Lágrimas de Ninguém

Olhava para os lados, à espera de algo.

Não sei dizer exatamente o quê, mas, aguardava. Aguardava e muito. Ansiosamente. Pré-ocupadamente.

Nada o faria sair daquela posição, nada o atingiria, pensou.

Não podiam atingi-lo ali, tão acima de todos, tão distante das mãos agressivas de seus pais…

Nunca foi amado, como toda boa criança. Sempre foi odiado, como nenhum outro paria… aliás, quem havia dito a ele que não o era? O maior de todos, o inigualável. Desprezível.

Idiota.

Burro.

Para que você serve mesmo? Vá lavar uma latrina, seu manco imbecil. Muco!

Adorava quando alguém, em algum momento, lembrava que ele tinha que comer!

Oh, que delicia… aqueles pedaços de fruta deixadas pelos outros, o que sobrava de arroz…

Feijão.

Tudo lhe era maravilhoso, quando vinha a lata cercada de moscas varejeiras.

Isso mesmo, comia os restos. O rejeito de todos.

Sentia-se a alma mais abençoada quando lhe traziam uma bacia.

- Lave-se aí e depois arrume toda a bagunça, ouviu?

Ele tinha 4 anos quando falaram isso para ele.

Bons tempos aqueles… pelo menos, levavam uma bacia.

Foi esquecido em sua primeira juventude. Deixado de lado a ponto de esquecer o próprio nome.

Não havia com quem conversar, e, quem aparecia, logo sumia por entre as curvas da vida e do tempo.

Passou a andar sozinho por beiras que ninguém andava. Sumia no meio de latões prateados e enferrujados, quando não pintados por cores toscas. Era confundido com animais diversos, até mesmo um ser humano.

- Cruzes, homem! Vá tomar um banho!

Alguém falara com ele, mas dar-lhe ouvidos já era exagero.

Ouvir sua voz era milagre. Quando ela não saía acompanhada pelo pigarro agarrado de tanto tempo em sua garganta, os ares putrificados de seus pulmões conseguiam afastar o quer que fosse… até mesmo aquelas moscas que tanto lhe acompanharam.

Fechou-se em um mundo particular, cheio de bons ares!

As flores de todas as cores, misturadas em arco-íris infindáveis!

Como era lindo seu mundo de árvores que se desdobravam sob os ventos que vinham junto ao pôr do sol.

Um mundo só dele.

Só dele.

Quando se viu, estava de pé, em uma faixa tão estreita de concreto que tremera-se todo!

Seus pés, afastados, equilibravam-se sobre os dedões, seus braços abertos, jogados ao vento tranqüilo da altitude.

O pescoço, esguio que dava medo de quebrar, estava erguido, o queixo quase tocando as barbas de Deus.

Olhou para baixo com medo.

Todos o olhavam!

Será que alguém finalmente havia o visto?

Sim!

SIM!

Estavam assustados, estavam admirando. Estavam bestificados e boquiabertos com tanta habilidade!

Estavam curiosos! Quem seria aquele ali!!

- Será que é algum artista?

- Talvez do circo!

Já tentara trabalhar no circo, lembrou-se. Aliás, foi sua primeira lembrança… o circo. Seus pais.

Como podiam ser tão cruéis com alguém tão miúdo?!

Ele pensou, e agora?

Ele passou a ouvir as sirenes! Policia? Será que viriam prendê-lo? Enfim, teria um lugar para comer e dormir…

Passou novamente a ser quem ele era.

O esquecido.

Não sabe quanto tempo passou na cadeia. Só porque não sabia escrever seu não-nome, lhe deram um nome pouco chamativo.

Mas, com total alegria no coração, na cadeia ele permaneceu sorridentemente!

Tinha o que comer, não?! Tomar banho era uma maravilha, mesmo após tantos abusos de seu corpo pouco resistente.

Não conseguiu impor-se sobre a ânsia dos distintos cavaleiros com quem conviveu.

Chamaram-no de donzela, até tornar-se vadia.

Não era problema para quem pouco sabia sobre contato físico. Descobriu que gostava de ser possuído… mesmo não sendo de sua natureza.

Pelo menos, tinha alguém que lhe tocava…

Enfim, um dia, acho que era um natal… descobriu-se deslivre. Fora solto de seu paraíso para a selva de um mundo que lhe odiava.

Estava livre, mesmo?

Mas, surpreendeu-se. Logo ao sair, deu-se de frente com um aglomerado de pessoas, com objetos que desconhecia em suas mãos. Havia luzes e fios para todos os lados.

- Vocês são do circo? Vieram me buscar de volta!! Para lá não volto, não volto!

Gritou desnecessariamente.

Não, não era o circo, mas foram necessários mais do que 10 homens para prová-lo que aquelas pessoas eram jornalistas, uma raça estranha e curiosa demais!

Diziam que ele era um mito!

Com dons inigualáveis de arte corpórea! O que eles queriam dizer, não me pergunte…

Uma mulher se aproximou, carinhosamente, afastando-o de todos aqueles a quem ela denominava “abutres”.

- Estou te oferecendo uma vida nova… você quer trabalhar?

Paralisou-se. trabalhar?

- Qual é seu nome?

A voz não saiu. Não esperava mais do que isso, mesmo…

- As pessoas aqui fora estão lhe chamando de Personne… gosta?

Sim, aquelas luzes, que agora o aqueciam e o cegavam, impediam-no de ver, mas, sim!

Todos estavam de pé.

Ele não sabia o que faziam…

Não via a ninguém, por culpa de tanta claridade.

Mas as respirações estavam suspensas!

Lembrou-se das faces que olhavam os mágicos e trapezistas do teatro, com seus olhos atônitos.

Ele permanecia parado. Estático. Aguardando.

Estava suando, com tanta luz que o “fritavam”! A respiração descompassada! Quanta ansiedade!

Quando as palmas, alegres, começaram a estalar.

Grande Personne… bravo.

E ele, satisfeito, enfim, chorou…