Reveillon

Ele entrou precipitadamente e trancou-se em casa. Aos poucos fora se acalmando. Acendera um cigarro, sentara-se na poltrona e passara a relembrar tudo. Incrível! Aquilo acontecera realmente!...

O sino toca festivamente. É meia noite do dia 31 de dezembro... zero hora...O estourar de foguetes e bombas aperta o coração daquele homem solitário. É a noite de São Silvestre e com ela a expectativa humana em torno do ano que vai chegar.

Pela janela, agora aberta, Paulo vê a multidão se misturando: homens, mulheres - jovens, velhos, adolescentes e algumas crianças (acordadas àquela hora!...) - todos aos risos, contentes (pelo menos aparentemente) almejando as venturas, que nem sempre o ano novo traz.

Ouve vozes cantando em coro, na casa vizinha:

"Feliz Ano Novo, adeus Ano Velho,

Que tudo se realize, no ano que vai nascer.

Muito dinheiro no bolso,

Saúde pra dar e vender..."

Pensa na vida, uma vida como a dele... Há milhares, milhões de pessoas que entoam canções como essa e no próximo reveillon já nem existem... Outras transbordam felicidade até no olhar. Têm dinheiro, têm amor, têm amizades... Pessoas ainda há que nada possuem além da própria vida - riqueza única. Mas agora é o Ano Novo que chega. A humanidade, por algumas horas, parece esquecer a fome, a miséria, a guerra, os conflitos... Ricos, pobres, bonitos, feios, brancos, pretos e amarelos, em uníssono, vão saudar o dia 1º, dedicado à fraternidade universal, como se ela existisse mesmo, sempre.Seria bom se perdurasse a paz e o amor.Que todos se quisessem e se amassem até o final dos séculos. Todavia, para muita gente, é necessário que haja ocasiões especiais para que as virtudes sejam lembradas.

Também para Paulo aquela noite não é de esquecimento. Há além do contexto da data, um motivo forte. Em silêncio, fuma um cigarro e analisa sua existência. Mergulha, escafandriando o passado dos anos.

Sempre fora eufórico, desde criança. Relembra a voz de Presciliana, irmã de sua mãe:

- Paulinho, cale a boca, não deve rir assim! Menino endiabrado!

- Por que, tia? ora, acho graça de muita coisa, então rio... - E desatava em gargalhadas.

Morara com sua tia numa cidadezinha do interior. Sua mãe morrera ao lhe dar à luz, longe dos cuidados médicos. A parteira,a "comadre" da vila, coitada, não pôde dar jeito e o médico mais próximo residia a muitos quilômetros. Sem condução apropriada, naquela noite chuvosa, a gestante não teria condições para enfrentar a estrada lamacenta e cheia de buracos. Morrera naquela madrugada cinzenta e fria, assim que acriança nascera. Seu pai, já idoso e doente, não se casara mais. Resolvera partir para a cidade grande, após o funeral e, dois anos depois, falecera também.

Paulinho crescera com sua tia Presciliana. Estudara os primeiros anos na única escola da vila próxima, até a adolescência, quando se transferira para a cidade onde morou muitas anos com Emília, irmã de seu pai. Lá concluíra o 2º grau e se empregara. Não continuara a estudar, não lhe sobrava tempo.

Rapaz simpático e trabalhador, empregara-se numa firma e mais tarde já exercia alta função. Economizando sempre, conseguíra comprar uma moderna casa e para lá se mudara.

Era muito querido entre os amigos.Saía com as colegas de trabalho mas não levava nenhuma a sério, até que, um dia, conhecera aquela moça.

Raquel era linda. Moça ambiciosa, vivia à cata de um bom partido. Era de família humilde e desejava sair da mesmice daquela vida. A mãe a considerava um trambolho:

- Não sei o que é que essa menina quer. Não estuda, não trabalha. Só quer saber de luxo. Sei não... Moça de hoje só dá preocupação... e, tristemente, recomeçava sua labuta diária, rogando aos céus um bom casamento para a filha.

Todo dia era o mesmo lenga-lenga e Raquel não mudava de vida. Em cada ano que surgia, a mesma cantiga:

- Raquel, veja se neste ano vai pra escola, já que não tem coragem pra trabalhar.

-Ah, mãe, já vem você com essa conversa. Não amola!...

Os dias passavam monótonos, tristes, sem perspectivas. Findara a primavera e as últimas flores saudavam o verão que chegava. O sol agora brilhava mais forte e o calor aumentava, gradualmente. Raquel se enfeitava pra encontrar marido rico, de destaque social ou que tivesse bom ordenado. Que lhe importava o brilho do sol? Ou o perfume das flores?Ou ainda todas as belezas da natureza? Ela é quem deveria brilhar, ser perfumada e bela.

Chegara o reveillon. Outro reveillon ao longo dos anos. Raquel se preparava para ir a uma festa com amigas que conhecera recentemente. E foi lá que Paulo a viu. Ela muito elegante no seu vestido de malha branca, com alcinhas e enfeitado de rendas. Morena, cabelos negros, belos. Tudo lhe caía bem, seu corpo era magnífico. E que belas pernas!Deixara Paulo estonteado.

O rapaz não resistira:

- Oi! - se aproximara dela.

- Tudo bom?

Não se separaram mais naquela noite. Paulo se ligara seriamente à moça e, um ano após, já pensava em se casar.

