O Barão de Barra Azul

Escapa-me da boca uma confissão. Um pavoroso segredo. Para que não se percam, conto-lhes do início.

I

Certo dia decidi viajar com amigos e, como estávamos querendo escapar do calor de João Pessoa, fugindo da parte aquosa do mundo, estabelecemos que o melhor seria ir a qualquer lugar onde o sol não castigasse nossos pensamentos a cada passada. Deliberamos bastante e ao fim de uma ou duas resignações, decidimos: vamos a Bonito – interior de Pernambuco.

Seguimos viagem.

Bonito era um município afastado, longe dos grandes centros e de difícil acesso. Para chegar até ele, precisávamos primeiro percorrer por cerca de três horas pela BR 230, atravessar a serra das Russas – que consistia em um conglomerado de pistas e curvas sinuosas e também de casinhas com telhados triangulares e portas de madeira talhada – e subir dezenas de morros íngremes e neblinosos. Era uma zona sitiada, rodeada por uma vasta imensidão de mata fechada e agraciada com belas cachoeiras.

Chegamos ao centro, na partezinha mais povoada deste lugarejo, e Carlos, nosso motorista, nos disse que precisava abastecer. Paramos então no único e imponente posto da cidade: o Posto Barra Azul. Em derredor, observei haver dois ou três comércios locais e, para minha surpresa, todos possuíam a mesma alcunha Barra Azul em seus respectivos nomes. Calculando o tempo necessário para abastecer o tanque, julguei conveniente ir até a mercearia mais próxima junto do meu outro companheiro de viagem, o Conedes. O frio era grande. Acostumados com o calor, os dezesseis graus de Bonito faziam nossas bocas ressecarem. Ingressamos na mercearia, ponderando os produtos. Em todas as nossas viagens era um hábito procurar por itens escassos em nossa cidade natal. Avistei algo interessante. No fim da terceira prateleira, bem no alto e quase escondido, havia uma caixinha quadrada e de tampa volúvel. Em sua capa, achava-se um símbolo – e era diferente de tudo que, até então, já vira na vida. Peguei o produto, passei no caixa e perguntei à moça que estava atendendo:

– Bom dia. Avistei essa caixa de cigarros ali, bem no fundo.

– Sim…. respondeu ela, como esperando qualquer conclusão minha.

– Há um emblema, uma espécie de símbolo tatuado bem aqui na capa.

– Sim… respondeu ela, novamente.

– É de alguma marca? Nunca vi nada parecido.

– É do Barão. Do Barão de Barra Azul.

Ela respondeu e, de imediato, olhou para mim como se esperasse uma nova pergunta, como se uma nova inquirição estivesse prestes a vir à tona. Apenas olhei para Conedes, ele olhou para mim. Pagamos o cigarro e saímos. Nesse momento, Carlos já havia abastecido o carro e nos esperava, sentado ao banco, tamborilando uma samba no painel do veículo.

– Quem é esse tal Barão?

– Não sabemos, respondeu Conedes.

– Vamos descobrir, falei. Tenho a sensação de que em algum momento vamos descobrir.

Àquela época eu ainda não sabia, meus caros; se soubesse, poria travas na minha curiosidade e voltaria, dali mesmo, direto para casa.

II

Ingressamos no carro. Conedes ia à frente, ao lado direito de Carlos e eu, sentado no banco traseiro, observava a conversa dos dois.

— Quando eu era adolescente, por volta dos treze ou catorze anos, apaixonei-me por uma menina. Chamavam-na de Cinthia. Era novinha, tinha a pela branca e os olhos meio jabuticaba. Era de uns cabelos negros, assim bem cacheados, volumosos. Era uma menina rebelde.

Mesmo entre amigos, era costumeiro Carlos empregar uma linguagem desproporcional à situação.

— Você já contou essa história tantas vezes, Carlos. Tantas vezes! Todo o mundo já sabe o desfecho. No final tu vira corno, não é? – respondeu Conedes.

— No final eu deveria cobrar… cobrar não, requerer de vocês o valor investido no combustível. - Disse Carlos.

