A caixinha de musica (parte II - final) 


Mesmo depois de acordado, permaneci na cama por longos minutos. Sentia-me exausto, apesar das quase treze horas de repouso. Atribuía o cansaço às terríveis atribulações por que passei no meu pesadelo. Repentinamente, uma inexplicável sensação passou a incomodar; algo me dizia que eu precisava simplesmente levantar e caminhar. Procurei sob os lençóis, sem sucesso, o sapato direito que me escapara durante o sono. Pondo-me de pé, continuei a busca; vasculhei cantos, embaixo da cama e nada de sapato. Sai do quarto com meu andar manco, usando apenas um dos sapatos, e caminhei até a cozinha; fiquei boquiaberto ao me deparar com a porta do quintal totalmente escancarada. Alguém teria invadido a casa? – indagava-me, atônito. Corri os olhos por todos os lados, verificando se algo havia sido roubado; não dei por falta de absolutamente nada; tudo permanecia exatamente no mesmo lugar. A porta, simplesmente, passara toda a noite aberta. Como pude ser tão displicente – culpei-me, de imediato. Olhando para meu pé direito descalço, concluí ironicamente: um Saci gatuno entrou aqui e roubou um dos meus sapatos. Assim que me dirigi até a porta para fechá-la, vi o meu humor repentino transformar-se em tortura psicológica; no meio do quintal, meu sapato brilhava sob a luz do sol. Acho que ainda estou sonhando – pensei, intrigado. Arranquei com violência um pêlo da narina. Ahhhhhh!!! Definitivamente, eu não estava dormindo. Fiquei por não sei quanto tempo ali, encostado à ombreira da porta. As interrogações pesavam toneladas em minha cabeça. Caminhei, então, com andar arrastado, até onde estava meu pé de sapato. Quando já me agachava para apanhá-lo, lembrei da janela gradeada do sobrado que me apareceu no sonho. Girei sob os calcanhares num movimento quase automático e, ao fixar os olhos no primeiro andar, descobri que, na realidade, lá não havia grade alguma. A cada passo dado no quintal, novas descobertas faziam com que eu chegasse a duvidar da própria saúde mental. Sob a groselheira, minhas pegadas espalhavam-se em todas as direções; da copa da árvore, um galho pendia fazendo uma espécie de ponte que ia do solo até o alto do muro; no chão, centenas de frutos e folhas verdes. Meu Deus! Nada disso faz o mínimo sentido. Preciso, a qualquer custo, manter minha sanidade – raciocinei. Peguei rapidamente meu sapato e caminhei decidido de volta à cozinha. Tranquei a porta dos fundos e, uma a uma, verifiquei todas as trancas das demais portas e janelas da casa. Nada como um dia de trabalho para afugentar essa loucura que me espreita – concluí. Após um longo banho frio, joguei meus fantasmas para trás e parti com destino à redação. Chegando no jornal, fui direto à sala do editor-chefe; praticamente saltei para dentro, nem lembrando de bater à porta. — Qual a minha pauta de hoje? – inquiri sem rodeios. — Bom dia, Garcia! Como você se sente? – devolveu o chefe secamente, cobrando cordialidade. — Bom dia, Cardoso! Desculpe o mau jeito! Estou bem melhor, obrigado! – falei, com voz branda, tentando me retratar. — Mas... Mas... Qual é mesmo a minha pauta? – insisti. — Crime passional – determinou. — Quero que você faça uma matéria sobre pessoas que matam por amor – emendou o chefe, apontando o indicador para o meu nariz. Acatando a determinação recebida, parti para executar o meu trabalho. Após breve pesquisa no arquivo e alguns telefonemas, sentei-me à máquina de escrever e iniciei minha matéria. O texto fluía com impressionante rapidez; já terminava a terceira lauda quando Rose, a editora do caderno de cultura, interrompeu-me o raciocínio com uma pergunta inusitada: — Ué, Garcia! Virou bailarino? — Como assim? Não entendi a pergunta – falei, enrugando a testa. — Essa dançarina com saia de safira azul é a logomarca do Blue Ballet – afirmou Rose, cheia de convicção, enquanto apontava na direção do teclado da máquina. Um olhar de soslaio para a minha mão esquerda foi suficiente para estampar em meu já pálido rosto, uma tonalidade cadavérica. Quedei-me diante da mais medonha e inexplicável experiência que jamais poderia imaginar possível; no meu dedo mínimo esquerdo, reconheci o anel de pedra azulada que, em recente pesadelo, recebera por sob uma porta. Ver novamente aquela jóia