A caixinha de música - Parte I

 

A solidão é um demônio alado, genitor de alucinações. É assim que vivo: em companhia desse demônio, entrelaçado em suas asas.


Desde que o velho Bertoldo mudara-se para a casa vizinha, um estranho pesadelo passou a roubar-me o sono; acordava apavorado, no meio da noite, ainda com o som de uma caixinha de música saltitando dentro da minha cabeça. Na primeira noite, não havia imagens; só as notas metálicas a tocar uma valsa melosa. A partir da segunda vez, ao som da mesma valsa, o velho Bertoldo aparecia a sorrir e balançar as mãos com trejeitos efeminados. Ao passar perto da cômoda, ele acarinhava a cúpula de vidro onde uma pequena bailarina, com uma pomba branca na mão direita, rodopiava com sua saia rodada de tule. Incomodava-me a cena do velho com aqueles gestos adamados que em nada combinavam com sua feição máscula e sisuda, escondida atrás dos brancos bigodes. Deixava-me maravilhado, no entanto, o fato de ser a dançarina uma miniatura de mulher e não, como nas caixinhas comuns, uma bonequinha de matéria inânime; era divino aquele pequeno ser dançante que, ao compasso da música, desenvolvia movimentos graciosos. Eu assistia a tudo estático, sentado a uma poltrona que mais se assemelhava a um trono majestoso. Apesar de nunca ter entrado na casa do velho Bertoldo, estava convencido de ser a sala do meu solitário vizinho o cenário do enigmático pesadelo. Num dos cantos, pendurada a um cabide, descansava uma antiga farda militar repleta de divisas. Na parede oposta, entre dezenas de outros quadros, destacava-se uma moldura em estilo colonial, onde o retrato do homem, quando mais jovem, aparecia metido no uniforme marcial. Por todos os lados, móveis em verniz escuro e sem brilho, jogavam no ar um cheiro insosso de passado. No centro da grande sala, indiferentes a minha presença, os protagonistas da dança continuavam suas evoluções. Após a última nota da valsa, o velho Bertoldo, aproximando-se da pequena bailarina, perguntava-lhe, com olhos afogados em lágrimas: — Por quê? Por quê? Ela, molhando de pranto as pequenas faces rosadas, apenas respondia: — Eu juro, querido! Foram só boatos! Ao ouvir estas palavras, o velho transformava-se numa besta horrenda; os olhos saltavam do rosto, os bigodes convertiam-se em serpentes que, dando voltas em seu pescoço, lambiam-lhe as orelhas com suas línguas bifurcadas. Enchendo o pulso de fúria, o monstro atroz desferia um único e certeiro golpe contra a cúpula onde a frágil dançarina gritava horrorizada. O sangue da pata bestial, ferida pelo vidro estilhaçado, misturava-se ao da bailarina esmagada pelo punho monstruoso. A caixinha, avariada pelo impacto, ensaiava notas desafinadas de uma marcha fúnebre. Neste momento, horrorizado com a cena, eu acordava ofegante, com os lençóis encharcados de suor. Vá até lá! Vá até lá! – imaginava ouvir dentro da minha cabeça. Não, Garcia! Você não pode fazer isso! – asseverava-me a consciência, deixando o meu espírito reticente. Mesmo acordado, a lúgubre trilha sonora permanecia em meus ouvidos até o amanhecer.


