UM BANQUETE PARA LAMPIÃO.

Sergipe, 1937. Salatiel abriu a porta. O sol deu o ar da graça. -"Eita que hoje vai ser um calor dos infernos." A mulher, ainda na rede, o corrigiu. -"Bate na boca, homem de Deus. Já acorda blasfemando, chamando o inferno?" Ele olhou pra trás, surpreso com a companheira que julgava ainda estar dormindo. -"Acordada, Jurema? Eu estava agradecendo por mais um dia. Vou pegar água, tá?! " Botou o chapéu de couro e pegou o balde todo amassado. O cachorro se levantou e se espreguiçou. -"Venha, Sultão. Meu amigo fiel." Passou a mão sobre a cabeça do cão amarelo. O tanque de água ficava a quinhentos metros da casa de barro. Ele passou pelo terreiro. O caminho, no meio da caatinga. A grande pedra vermelha indicava a direção certa. O facão na mão direita, o balde na mão esquerda e o cão a frente. Ele parou. Ouvidos e olhos atentos. O cão ameaçou latir mas Salatiel o calou. -"Quieto, Sultão. Quietinho." Um graveto quebrado. Salatiel se arrepiou e se benzeu. -"Não deve ser onça nem assombração pois a noite já foi. Será a Jurema?" Ele gritou. -"Jurema? Que está fazendo aqui?" O facão apontado pra frente. O cão latiu ao ver a figura que se ergueu por entre os cactos. -"Largue o facão, oxe. Sou amigo." Salatiel olhou o homem de cabo a rabo. O gibão de couro e os apetrechos. O homem abaixou a espingarda, antes apontada para o roceiro. -"Sou Damião, filho do João doceiro." Salatiel riu. Sultão parou de latir. -"Damião. Agora deu pra andar por aí, assustando o povo?" O rapaz ficou sério. -"Serei rápido, meu caro. O capitão vai passar por aqui." Salatiel tremeu igual vara verde. -"O capitão? Quer dizer o que, o que? Ele mesmo?" Damião o abraçou. -"Ele mesmo. Virgulino Ferreira, o Lampião. Está com dona Déia e oito homens. Tem uma volante, três dias antes deles e sua casa servirá de pouso ao capitão." Salatiel caiu de joelhos. Todos desconfiavam que o famoso cangaceiro tinha coiteiros e espiões mas ninguém imaginaria que Damião e seu pai fossem um deles. -"Não. Por Deus que está no céu. Escolha outra casa. Minha mulher é jovem e bonita, esses cangaceiros podem se engraçar e levarem a Jurema pro cangaço com eles. São perversos e estupradores, Damião. Ela tá de quatro meses." Damião foi categórico. -"O capitão é justo, confia. Não podem entrar na vila e sua casa fica distante. É perfeita. Só uma noite e vão embora antes do sol nascer. Só tem que dar janta e sua rede." Salatiel chorou. -"Essa noite apenas, Salatiel. Se espalhar, vão morrer todos de sua família." Damião entrou na mata fechada e sumiu. Salatiel olhou para o céu. -"A última noite da minha vida. Vou estar cara a cara com aquele que eu mais temia, o sanguinário bandido Lampião. Jurema bem que me mandou parar de reclamar." Ele encheu o balde e foi pra casa, desanimado. A mulher o encarou. -"Andou chorando, foi? Tava pensando de novo na morte de seus pais?" Salatiel colocou o balde sobre o fogão a lenha. A casinha simples com chão de terra batida. -"Fala, homem. Parece que viu a Matinta Pereira ou a mula sem cabeça." Salatiel tinha o olhar triste, quase não piscava. -"Antes fosse. Damião, o filho do Zé do armazém de secos e molhados, estava no tanque." Jurema puxou o banco de madeira. -"E o que ele queria? É filho de homem de posses. Que ele queria com a gente?" Salatiel deu a infeliz notícia. -"O cabra é espia do capitão. Os cangaceiros querem evitar a vila, aonde deve ter macaco a paisana, policiais como dizem. Damião disse que Lampião vai pousar aqui na nossa casa." Jurema pôs a mão na barriga e se desesperou. -"Aqui?! Com