A MÃE 

"Quando não há esperança no futuro, o presente

adquire uma amargura ignóbil."

                                 EMILE ZÓLA- EM TERESA RAQUIN

"Os órgãos que transmitem a percepção ao sensorium, isto é, ao

cérebro, podem ser enganados pelas circunstâncias."

Alexandre Dumas

À Elisa, minha primeira leitora. 


"Calada!" Falou Zélia para si mesma, bem baixinho, pondo as duas mãos sobre sua boca,  enquanto se escondia, espremida, atrás da grande pedra de ferro, na entrada do jardim.

 

Ela estava trêmula. Desnutrida. Um farrapo humano. Totalmente nua. O que fazia com que ela se encolhesse ainda mais, tentando esconder o seu corpo magro e tomado de cicatrizes.

 

Na mente só trazia uma voz: "Se esfregue o máximo que puder na grande pedra de ferro. Se você sair daqui, se esfregue naquela grande pedra de ferro." Foram as últimas palavras de Iran, antes de morrer na cela ao lado da sua. "Que morte horrível! Esses monstros não têm piedade". Mas, parecia que Iran estava ali lhe sussurrando nos  ouvidos. "Se esfregue..."

 

A fugitiva percebeu que em sua nuca haviam  finos fios, que ela associou àqueles das caixas de telefone que costumava usar para fazer pulseirinhas coloridas, nos tempos de escola. Só percebera agora esse acessório.

 

Tentou puxá-los, mas a dor foi lacinantes; quase a fez gritar e entregar o seu esconderijo. Caiu sem forças, mas sempre próximo à grande pedra de ferro. "Se esfregue na grande pedra..." Era isso que ela estava fazendo. Até parecia uma gata no cio esfragando-se nas pernas de um estranho. Mas, sem nunca baixar a guarda. Aqueles monstros galáticos não iriam pegá-la novamente.

 

Pela primeira vez, em 30 anos, estava do lado de fora da sua prisão. Não podia acreditar no que estava acontecendo. Enfim, livre. "Queria que Iran estivesse aqui para ver isso. Consegui! Finalmente,  consegui!" Quase que gritava de prazer.

 

Ao se darem conta que alguém havia escapado, cuidaram logo de soar o alarme. Muito alto. Estridente. Ensurdecedor. Esse era o propósito. Atordoá-la para ser mais fácil a captura.

 

Por alguma razão, Iran havia descoberto que perto da grande  pedra de ferro, caso alguém conseguisse obter êxito numa hipotética fuga, estaria menos vulnerável  aos invasores e ao som da sirene. Como ele descobriu isso? Não se sabe. Talvez por observação. A sua cela era a que ficava mais próximo da grande pedra.  Com certeza ele tinha visto algo. E agora, ela estava livre, ou quase, do alcance deles.

 

Deles? Os Zóstrilos. Uma espécie de "marcianos" que vieram povoar a terra no final do século passado, mas que devido a escassez de recursos, os humanos tiveram que expulsá-los de volta para o seu planeta. Só que o Zöstris estava totalmente devastado. Era impossível  de viver. A morte seria certa. 

 

Nem todos partiram. Armaram uma resistência e resolveram enfrentar os humanos. "Afinal, quem são os terráqueos para, egoisticamente, reivindicarem a terra exclusivamente para si?" Era o pensamento da resistência Zös.

 

Se o Apocalipse não viera nas 5 primeiras guerras mundiais, com certeza estava acontedendo. Exatamente 2 anos, 2 meses e 2 dias de guerra e um vencedor: a raça humana foi praticamente dizimada. Os poucos que conseguiram resistir a ofensiva dos Zóstrilos, passaram a viver escondidos como animais, nos esgotos ou isolados em longínquas florestas; outros com menos sorte, foram aprisionados nos Salões Brancos. Foi em um desses salões que Zélia passou os últimos 30 anos enclausurada em uma cela . 

 

A fugitiva era prisioneira desde os 10 anos de idade. Como um camudongo. O interesse dos Zóstrilos por ela? Fins  reprodutivos. Os Zös para se reproduzirem necessitam de uma fêmea de outra espécie, já que todos os filhos gerados por eles não podem gestar outra vida. Assim, desde menina, Zélia era a reprodutora de milhares destes invasores.