inverossímil quase me levou a perder os sentidos; não estivesse sentado, com certeza iria ao chão. Tentei, em vão, arrancar do dedo o anel; parecia grudado à pele. — Garcia! Garcia! O que você tem? – desesperava-se Rose, percebendo meu esforço inútil e o tom amarelo pintado em minha face. — Não se preocupe! É só uma indisposição. – disfarcei, num esforço para recompor-me. Um círculo de colegas logo se formou a minha volta. Senti-me sufocar sob o peso daquelas dezenas de olhos curiosos. — Deixem-me em paz! Eu estou bem! Estou bem! – berrei irritado, destratando velhos companheiros que, naquele momento, só estavam sendo solidários a minha evidente angústia. O círculo se desfez, mas os olhares continuaram como grades a me cercar por todos os lados. Alguém trouxe um copo com água e sugeriu que eu tomasse um gole. Chamem uma ambulância! – falou outro alguém, em meio àquela confusão de vozes e rostos. Já nem os distinguia; minha cabeça só tinha espaço para as imagens dos meus pesadelos. Numa espécie de flashback revivi as minhas noites de martírio: o som metálico da caixinha de música, o sobrado do velho Bertoldo, a doce bailarina esmagada sob o punho bestial, a dança interrompida; tudo retornava, como num filme. Certa, porém, era a presença daquele anel em meu dedo; uma espécie de elo entre sonho e realidade que desafiava todo e qualquer tipo de lógica. Devo estar louco – concluí. E foi assim, com um ar alucinado, que saltei da cadeira e saí apressado para a rua. Fuzilado pelos olhares perplexos dos colegas de redação, caminhei decidido em direção ao centro da cidade, embora não soubesse exatamente aonde ir. Já exausto de tanto andar, sentei-me num banco de praça ao lado da catedral. Apesar de católico de batismo, nunca fui um homem religioso; as poucas missas que assisti foram na infância, conduzido pelas mãos enérgicas da minha querida mãe. Naquele momento, porém, com o espírito fragilizado, lancei meus olhos para o alto. Na torre da igreja, uma pomba branca acabara de pousar sobre uma imensa cruz. Senhor! Senhor! – apenas repeti, sem me achar digno de fazer qualquer pedido. No mesmo instante, a pomba lançou asas no ar, indo pousar em um antigo prédio, no lado oposto da praça. Sentindo-me repentinamente revigorado, levantei-me do banco e segui a trilha do belo ser alado. “Ué, Garcia! Virou bailarino?” – rememorei de pronto a pergunta que deixei sem resposta, ao notar o local exato onde a ave acabara de aterrissar. A pomba descansava docemente na mão direita de uma imensa bailarina em bronze, fixada na fachada frontal do edifício. Abaixo dela, em letras estilizadas, li boquiaberto: Blue Ballet; a logomarca era idêntica à impressa no misterioso anel. Passo aqui praticamente todos os dias e nunca me dei conta desse prédio, dessa bailarina – raciocinei atônito. Diante da imensa porta de vidro azul sentia-me compelido a entrar. Após alguns segundos de reticência, ultrapassei a entrada e deparei com uma larga escada de madeira. Vencida a escada, após porta mais estreita, bifurcava-se um longo corredor. Olhei em torno e não vi vivalma. Não fosse o assoalho em tacos, caprichosamente polidos, juraria que aquele lugar estava abandonado. Olá! Tem alguém aí? – interroguei ao corredor vazio, recebendo o silêncio como resposta. Fui tomado de surpresa quando, à minha esquerda, ouvi um triste ranger de porta. Senti meu coração dançar no peito ao ver surgir no corredor uma figura incomum: uma senhora alta, de corpo esguio, caminhava em minha direção. — Bom dia! – cumprimentou-me com voz altiva. — O que o senhor deseja? – completou, arregalando os olhos. — Eu... Eu... – balbuciei, sem saber o que dizer. — Se estiver à procura de alguém, todos saíram para o almoço. Volte às 14h – disse-me a mulher macérrima que, menosprezando a minha indecisão, já dava as costas. — Espere, por favor! – fiz minha súplica ecoar no estreito corredor. — A senhora reconhece isto? – indaguei sem rodeios, mostrando o anel em meu dedo. — Claro que reconheço. Este é um dos nossos anéis de formatura; o símbolo desta companhia que eu mesma fundei, há cinqüenta anos. Igualzinho ao meu, veja! – explicou, estendendo-me a mão. — A senhora não vai me perguntar como o consegui? – indaguei, sem nem mesmo saber o porquê. A mulher aproximou-se ainda mais