tanta fazenda de coronel rico por aí?! Logo aqui? Que praga! Perdão, senhor. Vão matar a gente e botar fogo na casa, isso sim." Salatiel a acalmou. -"Damião disse que é só por essa noite. Vamos dar janta e pouso, só isso. Falam atrocidades de Lampião e seus homens mas também dizem que ele é justo e ajuda muita gente. Falam que seu bando reza todos os dias. Até foram no Juazeiro ver padim Cícero." Jurema o abraçou. -"O capitão está com a esposa e oito homens." Salatiel respirou fundo. -"Não podemos falar pra ninguém, não despertar suspeita nem ir a vila. Vamos manter a calma e orar pra dar tudo certo." A mulher tomou um gole de água. -"Como vamos dar janta pra esse povo se não temos nem pra gente, Salatiel?" Ele ficou sem resposta. Abriu a boca e nada saiu. O cão magricelo olhou para eles, como que concordando. -"Podemos juntar nossas tralhas e ir embora de vez. Vão chegar a noite e vão dar com a casa vazia. Simples assim." Salatiel se opôs. -"Aqui é nosso canto. Certamente foi Damião que viu na nossa casa um porto seguro pra eles descansarem. Deve ter homem ferido no bando pra terem que evitar a vila ou outra fazenda de alguém que financia o capitão. Vamos oferecer nossa casa e o melhor que temos." Um bode surgiu na porta. -"Policarpo!" Salatiel foi até o animal e o abraçou. Jurou nunca matar o bode que era de seu falecido pai. -"Jurema, Policarpo será o banquete do capitão." Horas depois, com dor no coração e chorando compulsivamente, Salatiel sangrou Policarpo. O bode olhou pra ele com carinho e fechou os olhos, obediente, como quem sabia de seu trágico destino. O punhal amolado na pedra lisa. Os mandacarus como testemunhas do triste fim de Policarpo. O animal amarrado e pendurado no varal de arame farpado, nos fundos da casa, como toalha estendida. O couro tirado aos poucos. Jurema trouxe o sal. -"Perdão, meu pai. Nem vou comer do Policarpo. Não consigo." Jurema o tranquilizou. -"Eu também não. Os homens vão chegar esfomeados, parece muita carne mas não é. Na roça de Doca tem milho pois choveu." Salatiel apontou a faca pra esposa. -"Tem sim. O que está maquinando na cachola, Jurema? Não é o que estou pensando." A mulher riu. -"Certa vez, minha mãe colocou a carne num caldeirão, com um monte de coisas e enterrou no quintal. Fez um buraco com muita lenha. O caldeirão com carne, milho, macaxeira, batata doce e cheiro verde. Passou barro em volta do caldeirão e deixou lá por sete horas. Vixe mãe de Deus, até salivei. A melhor comida da minha vida, homem." Salatiel ficou curioso. -"É, deve desmanchar mesmo com tanto tempo no chão quente... e até um bode véi como Policarpo vira manjar dos deuses. Eu nunca comi isso aí mas se vai milho e macaxeira, deve ser bom igual a peste." Disse ele, molhando os lábios. Ele olhou pra mulher. Ela riu, maliciosa. -"Não. Tu tá querendo que eu vá roubar milho do compadi?! Oh, Jurema. O cumpadi mora depois da serra, é longe." Ela o encorajou. -"Sem milho não fica bom. Sultão vai com você, além do que, o capitão vai ficar feliz e poupar nossas vidas." Salatiel até tinha se esquecido da visita da noite. -"Aí eu vou. Pra viver mais, eu vou. Já estou indo, minha vida." Salatiel voltou, três horas depois. O saco de linhagem cheio de espigas verdes. O cachorro estafado, com a língua de fora de tanto andar debaixo do sol forte. -" Olhe, se agradar o capitão e ele nos poupar a vida, terá valido a pena. Sultão vai ganhar um belo osso pois até ele está se esforçando." Jurema estava radiante. -"Nunca cozinhei desse jeito nem pra tanta gente e gente cangaceira mas espero