 

A "mãe", mesmo após tanto tempo sendo "barriga de aluguel" não sabia como o processo era feito. Dormia a grande parte do tempo e era nesse momento que acontecia as inseminações e os partos.

 

Agora livre, suas pupilas ainda se adpatando à claridade, quase não enxerga.  Logo em seguida, o segundo alarme ensurdecedor. Desta vez fora pega de surpresa, estava um pouco afastada da grande pedra de ferro. Quando abriu os olhos novamente, tudo estava como quando era criança. Era uma cópia fiel da sua infância. Era como se o tempo não tivesse passado. Cada coisinha estava como quando Zélia tinha 10 anos. Inclusive ela.

 

Procurou a grande pedra de ferro e no seu lugar estava o grande obelisco da 5° Guerra Mundial. Sem entender nada, ela se percebe, e ver que está vestida. E os braços? "Onde estão as cicatrizes?" Pergunta incrédula. Toca o seu rosto, procura os fios que estavam pendurados na sua nuca e nada está mais lá. "Foi um sonho?" Pensa Zélia. "Não, impossível. Eu me lembro de tudo! Eu era uma prisioneira dos Zóstrilos. Passei os últimos trinta anos presa... Eu era escrava deles..."

 

Olha para uma porta de vidro que está a sua frente e se ver pela primeira vez desde que fugira. Tinha dez anos novamente. Se prende na imagem por poucos segundos.

 

"Mas, e a guerra? Não era para ter destruído tudo? Tudo foi destruído! As bombas?" Ela se lembra, mas aparentemente, nada estava fora do lugar. A angústia toma conta da pequena menina. "Mas, Iran me dizia que o mundo está destruído. Que não havia mais árvores,  que os gases tóxicos impediam a respiração... E como está tudo normal agora?"

 

Em minutos, Zélia se dá conta de que está na Universidade. É com certeza o local onde a sua tia Elisa trabalha. Já viera aqui muitas vezes após as suas aulas. Ficava esperando o trabalho da tia terminar para irem juntas para casa. "Será que minha tia está aqui?" Ela pensa. Mas, para saber tem que sair de onde está, deixar a grande pedra de ferro, ou melhor, o obelisco.

 

O medo não permite que ela se mexa. Espera encontrar um conhecido. "Será que tem mais alguém aqui?"—Susurra. É uma pergunta legítima. Até agora não via-se ninguém além da fugitiva.

 

À sua frente tem um relógio digital que marca 14:14:14, provavelmente quebrado já que não saia dessa hora nunca.

 

Zélia olha para fora e ver umas pessoas vindo. Ela se encolhe, quase que se espremendo, se tivesse uma fresta naquele obelisco teria entrado no concreto. As pessoas passam sem percebê-la. "Foi por pouco."

 

Pela força do sol, deve ser algo próximo das 10 horas ou começo da tarde,  julga ela. Espera as pessoas ganharem distância para poder sair do seu "esconderijo". O seu único plano é ir para casa. "Já que tudo está como antes, quero ver meus pais".

 

Da universidade a sua casa eram uns 4 quilômetros. Dava para fazer tranquilamente esse trajeto à pé. Havia uma grande movimentação de carros, motos e pessoas. Ela parou encostada em um muro, ainda procurando se esconder. E observou tudo. Era como se nada realmente tivesse mudado.

 

Zélia olha  para si. E, só então, se dá conta de que está com o seu vestido preferido. "Mas, mamãe doou este vestido quando eu tinha 8 anos. Lembro-me que chorei ao ver Letícia vestida com ele. Como ele ainda cabe em mim e por que eu estou usando ele se já não é meu há bastante tempo?" Isso só fez aumentar a ideia de que a "menina" estava construindo para explicar tudo: era um sonho. Com certeza era um sonho. Talvez nunca tenha havido fuga alguma.

 

Ela sai correndo pela rua. Não sabe se deve se esconder ou se pode correr para sua casa livremente. Decide ir sem medo. Sai na maior velocidadeo possível. Passa pelas pessoas, ninguém a percebe. "Por que será?". Enfim, chega perto de sua casa. Igualzinha  como antes.

