Asa Negra ou o Intelectual

Asa Negra ou o Intelectual

Asa negra levantou os pés e esticou sobre a mesinha, suspirando descansado enquanto a música fluía embalando , e o uísque recém bebericado lhe queimava o estômago e subia ao cérebro . Entontecido, e com meio sorriso nos lábios pensava em uma maneira de viver a vida sempre assim, sem compromissos, sem trabalho, sem estudar, sem responsabilidades e ouvindo música descansado, bebericando um scotch caro, enquanto esperava o tempo passar para encontrar uma das suas programas habituais. Não queria casar, não era um casadoiro, pois o peso das responsabilidades de homem casado não o agradava. Bem fez o pai e o irmão que casaram bem !Ah, mulheres ricas e generosas !Só os deixavam aproveitar, e mesmo que não fosse com elas. Coisa rara!

Asa Negra era assim e tinha conhecimento disto. Sabia que gostava da vida mansa e sem preocupações. Como era pobre pensava em não casar nunca ,e como se considerava um racional ,não corria o risco de paixões. Aproveitar com pouco, bastava.

Levantou do porre de vinho e música na tarde úmida e chuvosa, tomou um banho e pronto para a batalha noturna, rumou para a casa da programa. Saiu de lá aliviado, descarregou as tensões e assim, calmo e sereno podia se dar ao luxo de ir ao clube dançar com as moças da sociedade. Estava tranquilo, nada iria acontecer...

Olhou para o pau e sorriu, pensando consigo que este hoje não ia mais endurecer, o que poupava problemas como ,por exemplo, ter que se controlar para não meter a mão nas moças casadoiras , ricas e de família.

Asa Negra era boa praça, gostava dos amigos ,das amigas, gostava de dançar, brincar, contar vantagem, e mentir para os crédulos .As coisas corriam assim na vida de Asa até o dia em que a conheceu ...Até hoje, os amigos não conseguiram meter na cabeça do Asa que foi ele quem azarou a vida dela. Até hoje, para ele, a responsável é ela, pela simples razão de ser como é, de existir e sobretudo e antes de mais nada o derrotar pondo abaixo o seu "modus vivendi".

E quem é ela? Como é a moça menina que derrotou o Asa? É isto mesmo, uma menina moça como todas as outras.

Cristiane , a caminho da sala de aula, pensava em seus poemas e sem saber rebolava, a sorrir sozinha. Era, pela época um misto de magia, sedução, encanto e mistério. O que mais encantava porém, era o desconhecimento total de sua feminilidade , de sua beleza e da atração que espalhava por onde passava. E foi isto que chamou a atenção do Asa, pois enquanto as outras faziam tudo que podiam e sabiam para atrair a atenção, nela era involuntário, natural. E mais, Cristiane não tomou conhecimento do Asa que vivia passando perto, mais curioso que interessado. Foi aí que ele se queimou.

- Estou com asa queimada , Host,- diz Asa, encarando o amigo sério, cara de alemão- Estou liquidado mesmo! Gostei, me apaixonei... é uma carinha aí... Aconteceu, sem que eu quisesse. Que carinha! E agora ?Fico vidrado! É que nem mel e eu sou Urso! Estou desesperado!

È , o Asa ficou desasado...Chegou a odiar a Cristiane, acabou rindo, mudou todos os seus planos, resolveu ser moço casadoiro e representou tão bem o papel que ele mesmo acreditou em sua transformação.

O artista viveu assim o tempo necessário para casar e aproveitar bem a mulher, até o dia em que passou a "vidração" do Asa. Foi um simples dia, cotidiano, um Domingo em que a Cristiane, de rolos, creme no rosto e deformada ainda pelo recente nascimento do filho, tomava um suco e descansava. Súbito ,Asa olhou , achou a mulher horrorosa e pensou:

_ "Que bofe com quem me casei! Será que andei cego, sem puder ver todos estes anos?"

- Te arruma, Cris, vamos sair ,- disse, a pensar que assim, arrumada, vibrante na noite, voltaria a loucura antiga pela mulher.

- Estou cansada, bem...amanhã ,hoje só vou dormir ...

Que enjôo! -pensou Asa, não suporto mais este benzinho. Vontade de vomitar todos estes anos em que a suportei e mais, suportei a minha própria paixão . Como mudei! Estou gordo, flácido, burguesão. Acho que peguei até jeito de burro. Cafajeste sempre fui, mas burro! Eu era o intelectual da turma!

E alguma coisa dentro dele começou a se levantar .Dizem que primeiro levantou uma asa, depois a outra, e que saiu correndo do casulo familiar. Em pouco tempo voltou a ser quem era. O velho asa, gaúcho de guerra, voltou à zona. Foi uma alegria! Cabeças já embranquecidas dos velhos companheiros comemoravam no bar do Ratão abandonado por ele há tantos anos.

Asa rompeu todas as relações com o falso passado de marido e pai de família como costumava dizer. Retornou à farra, aos programas e para a vida fácil, sem compromissos. Não tinha culpas e declarava que a Cristiane havia azarado a sua vida. Ficou tomado de paixão na época e fez o que podia para a conquistar isto é, casou. Chegou "até" a ser feliz casado , virou artista, pai de família, tinha até pique-nique nos programas. Do casamento e da paixão pela mulher guardou uma lição: "nunca mais acreditar no Asa quando vidrado por mulher, antes usar estes grilhões para não ceder à tentação e não as deixar "azarar" a minha vida".

No Ratão tem um poema dedicado para Cristiane que o garçon costuma indicar aos fregueses para que leiam, dizendo pertencer a grande intelectual, freqüentador do local, que sofreu uma grande desilusão na vida.

A solidariedade entre os homens é notável e precisavam recuperar o prestígio do velho gaúcho de guerra:

PERDA

Quando se perde um amor...

Ah , quando se perde um amor!

O mundo se apequena

A visão é cegueira

E o céu

O céu é estrada de asfalto.

Tudo se afunila

E fica tão solitário

Tão quieto

Tão morto e despovoado

Escuro, obscuro

Absurdo mesmo

E a dor maior é o desamor profundo da vida

Doída

Vivendo sofrida neste mundo descolorido...

Foi desta maneira que Asa ganhou fama de intelectual , vítima da desilusão com uma mulher, e começou a ser compreendido após angariar com sua conduta de desempregado, piadista, sofredor e poeta, as simpatias do pessoal do bar e da zona. Afinal, ele sofreu grande desilusão! E todos ajudaram. Asa refez sua vida, assumiu a personalidade de intelectual , passou a ser autêntico e saiu por aí, azarando a vida de outras.

Dizem que já somam centenas de mulheres azaradas e que gostam, pois Asa ,finalmente entendido, "azara" com alegria, com felicidade ,sem culpas e, sobretudo, sem se engatar. Cobrar? Nem pensar, pois que é intelectual de, pelo menos, um poema.

Enquanto que a grande verdade é que Asa dava o Golpe do baú!

(Nota) o Ratão é um barzinho escondido em Copacabana, quase uma garagem, todo forrado de madeira, com poemas presos em grampos e que só aceita velhos conhecidos ...

Suzana da Cunha Heemann
Enviado por Suzana da Cunha Heemann em 23/04/2008
Reeditado em 16/05/2011
Código do texto: T958780
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