Conedes riu por alguns segundos e calou. Estávamos subindo outra serra. A visibilidade não nos ajudava. Ao nosso redor, pouco se via por conta da neblina assustadora que envolvia o carro e o farol alto do Celta pouco conseguia penetrar aquele breu cinza. A subida era longa, íngreme, e cheguei a imaginar que não chegaríamos nunca. A certa altura fizemos uma curva e, por trás de algumas árvores altas, avistamos um jovem de estatura mediana e com roupas limpas. Bordado na estampa do seu moletom via-se escrito o seguinte: Pousada e restaurante Barra Azul. Senti um alívio. Finalmente, então, havíamos chegado e não seria necessário continuar aquela escalada cansativa por tão extensa estrada.

Carlos cortou a luz por duas vezes. Na terceira tentativa, o portão foi aberto.

Hoje, contando-lhes essa história, não consigo assimilar o tempo que percorremos desde o centro da cidade até ali, àquela pousadinha longínqua, bem no alto dum morro e, ao que me parecera na ocasião, isolada do mundo.

III

Lembro-me bem de sentirmos fome. Muita fome. No buffet que nos esperava à mesa pouco tínhamos como opção — apenas pedaços de fígado e, se muito, um bolo de nata cortado em finas fatias. Na garrafa vermelha ao final da mesa, café preto. Em outro compartimento, leite e açúcar. Na parte interna do recinto, conseguíamos ver duas cozinheiras no preparo intensivo das comidas e, do lado de fora, apenas um garoto, com não mais de dezoito anos que, aparentemente, era a pessoa que deveria nos servir — o mais estranho, pense, é que em nenhum momento veio até nós e sequer demonstrou interesse em fazê-lo. Como a fome era muita, nós mesmos nos servimos e comemos bem.

Antes de voltar para nossos quartos decidimos que, por ser tão tarde da noite, e também por não termos outras opções para fazer ali, o melhor seria beber algum vinho da localidade e jogar dominó até que o tempo passasse. Chamei o Garçom.

— Posso ver a carta de vinhos? Perguntei.

— Não temos, senhor. Respondeu-me.

— Certo. Certo. Não vendem nenhuma outra bebida?

— Não sei. Deveríamos vender, não é? Respondeu o garoto.

Meus olhos percorreram toda a mesa, olhei para Conedes e para Carlos, meio que buscando uma devolutiva. Sem resposta. Lembrei-lhes, então, que em nossa mochila havia vinho. Como não sabíamos se o estabelecimento permitia consumo de bebidas trazidas de fora — alguns bares eram rigorosos quanto a isso — resolvi perguntar ao garoto:

— Olha, nós temos vinho na mala. Trouxemos de casa para cá. Só tem nós três aqui na mesa e, pelo que vejo, não há outros hóspedes. Será que poderíamos consumir nosso vinho? Prometo que assim que ficarmos bêbados voltamos direto para os nossos dormitórios.

— Não sei. Deveria poder, não é? Respondeu-me o garoto.

Como não entendemos bem, abrimos o vinho e bebemos até por volta da meia-noite. Via a lua pairando bem perto, forte, iluminada e com tons brancos, muito brancos, com a visão prejudicada apenas por alguns coqueiros insistentes e por aves que sobrevoavam a pousada. Nossa conversa fluía. Enquanto Carlos falava sobre seus inúmeros arrependimentos e possíveis castigos pelos seus atos, rebatiamos, retorquiamos dizendo-lhe o mesmo que Pablo Neruda: "somos livres para fazermos nossas escolhas, mas somos escravos das consequências". E não era isso uma tremenda verdade? Nós escolhemos estar ali. Ninguém nos obrigou, não nos foi posta uma faca por entre nossos pescoços obrigando-nos a ir. Existe em nós uma inclinação, caro leitor, uma inclinação para não assumirmos nossas escolhas, para olhar dentro de nós mesmos e decidirmos definitivamente que não somos os culpados. Os culpados são os outros, pensamos, e nunca nós mesmos. Não se enganem, meus amigos, não se enganem: em terras de monstros e crianças, nem sempre somos as crianças assustadas.

IV

Amanheceu. Desloquei-me para fora do dormitório e avistei o Carlos sentado à minha esquerda, numa cadeira de balanço. À nossa frente, via-se, de forma nebulosa, parte de uma plantação de milho, escondida pela neblina que borrava toda a serra. Um pouco mais abaixo, perto do portão principal de entrada, tinha a estrada infinita na qual os minutos se fizeram horas e nosso carro, assim como o bravo sol — que atravessava milhões de quilômetros para chegar à terra — venceu finalmente aquelas curvas e teve êxito, penetrando aquele espaço tempo que nos parecera gigante, do centrinho miserável da cidade até aquele hotel. Continuava fazendo frio. Sentei-me também, abri o maço e retirei um daqueles cigarros de antes. Quis puxar conversa:

– Não são ainda nem oito horas da manhã e eu já quero beber. – disse.