agradar. Vou aproveitar a lenha e fazer um bolo de macaxeira." Salatiel estava admirado. -"E desde quando você sabe fazer bolo, mulher?! Dona Nina, a mulher do sacristão Olegário, é boleira de mão cheia. Dona Rosa de Quincas também, é a rainha das cocadas e licores mas você? Cuidado pra não quebrar o dente de Lampião senão ele a sangra viva." Jurema ficou furiosa. -"Não é difícil e vou caprichar. Você experimenta, se o bolo ficar ruim jogo fora." Salatiel saiu. O sol quase a pino. -"Vou fazer o buraco pro caldeirão enquanto você prepara tudo. Daqui a pouco é meio dia, mulher." Pouco tempo depois, Salatiel e Jurema colocaram o caldeirão sobre a lenha. Pedras redondas e grandes manteriam o calor. O caldeirão de ferro com barro volta. A fumaça da lenha subiu alto. Jurema colocou bastante coentro. -"Ficou bonito isso aí, minha preta. A cenoura, esse verde todo. A macaxeira branquinha, o amarelo do milho. Eu estou orgulhoso de você, Jurema." Ela disfarçou. -"Vamos cuidar, homem. Temos que pegar mais lenha." Jurema se jogou na rede. Tanto esforço tinha minado suas forças. Salatiel pegou água fresca no pote de barro. -" Descansa, Jurema. Toma água e descansa que eu vou buscar lenha com o Sultão." Ela fechou os olhos. -"Tá bão." Ela sorriu ao lembrar de ser chamada de minha preta com tanto carinho. Após a morte dos pais, Salatiel estava mais calado que antes, macambúzio e pensativo, distante e sem dar carinho como antes fazia. Talvez a chegada de Lampião tivesse mexido com os seus brios. Medo de morrer faz um medroso virar valente, pensou. Jurema adormeceu. Era noite quando Lampião chegou com o bando. -"Oh, de casa. Abram ou mato todo mundo na bala do meu Parabelo." Salatiel e Jurema assustaram com os tiros pro alto da cabraiada. Eles sairam com medo. O cão latiu para os cangaceiros. Maria Déia, esposa do chefe de cangaceiros mais temido e conhecido da história, sacou o revólver e matou o Sultão. O tiro na cabeça do cachorro foi fatal. Sultão uivou baixinho e caiu morto. -"Por Deus, capitão. Misericórdia." Salatiel implorando, ajoelhado. -"Quero comer, cabra. Damião lhe disse, pra arrumar comida. Só isso." Lampião empurrou Salatiel e entrou. Jurema serviu água ao capitão. -"O jantar será servido, meu senhor. Eu mesma fiz." Lampião tirou o chapéu e as armas. Pediu pra lavar as mãos. Ele rezou, agradecendo a hospitalidade. -"A senhora prove a comida. Não sei se colocou veneno. Prove, mulher." Jurema tremendo, obedeceu. O caldeirão aberto. A fumaça tomou conta da casa. Os cangaceiros lá fora, atentos. A colher a boca. -"Estão vendo, não teria coragem de fazer mal a quem só faz o bem ao povo pobre de nosso nordeste." Lampião se sentou. Maria Déia, futuramente chamada de Maria Bonita, também se sentou. -"O cheiro tá bom até. Odiamos coentro, sabe?! Se tiver coentro vai morrer tu e a criança na sua barriga pois tô notando que está embuchada." Jurema engoliu em seco pois tinha carregado no coentro. -"Não vou comer. Vão morrer os dois. Está infestado de coentro. Odeio coentro." Os cangaceiros entraram. Meia Noite e Virgílio pegaram o casal pelos cabelos e os arrastaram ao quintal. -"Fogo neles e vamos embora daqui. Tasque fogo na casa." Ordenou Lampião aos homens. -"Vou levar o bolo. Está duro e massudo mas dá pra comer." Disse Maria Bonita, rindo muito. Salatiel implorou. -"Foi ela que cozinhou. Eu bem que falei que ela não sabia fazer nada bom. Matem só ela, eu suplico." Os tiros sem dó nem piedade. Era o fim de Salatiel e Jurema. Os urubus teriam um banquete com os cadáveres deles ao relento do sertão.

