ele ouviu o som do violino e um vulto negro e estonteante veio até às margens do lago e então Ryan caiu desorientado, e quando levantou os olhos viu uma criatura assustadora em forma de Elfo ou duende; ele tinha o rosto muito margo e arranhado e os cabelos feios com braços e pernas esguias e olhos de grandes dimensões. Ele soltou um tipo de pergaminho às margens do lago e desapareceu. Uma fumaça negra e um tilintar de cordas de violino alto e perturbador disparou em seus ouvidos.

No pergaminho estava escrito:

“Quando você tinha seis anos na Finlândia, seu pai prometeu a nós que cumpriria sua oferenda de nos ceder um carneiro defumado e um bode branco durante aquelas quatro quintas-feiras, em troca de você se tornar um exímio violinista. Ele não cumprira a promessa e após seus quinze anos, você perdera toda a habilidade sobre o instrumento e nunca mais quis ouvir falar em violino, por isso ignorou as advertências de Alana. Mas nós viemos buscar o que é nosso, Ryan. Agora está consumado”.

Ryan Murphy levantou-se atordoado com o pergaminho embaixo dos braços.

Alguns dias depois, o doutor Carlos Hofmann, historiador e especialista em mitologia nórdica e seres sobrenaturais da Universidade Federal do Paraná, explicara a Ryan que: “Os Fossegrins são espíritos das águas, também chamados de troll no folclore escandinavo . Eles tocam violino, especialmente o violino de Hardanger, estando dispostos a ensinar suas habilidades em troca de uma oferta de comida. Mas quando são desafiados ou esquecidos, eles se tornam monstros e arrastam as pessoas para o fundo das águas, após atraí-las com suas canções”.

Ryan Murphy era o dono do livro que fora doado à biblioteca da minha escola e o resumo de seus manuscritos estão nas linhas que acima escrevi, com pavor e angústia.

Danilo Seraphim
Enviado por Danilo Seraphim em 12/01/2023
Código do texto: T7693483
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