Há exatos 29 dias, o velho Bertoldo passara a morar na minha rua; chegou no meio da madrugada, vindo sabe-se lá de onde. A vizinhança acordou com a novidade anunciada por uma janela frontal aberta no pequeno sobrado. Aquelas janelas viviam cerradas há anos; ninguém sabia sequer informar se a casa tinha donos. De repente, eis que surge o velho bigodudo para atiçar a curiosidade de todos. Além da feição exótica, os hábitos noturnos do novo morador chamavam especial atenção. Ele jamais era visto durante o dia; não saía de casa para absolutamente nada. Bastava o sol mergulhar no horizonte e lá estava ele, sentado num tamborete, sob a fraca luz da varanda. Com a boca escancarada, sorvia o frescor do início de noite, como um papa-vento centenário, devorador de brisas. As velhas mexeriqueiras logo foram parar a sua porta. Fazendo a política da boa vizinhança, mostravam-se prestativas, escondendo as verdadeiras intenções. Denotando astúcia, o homem praticamente as colocava para correr com acessos de grosseria e mau humor. É um monstro – comentavam indignadas com o fraco rendimento das suas bisbilhotagens. A única informação que conseguiram arrancar dele fora o nome, que talvez nem seja verdadeiro. Todo o esforço do velho Bertoldo para manter-se como uma incógnita, no entanto, só atiçava as brasas da curiosidade geral. No meu caso, particularmente, vislumbrar a silhueta boquiaberta sob a fosca lâmpada da varanda teve efeito ainda mais devastador: incutiu-me na mente o pesadelo bizarro. Indo além da simples curiosidade, conhecer a fundo o passado do velho Bertoldo logo se transformou em obsessão. Algo me dizia que só sabendo da sua verdadeira história, eu recuperaria a minha paz.  Já não suportava mais; meu tormento completava exatos trinta dias.


— Garcia, vá para casa! Você não está nada bem – disse-me o chefe de redação, logo após o meio-dia. — Aproveite a tarde e vê se dorme um pouco – completou, percebendo as profundas olheiras que quase me tapavam a visão. Admitindo que já não conseguia me sustentar sobre as pernas, aceitei a sugestão do chefe e voltei para casa. Entrando no quarto, sequer fechei as cortinas da janela por onde o sol da tarde lançava seu clarão avermelhado. Indiferente a tanta luz, caí literalmente na cama, sem tirar nem mesmo os sapatos. Sobre a cômoda, o relógio marcava 16h. Após alguns segundos, quando já me ausentava do mundo, as notas começaram paulatinamente a tilintar nos meus ouvidos. Em plena tarde? Isso precisa ter um fim! – raciocinei irritado, não suportando mais tanto martírio. Tirei do fundo da alma sonolenta as últimas forças e saltei de pé, no meio do quarto. Vá até lá – ecoou a voz nos meus ouvidos, nocauteando de vez minha já cambaleante consciência. Ainda hoje acabo com esse tormento – decidi atabalhoadamente, arquitetando meu plano de invasão. Passei o resto da tarde no quintal estudando a residência vizinha. Um detalhe, em especial, chamou minha atenção, levantando suspeitas. Contando a partir da frente da casa, notei que a terceira janela do primeiro andar, além de fechada como as demais, encontrava-se protegida por robusta grade de ferro. Afinal, por que alguém colocaria grade numa única janela alta e inacessível, deixando todas as outras, inclusive as do andar térreo, desprotegidas? Meu faro de detetive, prejudicado pelas noites perdidas, não me ofereceu uma resposta imediata, mas levou-me a uma conclusão: aquele quarto era o meu objetivo. Não sabia exatamente o que procurar ao invadir a casa, mas desconfiava que só encontraria lá, atrás da única janela com grade do andar superior.


Já se aproximava das 18h; uma lua imensa boiava no céu. No quintal, encostado ao tronco de uma frondosa groselheira, eu aguardava ansioso o momento em que o velho finalmente abandonaria a casa para engolir a noite na varanda Os frutos maduros da árvore formavam um imenso tapete sobre o chão, deixando-o escorregadio. Esmagando as groselhas sob os sapatos, nem era preciso prová-las para sentir o sabor acre tocar meu paladar. Chegada a amarga hora, escalei o muro, ajudado pelos galhos da minha cúmplice groselheira; bastou um salto e a invasão estava consumada. Sentia-me como um rato e como tal agia, escondendo-me pelos cantos. Sou um jornalista, um investigador – pensava, tentando, em vão, aniquilar o incômodo de estar ali. A decisão em prosseguir com o plano, no entanto, permanecia inabalável. Mais uns segundos de espreita e, finalmente, cheguei à porta dos fundos da casa. Experimentei a desgastada maçaneta; estava trancada. Caminhei até a janela e, com a cautela de um ladrão, forcei-a devagar. Sem oferecer resistência, as duas bandas cederam com um rangido de angústia. Pulei para dentro, acompanhando a luz da lua que, precipitada, já iluminava toda a extensão de um longo corredor. Temendo ser descoberto, fechei rapidamente as ventanas e expulsei do ambiente a lua delatora. Meu coração esperneou solitário dentro do peito; dava pulos como se andasse descalço sobre brasas. Tateando em meio à escuridão, caminhei alguns metros. Do fim do corredor, traçando uma linha reta de visão, vislumbrei a figura do velho na varanda mal iluminada. Pela janela aberta da sala, podia distinguir sua silhueta pintada em preto sobre um fundo alaranjado, como num quadro de luz fosca. Pelo menos ele está lá – tranqüilizei meu coração, enquanto subia a escada de acesso ao primeiro andar.


