Eichmann em Jerusalém

- Doutor Klement!

O homem calvo, de meia-idade, sentado na parte externa de um café próximo à Torre de David, na Cidade Velha de Jerusalém, ajeitou os óculos no rosto antes de cogitar em se virar para ver quem o chamara. Era pouco provável que houvesse algum outro Klement nas proximidades, portanto, quem quer que fosse, deveria estar procurando por ele. Sim, logo depreendeu, de fato era exatamente isso.

- Passei pelo hotel e me disseram que estaria aqui - disse animado o recém-chegado, estendendo-lhe a mão, o que fez com que se levantasse. - Rudolph Morgenstern, não sei se ainda lembra de mim!

Klement apertou a mão de Morgenstern. Claro que lembrava, fora o único Morgenstern que trabalhara diretamente com ele, durante os anos frenéticos que haviam precedido a criação do Protetorado Palestino.

- Você engordou - comentou Klement depois que se sentaram, olhando para a mão esquerda do ex-auxiliar. - Ah, e vejo que se casou.

- O senhor descobriu porque engordei - riu Morgenstern. - Eu e Maria emigramos em 1950, depois que ela deu baixa das SS-Helferinnen.

- Muito patriótico da sua parte vir prestar serviço aqui - ponderou Klement, antebraços apoiados na mesa, as pontas dos dedos se tocando e formando um triângulo. - Ainda não circulei muito pela cidade, mas... as coisas aqui parecem estar meio em... ruínas?

Morgenstern encarou seu interlocutor por um instante, até perceber que ele estava fazendo blague.

- Ah, sim, ruínas... estão por toda parte, senhor Klement! Não são tão graciosas quanto as romanas, mas têm lá o seu charme. Ao menos, para os árabes e os judeus... e, obviamente, os cristãos. Estamos próximos do Santo Sepulcro.

- Sim, vi no guia turístico enquanto voava para cá - assentiu Klement. - Aliás, toda essa agitação de polícia para todos os lados, deve ser por conta da visita do papa, imagino.

- Precisamente - assentiu Morgenstern satisfeito. - O papa Paulo VI deve chegar amanhã à Palestina, para uma visita ao Santo Sepulcro.

E abaixando a voz e olhando para os lados com suspeição:

- Mas não me diga que a sua vinda tem alguma relação com...

Klement riu da suposição descabida.

- Não, meu caro Morgenstern. Não estou aqui por causa do papa.

E espalmando as mãos sobre a mesa:

- Estou aqui porque preciso de um favor, e como trabalhou comigo, creio que posso lhe confiar um segredo.

- O senhor pode contar com minha discrição - afirmou Morgenstern solenemente.

- Estou à procura de uma pessoa - disse Klement, num tom baixo, quase sussurrante. - Alguém que cruzou o nosso caminho faz um quarto de século, em Viena, e que veio para cá, ainda na época do Escritório Central para a Emigração Judaica. Você deve se lembrar muito bem dele, porque era um outro Morgenstern.

Rudolph Morgenstern pareceu ficar consternado com a notícia.

- Sim, de fato, doutor Klement, eu me lembro bem desse Morgenstern; até por conta de compartilharmos o mesmo sobrenome, mas, felizmente, não a mesma ascendência. Ele era o que chamavam na época de "judeu branco", um judeu tentando se fazer passar por ariano. E, por razões óbvias, estava ansioso por emigrar para a Palestina com toda a sua família.

- E nós conseguimos os papéis de emigração quase em cima da hora, e isso custou um bom dinheiro extra ao senhor Morgenstern - prosseguiu Klement, no mesmo tom baixo. - E só recentemente eu descobri a razão de toda a pressa. E não era somente pelo início da guerra que se aproximava. Esse Morgenstern tem algo que eu quero muito. Você precisa localizá-lo para mim, já que trabalha na Imigração. Discretamente, devo ressaltar; eu estou aposentado e esta não é, obviamente, uma missão oficial.

Mogenstern fez um aceno de cabeça.

- Eu compreendo, doutor Klement. Entendi no momento em que fez contato usando o seu velho nome de guerra.

- Acredito que há pessoas na Palestina que me consideram um benfeitor, mas outros muitos, provavelmente gostariam de me ver dançar na ponta de uma corda. O fato de que eu tenha vindo pessoalmente até aqui, lhe dá a ideia de como preciso localizar o paradeiro do outro Morgenstern.

- Eu entendo, doutor - disse gravemente Rudolph Morgenstern. - Mas, uma vez que eu o tenha localizado, o que pretende fazer?

Klement encarou friamente o interlocutor, através das lentes redondas dos óculos.

- Vou precisar de um grupo de homens de confiança, preferencialmente árabes, para sequestrar esse Morgenstern e tirá-lo do país. Se a administração do Protetorado souber quem ele realmente é, podem tentar algo perigoso.

- O Judenrat não faria nada contra dois cidadãos do Reich - desdenhou Rudolph Morgenstern.

- Contra nós, não - redarguiu Klement. - Mas talvez prefiram matá-lo antes que revele seu segredo.

- [22-12-2023]