– Qual força sobrenatural o impede, meu caro? - respondeu-me Carlos.

– Me parece errado.

– E fumar não lhe parece?

– Também. Mas desse não consigo me livrar.

Eis que Conedes sai do dormitório e nos pega no meio da conversa, com olhar vago, perdido.

- Vocês não acham estranho o fato de que o Garçom sequer sabe o próprio nome? Digo: se perguntamos por qualquer merda que for, o cara não sabe responder. Vem sempre com aquele papo de “Deveria ter, não é?”. Até agora não entendo como viemos para cá, com tantas opções melhores de hospedagem ao longo do caminho.

- Deixa o menino - disse eu, com olhar de escárnio.

- Menino uma porra! - exclamou - esse bicho tava dando várias voltas ontem à noite de moto. Rondando os quartos, subindo e descendo os morros a toda velocidade. É impossível que vocês não tenham escutado nada.

- Meu ouvido não é tão refinado quanto o seu, meu nobre. Eu estava bêbado e apaguei. Não ouvi um mísero tilintar que fosse. - respondeu-lhe Carlos

- Também não ouvi. Acho que tu tava era sonhando. Fica lendo esses teus livrinhos de terror, de escritores já mortos, e fica fantasiando essas besteiras.

"Pode até ser”, respondeu-nos Conedes. “Pode até ser. Mas sei lá, tem algo estranho por aqui. Tá tudo estranho, diferente. Não sei, galera, mas essa coisa toda de Barão tá me deixando meio cabreiro.” Rimos, no mesmo instante, Conedes e eu, e também riu Carlos, para não ficar por fora; mas era um riso desigual o do Carlos, um riso de quem sorri e ao mesmo tempo teme algo. Olhei-o novamente, riso no lábio e temor nos olhos. Mas que olhos vagos, meu Deus! Lembro-me de pensar assim. Dessa sensação feroz, temerosa. Um riso comedido, quase cauteloso.

Os planos para o dia consistiam em visitar a Cachoeira Véu de noiva I, banhar-se nas águas e, se o tempo nos fosse favorável, dar um pulinho da Véu de noiva II para tirar algumas fotos para provar nossa passagem por lá. O caminho que levava à cachoeira era longo, de terra batida, com pouquíssima civilização em redor: era só uma estradinha cheia de buracos e com casas intermitentes, com espaços de quilômetros separando uma das outras. Passávamos por propriedades parecidas com Fazendas, Chácaras, mas que não havia gado, nem cachorros, nem qualquer animal que fosse. No alpendre das casas: não avistávamos crianças brincando, nem avós bisbilhotando a vida alheia em suas cadeiras de balanço, mas sim pessoas aparentemente normais, em uma vestes esquisitas. Trajavam batas brancas bem parecidas com aquelas de batismo ou de evento cristão. Eram de rosto sofrido, cansado; rostos de quem batalhou a vida inteira por algo, abriram mão de parte da vida por algo grande, maior, incomensurável grande, mas a soma final dos pontos desta augusta luta resultou em derrota. Perderam a peleja e restou-lhe ali apenas a comunhão, a partilha do sofrimento em comunidade. Os semblantes ali dispostos tinham olhos pesados e fundos, pareciam acusar-nos de algo. Miravam-nos com rancor. Em vista daqueles olhos éramos criminosos. Impuros. Não gostei de vê-los, soava penoso para mim. Senti-me mal; quis desviar o olhar. Ao mesmo tempo em que tentava desviar, queria ver, e fiquei assim nesse misto de quem olha para o abismo e o abismo olha-o de volta. Veio à mente Augusto dos Anjos “O homem que, nesta terra miserável, mora, entre feras, sente o inevitável desejo de também ser fera”. Eu estava defronte ao abismo; era o princípio da queda.

V

Chegamos ao Véu de noiva; e que águas geladas e fortes tinham aquela cachoeira. Que frio fazia! Talvez, por isso, não havia ninguém. Ninguém exceto eu, Conedes e Carlos. Tiramos as blusas e mergulhamos no pequeno riacho formado ao final da descida das águas.

Aquelas casas no caminho… - tentei falar - aquelas pessoas e aquelas roupas.. o que era aquilo, um culto, um batismo?