Tudo ia bem. A moça parecia ter conseguido o que almejara. Não desejaria frustrações em seus ideais. Paulo não era rico mas tinha um alto salário e posição social resultantes de um trabalho perseverante.

Batidas na porta interrompem o pensamento do rapaz. Ele se assusta indeciso se atenderá. Decide pelo sim, já que a janela está aberta e ele não poderia fingir que estava fora.

- Feliz Ano Novo, Paulo! venha tomar uma taça de champanhe com a gente. Por que está sozinho? E a noiva, por que não está com você?

Diante da maratona de perguntas, Paulo apenas responde à vizinha:

- Obrigado, Dona Magna, mas não me sinto bem. Desculpe se recuso o brinde. Agora, se me dá licença...

- Até logo, então, Paulo. Pena você não poder vir.- E pensa, após fechada a porta: Interessante ele omitir as respostas sobre a noiva. Ah, mas isso não deve ser nada... briguinhas de namorados e logo no Ano Novo, é um mau presságio...- Apressadamente voltoiu para a festança onde se ouvia a balbúrdia e o vozeirão alegre entremeados de risos, música e estouro de champanhes.

Paulo dá novamente rédeas ao pensamento e o painel se lhe apresenta nítido. Remói a saudade fumando um cigarro após outro. A fumaça enche a sala sendo desvanecida pela brisa que vem da janela mas que não consegue apagar suas lembranças.

Três noites de reveillon Raquel e Paulo passaram juntos. Foi estão que ela começou a apresentar reações diferentes em suas atitudes comuns. A partir daí, sempre brigavam. Paulo se sentia desanimado com o casamento que se aproximava. Na realidade, já não tinha certeza se ainda a amava. Suas vidas caíam, antecipadamente,na rotina do cotidiano.

A situação piorara quando surgiu um boato: Raquel estava saindo, às vezes, com um industrial de quem estava se tornando amiga. O rapaz aguardava ocasião para comprovar a veracidade do caso. Mais tarde soubera o quanto Raquel era ambiciosa e muitos fatos relacionados com a vida da moça. Era o choque entre o conceito que dela fizera e a vulgaridade da jovem.

Aquela seria a quarta noite de reveillon em que se encontrariam. Paulo já planejara acabar com o noivado naquela ocasião. Um reveillon os aproximara. Um reveillon os separaria.

Pessoas barulhentas passavam na rua fracionando as reflexões do rapaz. Um bêbado, em altos brados, dá vivas ao Ano Novo. Mas Paulo, involuntariamente, retorna ao passado.

De repente aconteceu...- o rapaz, aniquilado, chega ao fim da retrospectiva. - Tinha ido às dez horas à casa da moça. Lá tudo era silêncio. Um silêncio longo, sinistro... Estranhara, já que Raquel, quando sozinha em casa, sempre abria todo o volume do som. A porta estava aberta. A luz da sala acesa. Chamou várias vezes e não obteve resposta. Entrou desconfiado. A um canto da sala estava uma estatueta de bronze oferecida por ele. Pegou-a e se preparou para um possível encontro indesejável...

Um suor frio escorria do seu corpo prenunciando algo alarmante e a garganta se lhe apertava. Lá fora, o vento sibilava inquieto. Mais longe, o ronco dos ônibus e caminhões e a buzina dos automóveis rompiam o funesto silêncio.

Continuou a entrar olhando em cada canto até chegar ao quarto da moça. Ligou o interruptor e um quadro horripilante se lhe depara: Raquel pendia da cama, olhos esbugalhados, a boca, que fora tão bela, estava escancarada. De camisola e com manchas de sangue no busto, ela apresntava a palidez rígida da morte estampada na face.

Apavorado, Paulo saíra e, neste estado de espírito, chegara em sua casa para, com mais calma, pensar na situação: ou se dirigir à polícia ou aguardar o desenrolar dos acontecimentos. Na verdade, estava em apuros.Algumas pessoas sabiam de seus planos para terminar o noivado. E se alguém o viu saindo da casa?

Uma estória banal, de tema trivial, semelhante a centenas de outras, mas que, para ele,se revestia de caráter próprio - a realidade : a vítima era sua noiva e, ultimamente, não se entendiam bem.

Dentro da escuridão, a noite andava. O homem solitário esmaga no cinzeiro o último cigarro. Longe, bem longe, atravessando a muralha do tempo, ouve a voz de sua tia:"- Paulinho, não deve rir assim...".- Gostaria de poder rir como antes. Parecia que séculos o separavam daquela época. Pensa no slogan: "Não há crime perfeito". - Aquele (se fosse crime como parecia ) seria desvendado?

Besouros circunvadiam o globo da lãmpada fazendo zum-zum. Ele apaga a luz e espia pela janela. No alto, os poucos pontinhos brilhantes vão desaparecendo. Somente a Estrela D'Alva sorri para baixo, gracejando dos pobres mortais.

A multidão já se dispersava pelas ruas, buscando o aconchego dos seus lares. Um casal abraçado passa em frente. Mais atrás, um senhor com um braço nos ombros de uma mocinha de longos cabelos negros. Um notívago, lentamente, atravessa a rua. Outras silhuetas são distinguidas à distância, perdendo-se no mistério da noite.

Os foguetes e as bombas há muito haviam emudecido. Logo a madrugada fria e opaca romperia e, com ela, o primeiro dia de um novo ano, findando, assim, o úlimo reveillon de Raquel...

Nadir de Andrade
Enviado por Nadir de Andrade em 31/12/2007
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