A lua cheia despencava por uma clarabóia no telhado. Uma, duas, três; contei, na penumbra, as soleiras dos quartos. É este! – concluí, diante da terceira porta. Tateando os motivos florais talhados na madeira, tive a sensação incômoda de tocar a tampa de um caixão; senti um frio incômodo de morte estalar todos os ossos do meu esqueleto. Minha curiosidade, no entanto, era milhões de vezes superior ao medo que paulatinamente me tomava o espírito. Preciso ultrapassar esta porta – concluí, decidido, pressionando a maçaneta para baixo. Para minha decepção, a porta estava trancada a chave; pendi a cabeça para frente num lamento, quase colando o queixo ao tórax. Nesse movimento, percebi que um fio de luz oscilante escorregava por baixo da porta, fazendo acender com seu reflexo as pontas dos meus sapatos. Aquele lume dançante não era, com certeza, de uma lâmpada elétrica. Esse velho é louco? Como pôde deixar uma vela acessa num cômodo vazio? – questionava-me, preocupado com o risco de incêndio. De repente, um grande susto substituiu minha preocupação por forte dose de pavor. Percebi que uma sombra fez o reflexo apagar e acender rapidamente nos meus sapatos, como se alguém, dentro do quarto, passasse entre a porta e a vela que produzia o lume. Quase não consegui conter um grito que já se precipitava da minha garganta. Quis correr, mas as pernas não me obedeceram. Assisti então, paralisado de terror, dois delicados dedos aparecerem por baixo da porta. Entre eles, um anel prateado, cintilando a luz noturna vinda da clarabóia, iluminou todo o corredor. Aquele brilho maravilhoso teve o poder de acalmar meu coração; senti meu corpo ficar leve, como se tomado por algum poder mágico. Abaixei-me prontamente e peguei o anel sem encontrar resistência. Era como se o alguém do outro lado da porta quisesse realmente me entregar aquela jóia. De súbito, novo susto: passos apressados subiam a escada. Fiquei atônito diante daquela situação. Testei todas as portas; nenhuma aberta; estava na iminência de ser descoberto pelo dono da casa. Para aumentar meu desespero, não foi exatamente o velho Bertoldo que vi surgi a minha frente, mas o monstro horrendo no qual ele se convertia nos meus pesadelos. Fiquei acuado num canto sob a mira dos olhos da besta que, rosnando e exibindo as garras afiadas, preparava-se para o bote. Encarar de frente aquela criatura de olhos saltados e bigodes de serpentes, quase me fez desfalecer de aflição. Após um longo urro de pavor, acordei exausto, sob lençóis molhados. Vendo que tudo não passara de um novo pesadelo, respirei profundamente, enchendo os pulmões de alívio. Estava de volta ao meu quarto depois da invasão jamais realizada. Como poderia eu, acordado e em sã consciência, cometer tamanho desatino? – questionava-me, enquanto enxugava o suor do rosto. Duas telhas apartadas no teto permitiam a entrada de raios de sol. Observando o clarão, concluí que dormira apenas alguns minutos, já que ainda não era noite. Estranhei, contudo, o fato de o sol não mais invadir minha janela. Olhando para o relógio sobre a cômoda, entendi prontamente o porquê.  O mundo não pára enquanto dormimos – constatei, com um sorriso patético. O sol completara seu passeio em torno da terra e, no momento, iluminava o lado oposto da casa. Pela primeira vez, em trinta dias, consegui ter uma noite completa de sono; o relógio marcava 6h da manhã.

Continua...

Elenildo Pereira
Enviado por Elenildo Pereira em 14/04/2008
Código do texto: T946000