Duas da tarde. Jurema despertou. -"Estou viva. Graças a Deus e a Santa Rita." Ela foi ao quintal e viu o marido de cócoras, perto do caldeirão. O cachorro ao seu lado. -"Jurema? Você estava dormindo tão profundo, nem quis lhe acordar. Venha, assei umas espigas pra nós. Coloquei mais lenha e tapei o buraco mas sai fumaça pelas laterais. Olha." Ela fez cafuné no marido. -"Sobrou muita carne e temos outro caldeirão de bronze. Sabe, vou preparar outro cozido mas sem coentro. Sonhei que a esposa do Lampião não gostava de coentro, Salatiel." Ele a acariciou no braço. -"Se sonhou é um sinal. Temos tempo." A noite caiu impiedosa trazendo a ansiedade e a torturante espera da chegada de Lampião e sua gente. Salatiel e Jurema se olhando, calados. Sultão a porta, olhando pro terreiro como que farejando visitas e problemas. -"Melhor amarrar o Sultão. Cangaceiro é gente reimosa, difícil de lidar e agradar. Vai que se estranham com o cachorro, já viu." Disse Jurema, lembrando do sonho. O fogão de lenha acesa, com bule de café. -"A gente recebe eles com educação que a gente recebeu de nossos pais e vai pra pedra vermelha. A gente passa a noite lá e volta de manhã quando eles já foram embora." Aconselhou Salatiel. As horas passando e a noite avançando. Jurema cochilando. Salatiel com medo e ansioso. As mãos tremendo. O olhar pra escuridão do terreiro. Um canto de coruja ao longe. Um sapo. -"Estranho. Não tem sapo aqui perto." O cão se levantou. Salatiel mexeu no ombro da esposa. -"Barulho de bicho, passarinho. Jurema arregalou os olhos. Salatiel foi ao terreiro. A coruja piou. Salatiel se arrepiou. Estava muito perto agora. -"Amigo? Podemos seguir em paz?" Salatiel não sabia de onde vinha aquela voz. -"Sim. Em paz." Ele gritou. O canto da coruja, três vezes seguidas. Outro canto ao longe. Os cangaceiros saíram da caatinga e tomaram o terreiro. As roupas de couro, bolsas coloridos, chapéus com estrelas e adornos. Os rifles a postos, as longas facas. Jurema saiu, receosa. -"Estamos só nós dois e Deus." Um casal saiu da escuridão. -"Se estão com Deus estão bem demais. Boa noite." Salatiel ficou boquiaberto ao ver Lampião frente a frente. -"Boa noite, meu capitão. A casa é sua." Lampião se curvou. A esposa olhava em volta, curiosa. -"Desde já agradeço ao amigo. Assim espero que seja amigo mesmo. Qual a graça?" Salatiel tremia. -"Salatiel. Minha esposa chama Jurema. Somos seus criados." Lampião fez um sinal aos seus homens. -"Descansem. Cuidem de seus ferimentos pois de manhã partiremos. Precisamos de algo pra calçar o peito." Salatiel era cuidadoso nos gestos e palavras. -"Tenho quatro redes e comida. Espero que o capitão se dê por satisfeito." Lampião o encarou. Os óculos não escondiam um olho com defeito, esbranquiçado pelo glaucoma, que Salatiel percebeu mas evitou olhar. -"Está bom. Maria vai descansar. Salatiel, certo? Sabe de Damião e quero que saiba guardar segredo." Salatiel concordou e fez sinal positivo com a cabeça. Lampião e sua esposa entraram. Ele foi até o fogão a lenha. -"Pedro! Tem água quente aqui." Lampião abriu uma panela grande. -"Arroz?! A gente vai comer só arroz?" Os homens de Lampião riram. Maria Déia foi até o Sultão. -"Que cachorro lindo. Olha, Virgulino. É mansinho e muito belo." O cão adorou os afagos da cangaceira. Jurema estava feliz pois era o oposto de seu sonho que acontecia. -" A mistura está no quintal, num lugar aquecido. Peço, humildemente, a ajuda de seus homens pra pegarem os caldeirões no quintal, meu capitão." Pediu Salatiel. -"Vão três com ele." Ordenou Lampião. Jurema observava a cena de Lampião e Maria