Devem ser devotos da seita do Barão de Barra Azul. - Brincou Conedes.

Como é? - respondi curioso.

Devem ser da igreja do Barão, oras! Vocês parecem que não procuram saber das coisas, não se interessam por nada - súbito parou, respirou profundamente e continuou - como não consegui dormir muito bem ontem por conta do barulho da moto, resolvi perguntar aos funcionários do hotel algumas coisas aqui da região. Escutei umas paradas bem interessantes. Querem saber?

Fale logo, meu amigo… disse eu.

Profira sua argumentação - disse Carlos.

Parece que no final do século XIX, ou um pouco antes, tava rolando o fim da escravidão no Brasil, com uns atos abolicionistas, lei áurea e essas coisas..

Século XIX ou XXI? Eu já disse para vocês: enquanto houver quartinho da empregada nos bairros de luxo….

Vai me deixar contar ou não? - interrompeu Conedes.

Claro!

Então, com a dificuldade no horizonte frente à possível perda dos escravos para uma vida livre, os senhores, os Barões da época, decidiram-se por, então, executar sumariamente todo e qualquer escravo que pretendesse usufruir da liberdade. Para eles, era melhor morto do que liberto.

A liberdade é uma dádiva grande demais, certo? Não suportam a igualdade. - concluiu Carlos.

É aí que entra o Barão - continuou Conedes- É aí, senhores, que entra o Barão de Barra azul. Mas para contar essa história, eu vou precisar de pelo menos duas caixas de cervejas, porque o caso é meio sinistro.

Então Conedes iniciou seu monólogo. Descrevo-lhes palavra por palavra. Não tenho a pretensão de ocultar-lhes nada.

“ Nasceu em 1850 e logo o batizaram de Venceslau II, filho do Venceslau pai, dono de terras e gente. Quando criança, acompanhava o carrasco nos castigos dos cativos: o chicote de couro cru cantava com força nas costas suadas dos escravos e esses, não podendo reagir, com os braços amarrados ao tronco, apenas esperavam que a contagem fosse correta e o algoz tivesse pena, que o algoz empreendesse pouca força no movimento de ida e vinda dos braços. A cada chicotada, a criança, que até então desviava o olhar, receoso do espetáculo, passou a observar o seu derredor. Em um lado via a casta chorosa pelo seu parente, implorando ao senhor que não, que não os castigasse com tamanha ferocidade, e de um outro via o olhar do opressor, vidrado, quase animalesco. O choro e o ranger de dentes de um lado, a brutalidade de outro. Cresceu assim, acompanhando o sofrimento causado pela sua estirpe.

Na adolescência, reprimia toda e qualquer crueldade, requerendo aos pais que amenizassem as penas. Apelava em vão. Venceslau pai era tirano, intransigente, sua mentalidade consistia no que achava correto e sua atitude era a de um homem extraordinário – os meios, embora fossem trágicos e penosos, eram justificados por uma idealização maior. Idealização incompreendida por muitos. Não importava se um ou outro sofresse, perdesse sua vida e sua dignidade, desde que o objetivo maior fosse concluído, pois era o certo.

Eis o certo! Não se mede atitudes, meu filho, pois torna-se fraco quem vacila, quem hesita nas ações. Homem precisa ser firme! Se tiver que doer, que doa aos outros, a nós não, meu menino, pois nascemos para infligir e não para titubear.

Mas meu pai…. começava a responder o futuro Barão, e calava-se sem jamais concluir.

O tempo passava, o menino crescia, tomava corpo e forma, sempre cauteloso e observador quanto às atitudes de seu pai. Nas rodas dos amigos, descompunha a própria raça, falava-lhes sobre os movimentos vindouros da época, da libertação, da humanidade, da liberdade individual enquanto pessoas. Praguejava com rancor, sem nunca aplacar seu ódio. Os colegas riam-se, deleitosos com tamanha asneira proferida e retorquiam, gracejando, e não sem alfinetar também:

- Tu tens sorte. Quando te banhas, banham-se também as negras da Senzala. As negras dos peitos duros e das coxas grossas. Ainda reclamas. Reclamas de quê?

