Salvação (microconto).

Encontrei no meio do caminho, numa beiradinha, prestes a cair no rio e sumir. Quis deixar no balaústre, mas aconteceria a mesma coisa, então levei comigo, bem exposta em minhas mãos. No meio do caminho, vi muitos rostos, alguns deles dirigiam o olhar a ela, porém não tinham a coragem. Apenas um, chegando ao final da ponte, chamou minha atenção: um moço desajeitado, de tecidos tralhados (e até furados), com aparência esguia e de brancor queimado, com esses cabelos de estilo inexistente, próprio dos que a aparência é sem-importância. Vi que fitou bem — eu já sabia tudo. Andando mais um pouco, o som dos passos se tornou apenas de nós dois, reverberante. Ele veio. Perguntou-me donde tinha tirado aquilo, eu respondi. Falou, com certo sem-jeito, que era dele, e que ainda bem ter surgido eu; graças. Olhei bem para ele: a cara achatada, com desníveis faciais — os olhos eram bem fundos e escuros, em baixo: polpas graúdas, quase penduradas; as bochechas se retraíam, via-se, com o passar o tempo; ah... e os dentes! os dentes amarelos, quando não pretos, pequenudos e separados, sei lá por que carcomidos; tinha os olhos verdes. No final, vi poder ser mesmo dele; e mesmo não sendo, teria aquilo maior serventia. Entreguei. Ele me olhou muito, mas não consegui decifrar se sua feição era de mero agradecimento, puro, ou se algo a mais, pois me olhava quase com uma seriedade, intenção, não sei, de algo, de maldade; era como se me examinasse, estávamos muito próximos. Nesse ínterim, acabei nem percebendo que ele não tomara simplesmente a coisa, mas apertava minha mão, com leve força, tornando ela minha e dele, isso por um tempo mais do que o necessário; e ele me olhando. Eu estava preparado, só não sabia se ele também. Minhas cogitações eram muitas, tinha de me agarrar à mais eficiente, sabe. Vivemos em perigo constante. Foi quando começou as falas: elogios. Passaram alguns transeuntes, alívio. Observavam a cena, estranhirrindo. Não haveria "o problema", então?! Céus. Me agradeceu novamente, com sua voz falhante. Foi embora, abordando outros. Deveria ser sua mesmo a moeda.

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 26/06/2023
Código do texto: T7823162
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