O Homem Mais Corajoso do Mundo

Era fim de tarde. Luciano saiu de casa a pé para resolver algum compromisso.

Chegando perto de uma pracinha bastante abandonada e mal-estruturada, ouvia ao longe uma zoada tímida.

Mas não reconhecia o que era. Intrigado, continuou andando ao longo do perímetro da praça.

O som começava a ser reconhecido por seus ouvidos. Eram sons parecidos e repetidos, mas sempre diferentes e inconstantes. Franziu a testa. Apressou o passo. Não poderia ser algo bom.

Mais perto, já podia distinguir um som grave e outro abafado. Até que conseguiu avistar de onde partia som. Parou imediatamente.

Detrás da velha estátua da praça, havia apenas um homem. E só se conseguia ver o movimento de uma de suas mãos.

Bastante confuso, Luciano não andava. Ficou parado. Talvez mais alguns segundos ouvindo os sons, ou prestando atenção na imagem, o fizeram perceber a realidade: com uma mão aquele infeliz encostava em uma garotinha, enquanto com a outra tapava sua boca.

O coração de Luciano acelerou. Sua boca ficou levemente entreaberta. Ele não queria acreditar naquilo. A imagem que seus olhos recebiam não poderia ser real.

De forma quase inexplicável, a menina consegue livrar sua boca da mão do inútil. Clama um breve e desesperado pedido de socorro, que foi calado novamente em menos de dois segundos.

Naquele momento, Luciano arrepiou-se completamente. Os pêlos ergueram-se. Viu um flashback sobre toda violência, maldade, ambição e impunidade que já ouvira falar.

Durantes os segundos que estava tomado pelo frio na barriga, perguntou-se “Seria eu capaz de fazer algo?”, “Será que posso simplesmente ignorar e seguir meu caminho?”. A razão hesitou em responder, até que a emoção falou mais alto. Respondeu todas as perguntas e transformou todo o medo e hesitação em força e coragem.

Levantou o rosto. Com passos largos, ia na direção do desgraçado. Rangeu os dentes. Mãos fechadas já se preparavam. Viu que não havia ninguém mais ali por perto. Só ele poderia fazer algo. Seus olhos ameaçavam lágrimas, lamentando os preciosos segundos que deixou passar. A garota dependia dele, apenas dele.

Luciano foi andando, sem falar nada. Até que, a um pouco mais de cinco metros de distância, aquele miserável percebe sua presença e recua assustado:

-Epa. Pára aí! – ao mesmo tempo em que retira do bolso um estilete enferrujado e põe próximo ao pescoço da menina.

Luciano parou. Não mais por medo, mas para não ser precipitado. Após ver o rosto do homem fétido, disse energicamente:

-Não tá vendo que é só uma garotinha? – respira fundo – Não encontro palavrões à altura de sua mediocridade ou da raiva que tenho de seu rosto.

Indignado com a ousadia dele, o ordinário acaba tirando o estilete da menina e aponta para Luciano, esticando a mão.

-Fica quieto, rapá! Vaza daqui. Vaza logo!

Com o estilete longe da garotinha, Luciano viu ali sua chance. Sem pensar muito, foi andando devagar. Ele queria dominar a mão que segurava o estilete, ou pelo menos desviar a atenção do outro, para que ela pudesse fugir.

O homem não era grande demais, mas Luciano não era também. Era certamente muito arriscado, pois Luciano estava em desvantagem, além do que não tinha experiência em nenhuma arte marcial. Mas só pensava na segurança daquela menininha. Já não pensava em mais nada. Não poderia permitir tal covardia.

O homem já calculava como furá-lo. Luciano já estava preparado para agir.

Na iminência do ataque, ouviu-se um longo grito:

-Saraaaa!!!

O pai de menina – que já estava à procura da filha - havia aparecido na rua que ficava para o lado detrás do homem. Pelo susto, este acabou virando o rosto na direção do grito.

Tão concentrado, Luciano, soube usar o momento perfeito. Saltou sobre o homem, segurando sua mão – e tomando cuidado para não cair sobre a garota.

Felizmente o infeliz não teve tempo para provocar alguma violência mais grave na menina. Enquanto ela corria para o afago do pai, o estilete caiu no chão.

Meio desajeitado, Luciano tentou imobilizar o homem, o que acabou não dando certo. Luciano levou alguns golpes, que permitiram o homem sair debaixo e fazer um contra-ataque.