e, segurando-me sem cerimônia pelo braço, tentou rodopiar o meu corpo sobre o próprio eixo. Eu me mantive fixo como uma rocha. Ela olhou-me, então, de cima a baixo como se procurasse algo. — Você não é um dos meus alunos; definitivamente, não tem a postura de um bailarino - afirmou taxativa. — Esse anel não é seu – concluiu para, logo em seguida, pegar-me energicamente pela mão e tirar, com espantosa facilidade, a jóia do meu dedo. Eu assistia passivamente aos ágeis movimentos da velha professora de balé. Fazendo girar o anel entre os dedos, ela passou a observá-lo minuciosamente. Do bolso do costume, tirou um óculos e parou por alguns segundos, verificando a parte interna do circulo metálico. — Oh, meu Deus! – gritou repentinamente, deixando cair das mãos o anel. — A senhora está bem? – perguntei sem receber resposta. Olhando as veias que quase saltavam do pescoço esquelético da velha dançarina, temi que ela viesse a ter um ataque cardíaco ou coisa parecida. Apanhei o anel e notei que, em sua face interna, um nome se destacava gravado no metal. Apesar das pequeninas letras pude ler: Emily Müller – 1985. — A senhora sabe quem é Emily Müller? – voltei a argüir sob os olhos desconfiados da mulher que, naquele momento, tremulava o esguio esqueleto. Diante de tanta comoção, tive certeza de que a professora de dança conhecia a dona daquele anel, mas teimava em permanecer muda. Resolvi, então, que o melhor a fazer era me retirar daquele local. Deixei, no entanto, meu cartão; pensava na possibilidade de a mulher mudar de idéia e resolver conversar comigo. Tinha em mente porém, o plano de voltar a procurá-la, caso ela não o fizesse. Afinal, precisava montar as peças do meu massacrante quebra-cabeça, mas aquele não era, com certeza, o momento mais apropriado. Coloquei o anel no dedo e parti em direção à rua. Na saída do prédio, foi inevitável não voltar os olhos na direção da gigantesca bailarina na fachada. A pomba branca continuava lá, como se aguardasse minha saída. Bastou fitá-la de frente e ela lançou seu vôo de retorno à torre da igreja. De imediato, a morbidez apossou-se do meu corpo. Imitando minha amiga alada, peguei um táxi e voltei voando para casa. Emily Müller! – uma voz sussurrava aos meus ouvidos enquanto o carro corria. Eu já não conseguia raciocinar logicamente. Na minha cabeça só uma coisa era certa: precisava recuperar minhas energias. Quem sabe não consigo, mesmo interrompida por pesadelos, outra noite completa de sono – desejei. Exatamente às 17h, depois de demorado banho, cedi completamente ao cansaço; enfiado num cômico pijama de bolinhas apaguei sobre a cama. Após poucos minutos de sono, excepcionalmente sem os incômodos pesadelos, tive o repouso bruscamente interrompido pelo alarde intermitente da campainha. Puta que os pariu!!! – urrei indignado, contra as paredes do quarto. Levantei-me cambaleante e fui atender a porta. Deparei com uma estranha dupla de homens: um gordo, de baixa estatura; outro extremamente magro e alto, com cara de poucos amigos. Se esse nanico estivesse sozinho... - pensei, escondendo nas costas o punho fechado. — Antônio Carlos Garcia, é o senhor? – perguntou o baixinho, com um ar desconfiado, enquanto o outro, sobre os meus ombros, enfiava os olhos para dentro da casa. — Sim! Sim! Eu mesmo! – respondi, tentando apagar a fúria dos olhos. E os senhores, quem são? — Eu sou o detetive Góis e este é o detetive Antunes – retornou o menor já com um distintivo à mostra. — Podemos entrar para uma conversa? – perguntou, apontando alternadamente para si e para o outro, que permanecia mudo e circunspecto. Conhecer a identidade daqueles dois foi como aplicar uma injeção de água gelada na veia. O sangue, que até então fervia, quase parou de circular. O que a polícia quer comigo? – embaralhava meus pensamentos. — Podemos entrar para uma conversa? – voltei a ouvir a indagação, desta vez, da boca do homem magro que, abandonando os olhares em volta, estacionava em mim a visão. Com aqueles olhos esbugalhados pesando sobre mim, convidei-os a entrar. O baixinho, sem cerimônia, foi logo se acomodando numa poltrona da sala. O outro, contrariamente, permaneceu de pé; andando em círculos, observava tudo com seus olhos saltados. Vi meu desconforto com aquela situação