Intercorrência na madrugada

Ela acordou primeiro. Sobressaltada. Sacudiu com força o ombro do marido. Ele abriu os olhos a contragosto, o cenho franzido de quem havia sido arrancado de algum sonho bom. Limpou a baba que escorria pelo canto da boca antes de abri-la para perguntar o que estava acontecendo. Nem precisou. Ele entendeu assim que suas células olfativas também despertaram. Gás.

Ela fez que ia acender a luz do abajur; ainda era de madrugada e faltavam algumas horas para o dia amanhecer. Ele rapidamente esticou o braço e a impediu quando ela já tocava o interruptor. Explicou-lhe que qualquer mínima fagulha poderia transformar o apartamento em uma bola de fogo. Ele se levantou e saiu tateando no escuro, abrindo todas as janelas para que o ar fresco ventilasse os cômodos. Da mesma maneira ela chegou à cozinha, e às duas válvulas principais do sistema de gás. Fechou-as com mãos que tremiam, pensamentos tenebrosos chegando de uma realidade paralela onde tudo tinha dado errado e o pior havia acontecido.

Agora não havia mais nada que eles pudessem fazer a não ser esperar. Foram para a sala e se sentaram no sofá. Decidiram que logo pela manhã chamariam o técnico da companhia de gás para que ele avaliasse as causas do vazamento. O equipamento, as conexões, tudo era velho e ultrapassado. Talvez precisassem ser trocados. O mais importante agora era que o fluxo tinha sido interrompido.

Quando o cheiro finalmente desapareceu, eles acenderam as luzes; por precaucão, mantiveram as janelas abertas. Ele foi até a cozinha para dar uma última conferida nas válvulas, ter a certeza de que elas estavam fechadas até o fim de seus cursos. Estavam. Ainda não convencido, ele aproximou seu nariz tentando sentir o odor nauseabundo do mercaptano. Nada. Não havia mais perigo.

Abraçados e aliviados, eles caminham de volta para o quarto, rindo juntos de alguma bobeira que ele tinha dito. Ao entrarem, um único passo e estancam imediatamente. Desabraçam-se. Gritam e choram. Caem de joelhos.

Sobre a cama, sob os lençóis, seus corpos parecem dormir.

Carlos Junior Dionesio
Enviado por Carlos Junior Dionesio em 16/01/2023
Código do texto: T7696532
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