Ele ficou sobre Luciano. Acertou dois ou três golpes na face, até que Luciano pôde ver, lateralmente, que o estilete estava quase ao alcance de sua mão. Empurrou o homem e tentou acertar-lhe entre as pernas, mas não atingiu de forma certeira. Conseguiu apenas afastá-lo.

Luciano pegou o estilete com a mão direita, mas não daria tempo de se levantar. Luciano teve de improvisar. Segurou o estilete sem usar o polegar, mantendo a palma da mão para baixo, permitindo que a extensão do braço cobrisse o estilete.

O homem voltou, rindo da situação de Luciano, que aparentava estar fraco e tonto. Preparou-se para socar ferozmente seu rosto.

Quando a mão quase terminava de descer, foi parada pelo estilete enferrujado.

Luciano, na verdade, estava tonto, mas fingira estar tão exageradamente fraco. Da direita para a esquerda, Luciano trouxera o estilete à frente do rosto, conseguindo atravessar quase toda a largura da palma da mão direita do infeliz. A mesma mão que há pouco encostava na garotinha, agora jorrando o seu pecado.

Consciente ou inconscientemente, Luciano ampliou ainda mais o corte, enquanto retirava o estilete. Fraco demais para continuar combatendo, o homem desgraçado entregou-se ao chão.

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Já com ambulância e polícia no local, o pai vai com Sara ver Luciano. O pai, muito emocionado, aperta a mão de Luciano, diz, misturando com soluço de choro, votos como “Que Deus te abençoe” ou “Que Deus te pague” enquanto abraça-o, meio de lado, dando tapinha nas costas. Luciano concorda com a cabeça e balbucia algo como “Não foi nada, não”.

Depois o pai fala para Sara:

-Agradeça o moço, filha.

Ela anda um pouquinho para frente e olha nos olhos dele. Luciano aguarda ela falar.

Os segundos passam, mas Sara nada fala. Luciano vê que Sara quase não me mexe, apenas olha fixamente ele, aparentemente de forma tímida. Ele então, surpreso e até confuso, franze um pouco a testa e tenta penetrar no olhar da garota.

Os olhinhos da criança, que tinha sete anos, começaram a brilhar.

Quando Luciano começava a se derreter todo, Sara rapidamente pulou sobre seu pescoço e prendeu os pés nas costas. Luciano levou um susto. Foi enrolando suas mãos em volta dela, enquanto arrepiava-se pelo calor do abraço. Era daqueles que só criança sabe dar.

Luciano sentia-se completo naquele momento.

Mirando horizontes opostos, Sara e Luciano emocionavam-se. Quando Luciano sentiu uma gota molhando a parte posterior de sua camisa, não prendeu mais. Deixou algumas de suas lágrimas escorrerem pelos caminhos de seu rosto, enquanto abraçava ainda mais forte a garotinha.

Não se sabe ao certo quanto tempo durou o abraço. Mas foi o tempo suficiente. Nem mais nem menos.

Sara e o pai, de mãos dadas, começaram a sair. Ela disse, da forma mais inocente e aliviada que se possa imaginar:

-Ele é o homem mais corajoso do mundo, pai...!

-É, filha. É, sim...

Um pouco mais distantes, Sara virou-se e acenou para Luciano, só que agora com um sorriso. Foi a primeira vez que Luciano a viu sorrir. Ele acenou e não conteve um leve sorriso, vitorioso, mas humilde, que dizia “consegui”.

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Luciano tornou-se um apaixonado por crianças. Aos poucos foi tornando-se um escritor, publicando livros, principalmente infantis.

Ele foi também autor de frases, sendo estas duas muito relacionadas com a experiência que passou:

“Alguém corajoso não é alguém não tem medo, mas é aquele que, nas horas certas, consegue encontrar a coragem necessária para não deixar momentos inesquecíveis passarem.”

“O melhor abraço é aquele em que não se usa palavras para iniciá-lo, mantê-lo ou terminá-lo. Experimente.“

Quando não escuta zoada de carro, nem de pessoas, nem de eletrônicos, fecha os olhos e quase consegue sentir novamente o abraço da menina. Até hoje Luciano faz versos inspirado nele.

Quanto a todo o ocorrido, não ficaram na memória o ódio, nem a violência, ficou apenas o abraço. E, por ele, Luciano faria tudo novamente.

Cláudio Theron
Enviado por Cláudio Theron em 07/01/2008
Reeditado em 07/01/2008
Código do texto: T806786
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