De início, diante dos comentários dos amigos, era tomado pela cólera, o sangue fervia-lhe nas veias, e logo então, passada a primeira leva de ódio, abria um largo e condescendente sorriso, como se dissesse aos meninos algo que nem mesmo tinha consciência, mas que estava dentro dele, do seu âmago e esse quê incompreensível fervilhava, sórdido, como um câncer ainda não descoberto – preste a explodir e devorar tudo pela frente.

Aos quinze anos apaixonou-se por Anastácia – uma escravizada catadora de algodão. Anastácia era de uma leveza sublime, com ares juvenis e de estupenda beleza. Tinha os olhos castanhos, firmes e servis. Olhos de desejo. Terminada a colheita, passeava por entre a casa grande para recolher a farinha com sal destinada ao jantar dos escravizados. Numa dessas recolhidas, avistou-se frente ao futuro Barão e estacou. Esse, por sua vez, pegou-lhe da mão e a beijou. Quem mão calejada, de homem, pensou, e lhe pareceu uma mão fora de conjunto com o corpo; enquanto a forma física expressava uma sensualidade inata, uma beleza inefável, as mãos pareciam um outro universo à parte, uma região distante, fora da realidade. Era áspera, quase dura. Ao primeiro beijo, recuou assustado e o embaraçamento tomou-os de conta. Anastácia fitava-o, esperando alguma ordem, uma palavra de amor ou de posse. Não ouvia nada. Apenas encarava-o e ele a encarava de volta. Novamente era o encontro frente ao abismo, a contemplação de um futuro que jamais poderia concretizar-se, pois, caso pudesse tornar-se tangível, a agonia seria senhora dos dois. Venceslau II, findado o vislumbre, soltou-lhe a mão e deixou-a estática à cozinha da Casa Grande.

Noutro dia, procurou-lhe na Senzala e não a encontrando, passou a perscrutar a fazenda em meio à noite. Achou-a, por fim, deitada ao pé de um juazeiro, acompanhada apenas por aqueles seus grandes e bonitos olhos negros que fitavam o céu, pesarosos. Deitou-se ao seu lado e, sem proferir nenhuma palavra, olhou-a por instantes. Como nenhum ousara falar, talvez por medo ou insegurança, precisou tomar uma atitude. Assomou-se para cima de Anastácia, tirou seu vestido estampado de rosas e girassóis, e prendeu suas pernas junto às pernas dela. Estava por cima e Anastácia, franzina e assustada, não conseguia mover-se; era inexperiente, nunca havia antes deitado com mulher e mesmo assim, dada a frigidez e imobilidade da cativa, precisou relembrar das vezes em que, em meio a madrugadas frias, seu olho vislumbrava os outros meninos fazerem com suas amantes. Fez as primeiras tentativas, temeroso, frágil, porém sem sucesso. Anastácia vacilava. Fechava-se para o futuro Barão e para qualquer outro homem. Era uma menina, pensava, uma menina e nada mais: sem pensamentos, sem qualquer possibilidade de futuro. Olhou para o lado, sentia dor; pensou em chorar. Muito pesado, por sobre ela, estava o Barão, aquela criança que se transformara naquele homem forte, bruto e indiferente. Acima dela, um fardo descomunal obrigava-a a manter-se quieta, a não gritar, como fizera por toda a vida. Venceslau II uivava e bufava, triunfante, com sorriso apaixonado. O amor do outro não lhe dizia nada: o que poderia fazer com aquele amor? Para ela aquele amor assemelhava-se muito com o sofrimento. Por fim, já enfastiado, soltou-a, beijou-lhe os lábios e disse, amoroso, embebido de um sentimento nobre e juvenil, disse-lhe que a amava. Amava não como um senhor, como um dono do qual todos sabiam que o era, mas sim como uma pessoa, uma pessoa diferente dos outros, diferente da sua estirpezinha medíocre e cruel. Proferiu seu discurso e saiu. Anastácia continuou debaixo do Juazeiro, contemplando o mesmo céu, tão indiferente e igual como estava antes do ato. A lua, o juazeiro e aquelas estrelas não se importavam com o que acontecera. E por que deveriam fazê-lo? A realidade não precisava dela.