multiplicar-se quando me dei conta de como estava vestido; aquele pijama era realmente ridículo. — Desculpe o mau jeito... ...eu, eu estava dormindo... ...tenho trocado as noites... — Tudo bem, amigo! O senhor está em casa! – tentou tranqüilizar-me o baixinho, interrompendo minha metralhadora de explicações. — Sente-se ali – sugeriu, apontando para a poltrona a sua frente. Aceitando prontamente a sugestão, acomodei-me desconfortavelmente na poltrona indicada. Ao meu lado, como um poste, o magricela estacionou seu esqueleto curvo. — Em que posso ajudá-los? – perguntei finalmente. — Vou deixá-lo, agora mesmo, a par do motivo pelo qual estamos aqui – falou formalmente. — Peço que o senhor não me interrompa; apenas escute o que tenho a dizer. Ouvindo estas palavras, enfiei os cotovelos no descanso da poltrona e coloquei-me passivamente na condição de espectador. Sem rodeios e com certa dose de prepotência o homem iniciou uma explanação teatral, como se cada uma das suas palavras fossem exaustivamente ensaiadas. Olhando diretamente nos meus olhos, disse-me: caríssimo Antônio Carlos, há uns quinze anos investigamos, sem sucesso, um duplo desaparecimento. Sei exatamente quem o senhor é, onde trabalha, o que faz da vida. Nos meus vinte e cinco anos de experiência como policial, tive oportunidade de me deparar com todo tipo de criminoso; absolutamente o senhor não é um deles. Portanto, não há o que temer. Sabemos, todavia, que o senhor possui uma pista que muito nos interessa. Recebemos há pouco um telefonema de um alguém que jura que viu, em suas mãos, um objeto que pertencera a um dos nossos desapare... — Emily Müller – falei subitamente, cortando as palavras do detetive. — Sim, a bailarina Emily Müller – confirmou o homem, enquanto lançava para o outro, um olhar acompanhado de leve embalar de cabeça. — É isto que os senhores procuram – afirmei convicto, estendendo a mão. — Isso mesmo, o anel da senhora Muller; finalmente, temos uma pista – suspirou o homem, como se tirasse das costas um pesado fardo. Por alguns segundos, vi os homens se entreolharem com as faces iluminadas. Podia jurar que, apesar de discretos, seus lábios ensaiavam sorrisos. A já demasiadamente mansa voz do detetive Góis converteu-se em fina seda. Dirigindo-se a mim, como se fossemos velhos camaradas, continuou: amigo Garcia, você não sabe o quanto procuramos uma pista; a menor que fosse. Desde o dia que o tenente Ricardo Müller e sua esposa bailarina sumiram, encontrá-los é nossa obsessão. Quando descobrimos que todo o dinheiro do casal havia sido sacado um dia antes, ficamos tentados a acreditar em simples fuga. Mas não fazia sentido; a jovem senhora Müller jamais abandonaria o balé, sua grande paixão, e muito menos a pequena filha Natalie que, na época, tinha apenas três anos de idade. Outro fato marcante que nos fez descartar a fuga foi o momento conturbado por que passava o casal; a relação entre os dois andava abalada. O tenente Ricardo era um poço de ciúmes. Corriam boatos de que a jovem esposa teria um amante; falavam de um colega dançarino que com ela fazia par no Blue Ballet. — Os boatos são demônios alados que conduzem a carruagem da morte – sussurrei, voltando a interromper a fala do detetive Góis. — Acertado pensamento, amigo Garcia – concordou o homem, com olhar distante. Diante da história narrada pelo gordo detetive, vi o meu quebra-cabeça, aos poucos, ganhar forma. Cada palavra dita se encaixava perfeitamente em seu devido lugar, elucidando a maioria das imagens contidas nos meus pesadelos. Estava certo, no entanto, de que muitas coisas ficariam sem explicação; existem coisas que simplesmente não se pode explicar. — Muito bem, meu caro jornalista – disse o detetive, roubando-me as divagações. — Só nos resta fazer uma pergunta – continuou, colocando-me em alerta. — Onde raios o senhor encontrou este anel? – disparou violentamente, rasgando a seda da voz. Ao ouvir a pergunta, senti como se vivesse novo pesadelo; simplesmente não sabia como explicar. Dizer que recebi durante o sono, sei lá de quem, por baixo de uma porta, seria como assinar um atestado de loucura; definitivamente, não podia fazer isso. — Vamos! Responda! – berrou, desta vez, o homem magro que permanecia de pé, curvando a coluna até quase encostar sua testa