 

Ver o seu pai, sua mãe, suas cachorras Susy e Amora no jardim. Zélia não pensa duas vezes. Se aproxima deles. Não há mais dúvida. Era a sua família. Correu para abraçá-los. Coroando este momento de reencotro, começa a chover. Era , para a menina, um sinal da natureza. A água lavando a sua alma.

 

A medida que Zélia corria a chuva aumentava e ela corria mais ainda para se proteger em sua casa. Finalmente  quase chegando.  Bem perto e ainda no impulso da corrida, abre os braços para se pendurar em seu pai e matar toda a saudade que sentira nesse tempo de ausência.

 

Mas, percebe que quando a chuva a molha é como se a sua roupa fosse se desfazendo. As cicatrizes vão nascendo novamente como se estivessem escondidas por uma camada de maquiagem. Estava ficando de novo nua. A camada de limalhia de ferro saiu completamente na chuva deixando-a exposta. "Foi isso, a grande pedra de ferro liberava um pó que fazia a pessoa ficar imperceptível aos Zös"— Pensaria Zélia depois.

 

Desesperada olha para frente e ver que seu pai, já não está mais lá. Era um Zóstrilo. Já nem pode se desviar do abraço. Zélia é capturada. Presa nas garras do invasor que fura-lhe a carne e a faz sangrar. Rapidamente é dominada.

 

Antes de ser colocada para dormir, percebe que o mundo era novamente aquele acinzentado que Iran descrevia para ela. A terra já não era mais a mesma. Era como seca. E uma nuvem de poeira tomava conta de tudo. Nem parece que acabara de chover.

 

Como que anestesiada, vai adormecendo. Escuta alguém comentando que a reprodutora alfa foi recapturada. "As futuras gerações de Zóstrilos estão novamente garantidas. Operação efetuada com sucesso."

 

Acordada e ainda atordoada. Estava novamente no Salão Branco. Havia experimentado a liberdade. O gostinho de ser livre. Mas, para que servia a livrar-se dos grilhões  se tudo o que ela tinha ou julgava ter não existia mais? Era tudo controlado pelos Invasores. Não havia mais ninguém a esperando lá fora. Foram mortos ou escaparam para os esgotos.

 

A espécie humana estava em extinção. "Passamos por milhares de anos de eras glaciais, terremotos, fome, seca, vulcões, tsunamis e, fomos destruídos por alienígenas?" E o que mais a estarrecia era que ela era a "mãe" dos seus próprios algozes. A espécie dos invasores dependiam de Zélia para se perpetuarem. Até choraria, mas de tão debilitada que estava, nem lágrimas tinha mais.

 

Na cela, sem chances de conseguir fugir. Com a vigilância redobrada. Martelava em sua mente as últimas palavras que ouvira: "As futuras gerações de Zóstrilos estão novamente garantidas"  "Se depender de mim não nasce mais um sequer"— É o que decide a prisioneira.

 

Ela passa a se morder. Morde os braços  cheios de  cicatrizes. Morde a ponto de arrancar a carne com pedaços de músculos e sangue. Geme e chora e morde. Os pedaços caem ao chão. Engole o seu sangue como se fosse água. Morde-se com satisfação apesar de setir como agulhas furando a sua carne a cada dentada. Os olhos fervendo de ódio. Se culpando por ter contribuído para o fortalecimento da opressão contra a sua espécie. Mordia-se como um animal sobre uma carcaça. 

 

Já que não pode fugir, não fará mais parte da cadeia de produção inimiga. "Nunca mais darei um filho a vocês. Prefero a morte!" Rir e rasga-se.

 

Um dos Zóstrilos que fazia a guarda da cela a ver e intervém, impedindo o suicídio. Mas  é brutalmente mordido. Outros surgem e controlam a situação. Apesar de serem maiores que os humanos, eles enfrentam dificuldades para conter a pequena Zélia. Estava furiosa. Após bastante tempo a controlam.

 

Cuidam de forma grosseira  das suas feridas. Fraca e debilitada. Quase sem vida. Mais ainda com carne, pele e ossos o suficientes para a produção de novas gerações de Zóstrilos. Apesar de sobrar pouca coisa, ainda era a melhor reprodutora.

 

 

FIM

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O COZIDO: https://www.recantodasletras.com.br/contosdesuspense/7707660

George Itaporanga
Enviado por George Itaporanga em 18/02/2023
Reeditado em 18/02/2024
Código do texto: T7722439
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