Já adulto, Venceslau II foi surpreendido pela morte inesperada do pai. Um mau súbito retirara-o abruptamente da vida e das riquezas, transferindo-as, por herança, ao seu único e amado filho. Não recebeu apenas a casa, as jóias e o negócio da família, recebeu também aquelas criaturas que rastejavam dia após dia em trabalhos forçados. Tinha em sua posse um rebanho inteiro de corpos e desejava, agora, com a morte levando as maldades e mazelas do pai, mudar a ordem natural das coisas, e talvez empreender um tratamento que jamais se vira por aquelas bandas. Para isso, não podia fazê-lo sozinho. Era necessário algo maior, incomensuravelmente grande, maior do que a própria vida, uma abordagem metafísica superior àquelas outras já obsoletas. Vasculhou diversas bibliotecas por toda a região, botou dinheiro em várias mãos, buscou nos quatro cantos do agora chamado Pernambuco e, por fim, achou um livresco, de páginas mofadas e feito inteiramente à mão, escrito à pena e tinta de qualidade duvidosa. Possuía o seguinte título: “Os senhores de Barra Azul: uma abordagem teológica”.

– E do quê falava esse livro? A seita veio daí? - Interrompi Conedes no meio da leitura.

– Não interrompa! - cortou-me logo o Carlos - deixa o cara continuar..

Conedes prosseguiu:

“A ciência contida ali tinha ares apoteóticos - pregava uma filosofia de domínio do homem pelo homem. Mas não um domínio baseado em respeito e humanidade, mas sim por uma brutalidade substantiva, por uma imposição física e moral. Era um conceito de regresso ao antigo, um retorno à época da ignorância e barbárie, onde um homem, se desprovido de força vital para o embate, sucumbiria facilmente às mãos de um outro ser fisicamente superior. E ia além, ia a fundo no conceito de que um homem, imbuído de certezas e aspirações nobres, poderia, se assim fosse necessário, empregar quaisquer ações para atingir seu êxito. Não importava quão sangrento e maligno fosse o caminho desde que o objetivo final fosse concluído.

Nosso querido personagem, aspirante a Barão e Divindade, devorou com tal intensidade, com tal paixão o manuscrito que julgou estar preparado para pôr seu plano em ação. Então, insuflado de nobilíssima santidade e compaixão, Venceslau II haveria de triunfar por todos aqueles odiosos senhores e impediria, sem importar a força empregada, as maldades realizadas pelos seus pares. Era uma ideia tão formada em sua mente, tão bem desenhada, que já vislumbrava os louros vindouros dos seus feitos – o amor do público, a aclamação, o glamour dos tratamentos que iria receber por ser tão à frente dos demais, sim, porque todos sabiam desde a infância ser um homem à frente do seu tempo. Um homem só, um ex-senhor de engenho e futuro salvador – um Barão, Cristo, salvador ou qualquer outro nome bonito.

Dormiu embebido nesse torpor de futuro deus e amanheceu banhado em sangue. Anastácia, em meio à madrugada, cravou-lhe com aquelas suas grossas mãos um punhal bem no centro do peito. Gostosa pelo seu feito, Anastácia ainda parou ao pé da porta, antes de sair, e deu uma pequena olhadela para ver seu algoz tossir e estrebuchar na própria saliva.

O mais triste é que o miserável não morreu.

Não se tem, hoje, informações concretas sobre as doutrinas e filosofias da Seita do Barão. Sabe-se, no entanto, que o seu poderio durou cerca de vinte e nove anos.

Os poucos que ainda o seguem, ou melhor, aqueles cuja doutrina pulou de geração em geração, escondem-se por trás de alpendres e de batas – resignados em sua própria loucura. Dizem por aí que seus pensamentos e suas máximas perduram nessa minoria de Bonito até os dias de hoje”.

VI

– O mais sinistro - proferi - o mais sinistro disso tudo é que não há registro em canto nenhum. Nenhuma palavra qualquer na internet e nem na literatura. Isso realmente existiu, Conedes? Ou tu tá inventando isso para assustar a gente?

– Inquietante - nos disse o Carlos - parece inverossímil uma história como essa passar assim em branco.

– Só estou repetindo a história contada pelo porteiro do Hotel. O Jonas.

– Que Jonas?

– O porteiro do Hotel.

– Ele me disse que se chamava João – comentou Carlos resoluto.

Súbito me tremi todo. Uma onda de calor passou-me inteiro pelo corpo. Os batimentos cardíacos subiram e me vi estranhamente assustado – um sentimento do qual nunca conseguirei me livrar.

O porteiro, senhores, chamava-se Jean. Jean de Barra Azul.

Nunca mais tornei a Bonito.

João Pessoa, 2023.

JS Marinho
Enviado por JS Marinho em 17/09/2023
Código do texto: T7887638
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