na minha. Senti-me acuado, encolhido entre os largos braços da poltrona. De súbito, sem pensar nas conseqüências, respondi: — Na casa vizinha. Na casa vizinha. Os homens ouviram a afirmação com semblante carregado de novas interrogações. Adiantando-me a possibilidade de ouvi-las busquei suprir com respostas o quadro de dúvidas que se instalava. Confessei, sem mesmo estar convencido, a invasão furtiva ao sobrado vizinho; tentei justificá-la alegando ter imaginado ouvir gritos de socorro escaparem do primeiro andar. Afirmei não ter encontrado ninguém, mas disse desconfiar de ser o terceiro quarto do andar superior uma espécie de cela. Alguém vive preso lá – afirmei categoricamente. Contei a minha versão improvável com tanta convicção, que eu mesmo cheguei a acreditar no que dizia. Após ouvirem atentamente a cada palavra, os detetives apreenderam de mim o anel e partiram em direção ao citado sobrado. Acompanhei-os até o portão e contemplei os últimos raios de sol no horizonte; era exatamente 18h e o velho Bertoldo, ou melhor, o tenente Ricardo Müller, acabara de tomar seu lugar na varanda. De longe, escondendo-me entre os arbustos do jardim, observei o momento exato em que os policiais fizeram a abordagem. De repente, o inesperado aconteceu: bastou os detetives apresentarem suas credenciais e fortes estampidos vararam o início de noite; o velho os recebeu a balas. Assisti, atônito, o contra-ataque policial. Saltando com agilidade incomum ao corpo acima do peso, o detetive Góis lançou-se ao solo de arma em punho. Em milésimos de segundo, realizou um triplo rolamento e atingiu o velho de cheio, no meio do peito. Meu misterioso vizinho fora alvejado mortalmente, enquanto o astuto detetive Góis sofrera apenas pequenas escoriações. O detetive magricela, o tal Antunes, não teve a mesma sorte; atingido pelo fogo inimigo, acabou não resistindo aos ferimentos. Durante o resto da noite, toda a rua permaneceu desperta. Curiosos, todos acompanharam o intenso movimento de policiais, num entra e sai sem fim do fatídico sobrado. Eu, por minha vez, quedei-me inexplicavelmente alheio a tudo. Não sentia nada além de sono. Era como se acabasse de realizar uma importante missão e nada mais restasse a fazer. Sentindo-me assim, estranhamente leve, voltei para a cama com o meu ridículo pijama de bolinhas; dormi um sono de pedra até o amanhecer. Cheguei à redação muito cedo e recomecei minha matéria sobre crimes passionais. O texto fluía livremente, refletindo o maravilhoso espírito de paz que possuíra meu ser. Pelo interfone, o vigilante solicitou minha presença na portaria. Caminhei calmamente até lá, cantarolando trechos de um novo hit do Jota Quest: “quero um amor maior / amor maior que eu...” Uma jovem, que não quis se identificar, deixou esse embrulho para ser entregue ao senhor – disse-me o vigilante. Agradeci e voltei curioso para a redação, carregando o embrulho quadrado, mais ou menos do tamanho de uma caixa de sapatos. Quem será essa jovem misteriosa que acordou tão cedo? – pensava. Rasguei apressadamente o papel de presente e visualizei o papelão azul de uma caixa. Bastou puxar a tampa, uma conhecida valsa invadiu os meus ouvidos. Tinha nas mãos uma caixinha de música que, não fosse a ausência da pomba branca e o estado inanimado da bailarina, seria exatamente igual a que vislumbrei em minhas noites de tormento. Aquela imagem, no entanto, deixara de ser sinônimo de pesadelo. Inexplicavelmente, eu me divertia ao som da valsa, acompanhando os rodopios da singela dançarina de plástico sobre minha mesa. De pé, no centro da redação ainda vazia, imitava seus movimentos, enquanto segurava a embalagem de papelão. Numa das muitas evoluções, vi escapar da caixa azul em minhas mãos, um pequeno envelope. Apanhei-o e resgatei do seu interior um bilhete que assim dizia: “aceite este singelo presente como agradecimento sincero por ter dado a minha querida mãe o direito a um funeral cristão” – assinado: Natalie Müller. “Quero um amor maior / amor maior que eu...” – continuei a cantarolar instintivamente. Ao meu lado, sobre a mesa, o jornal do dia estampava na primeira página: “militar mata esposa e oculta cadáver durante quinze anos”.
Elenildo Pereira
Enviado por Elenildo Pereira em 17/04/2008
Código do texto: T950008