Déia se desfazendo de chapéu, armas, cartucheiras e bolsas. Os muitos anéis e cordões de ouro puro eram guardados nas bolsas. -"Preciso lavar o rosto." Jurema servia a esposa de Lampião com água e toalhas. Notou que ela usava um perfume marcante, certamente francês. -"Você está grávida? E fez todo esforço certamente nos esperando." Jurema ficou sem jeito e sem resposta. Salatiel foi escoltado até o quintal. Eles retornaram com os caldeirões. Jurema se ocupava em fazer limonada. Lampião abriu os caldeirões e a fumaça se levantou. -"De onde veio isso se no quintal não tinha nada? O cheiro está bom." Salatiel explicou como a esposa tinha feito. -"Num buraco no chão? Cheio de lenha e barro em volta do caldeirão?! Por favor, o senhor prove antes de todos nós." Salatiel obedeceu e pegou um prato branco de esmalte e uma colher. -"Eu e minha esposa vamos provar juntos. Não jantamos aínda, esperando o capitão e sua gente. Jamais faríamos mal ao capitão que, assim como o padre Cícero, fazem tanto bem ao povo do sertão." Lampião arregalou os olhos e se benzeu ao ouvir a citação ao padre Cícero. Jurema cortou a carne macia com a colher mesmo. Salatiel estava admirado com aquela refeição. -"Jurema. Está muito bom. Eu tenho quase certeza que vai agradar o capitão." Jurema sorriu. -"No caldeirão de ferro tem coentro, no outro não!" Lampião se levantou. -"Como é?! A senhora fez um cozido com coentro e outro sem coentro. É verdade? Eu não sou muito chegado nesse tal de coentro e vou pegar do outro caldeirão." Lampião riu e foi até Jurema. Ele passou a mão na cabeça dela. -"Obrigado, filha por tanto carinho e sem saber fez um cozido sem coentro pra mim. Deus abençoe você e seu filho." Jurema se emocionou. Lampião fez um sinal e seus homens entraram e se serviram, indo comer no terreiro, apoiados nas paredes da casa. -"Será que sobrou um restinho?" Lampião lambeu os dedos, após pedir um pedaço de pão pra passar no molho do fundo do prato. -"Eu vi uma carne macia e no ponto exato de sal. Peguei cenoura, batata doce, macaxeira e milho saboroso com o gosto da carne. Tem uma pimenta lá no fundo, acertei? Jurema, grávida, deve gostar de pimenta mas colocou pouco devido ao seu estado. É a melhor comida que eu comi na minha vida. Minha avó fazia um cozido assim, parecido. Obrigada, dona Jurema." O capitão, sentindo-se em casa, acendeu um cigarro na brasa do fogão. -"Minha Maria. Vocês conseguiram agradar minha mulher, que não é fácil. Essa sertaneja que me amolece o coração. " Lampião olhou para Maria Bonita, apaixonado. Maria Gomes de Oliveira, a Maria Déa ou Maria Bonita, era esposa do sapateiro José Miguel da Silva, o Zé de Neném. Antes dela entrar no cangaço, outros cangaceiros tiveram mulher e filhos mas nenhuma delas se atreveu a acompanhar o esposo na vida dura pela caatinga ou empunhar uma arma ou Parabelo. Lampião conheceu a moça em Caiçara, Bahia, em 1929. Maria estava na casa de seus pais e tinha 17 anos. Era sobrinha de um coiteiro de Lampião. Quando soube que Maria Bonita seguia o bando do marido, Sinhô Pereira, mestre e chefe do primeiro bando que Lampião participou, estranhou o fato. -"Virgulino permitiu mulheres no bando? Isso vai causar desavenças, ódio, cobiça, inveja e ciúmes entre os cabras." Teria dito Sinhô Pereira, a época. Virgílio entrou. -"Com licença, capitão. Em nome de todos queria agradecer a hospitalidade, o alimento. Muito gostoso mesmo. Alguns, entre eles eu, lembramos da comida da nossa mãe." Virgílio enxugou uma lágrima e saiu. -"Eu faço das palavras de minha Maria e as de Virgílio as minhas. Para mim novidade e novidade boa. Eu estou satisfeito." Tempo depois, Jurema serviu o bolo de aipim com café. Alguns homens já dormiam no terreiro, enquanto dois ficava de guarda. Salatiel se juntou aos homens no terreiro. -"Prefiro dormir no terreiro pois ronco alto e não quero importunar." Maria Bonita insistiu que Jurema ficasse na casa, devido a sua gravidez. -"Fica comigo, dona Jurema. Seu marido pode dormir no chão, você e a criança não. Vamos rezar o terço até o sono chegar." Uma só lamparina acesa. A porta aberta. Uma sinfonia de roncos lá fora dos homens cansados e castigados pelo sol. Era Salatiel quem não conseguiu dormir. -"Graças a Deus, o cozido de Jurema deu muito certo. Foi Deus quem colocou essa idéia pra ela. Fazer dois caldeirões, um sem coentro foi coisa de Deus pois como ela adivinhou se nunca tinha visto o capitão?! A gente pensa que esse povo é bicho do mato, sem coração. Povo cruel que mata sem dó mas não é assim. São gente com família, sofridos como todos nós, fugindo da polícia como a gente foge da fome. Somos todos iguais, todos Severinos." Um dos homens da vigilância acordou outro que dormia alí perto. -"Pedro?! Sua vez da vigilância, homem. No fogão tem café e bolo. Nunca fomos tão bem tratados assim." Salatiel sorriu e dormiu. Horas depois, Jurema acordou com um beijo na testa. Maria Bonita passou a mão no seu rosto. Ela estava paramentada e armada. Ela colocou o chapéu. Os olhos lindos a deixava graciosa. Um sorriso encantador. -"Daqui duas horas o sol nasce e temos que estar longe, Jurema. Obrigada, minha amiga." Ela sussurrou e afagou a barriga da mulher. -"Seja feliz na sua gestação. Vou me lembrar sempre de sua janta, viu." Lampião veio por trás da esposa. -"Os homens estão prontos e seu marido, de tão cansado não acorda. Dona Jurema, muito obrigado." Lampião a cumprimentou. Jurema percebeu que ele tinha deixado uma pedrinha na mão dela. -"O que a senhora fez por nós não tem preço. Adeus." Jurema derrubou a pedra na rede e saiu no terreiro. Ela não viu mais ninguém. Lampião e seu bando sumiram na mata escura. Salatiel roncava, todo torto encostado na parede de barro. -"Salatiel? Acorda e vem pra dentro." Ele abriu os olhos. Ela o ajudou a se levantar e ir pra rede. -"Cadê todo mundo?!" Ele estava sonado. -"Foram embora." Jurema quis ir pra rede dele. -"Essa corda vai quebrar, mulher. Não somos mais adolescentes." Ela riu e o abraçou. -"Era bode!" Gritou Zé Pedro, horas depois, durante a caminhada do bando. -"Era carne de vaca e das boas pois estava macia. Eu queria repetir mas o caldeirão estava vazio." Lampião e Maria Bonita riam dos comentários dos homens. -"Deixou lá, com ela?" Lampião riu e respondeu. -"Depois daquele banquete? Sim, deixei lá." Jurema despertou. Salatiel estava na outra rede mas sentado. -"Que foi, homem? Até parece que viu assombração?" Salatiel abriu as mãos. -"Vim pra outra rede e olha o que eu achei." Jurema fechou a boca com a mão. -"O capitão me cumprimentou e pôs essa pedra na minha mão. Estava escuro e eu com sono deixei ela aí." A pedra brilhou com os raios de sol. -"Estamos ricos, Jurema. É uma pedra de ouro e das grandes. Meu Deus!" Eles se abraçaram. Salatiel e Jurema se mudaram pra Itabaiana, onde compraram uma casa de frente para a praça da matriz. A filha deles nasceu em julho e lhe deram o nome de Maria Déia. Lampião e Maria Bonita morreram um ano depois, em 28 de julho de 1938, numa emboscada na Grota do Angicos,em Poço Redondo, Sergipe. FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 26/03/2023
Reeditado em 10/04/2023
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