Seiva e sangue


— Viva a vida! Viva a vida!

Por mais que estivesse distraído ou apressado para chegar ao trabalho, não conseguia vedar os ouvidos àquele brado que me guiava os olhos na direção de João do Grito. Todas as manhãs, ao passar pela praça da matriz, era impossível não fitar a angustiante imagem daquele homem. Sua enorme barba e o aspecto imundo de suas roupas denunciavam o abandono em que vivia e causavam asco aos que por ali transitavam. Dia após dia, lá estava ele, embaixo do grande tamarindeiro. Nutria pelo gigantesco vegetal muito carinho e era dele uma espécie de guardião, não deixando que ninguém se aproximasse. Abraçava-se demoradamente ao seu tronco e, como se retribuísse aos carinhos, a árvore, numa flagrante cumplicidade, deixava cair folhas e frutos no chão da praça; era a principal fonte de alimento daquele infeliz. João do Grito devorava as folhas e os frutos, de sabor ácido, como se fossem a maior das maravilhas culinárias. Deixava que um sorriso de satisfação tomasse conta do seu rosto para, logo em seguida, fazer ecoar seu berro.

Aquele "viva a vida!", que lhe rendera o apelido, soava irônico aos ouvidos de quem mirava aquela criatura em farrapos. Qual o seu verdadeiro nome? Nunca soube. O pouco que conheci de sua história pregressa, ouvi numa conversa na banca de jornal. Relatava que aquele homem fora um respeitado engenheiro agrônomo, professor universitário que, num momento trágico de sua vida, perdera esposa e filhos num acidente aéreo. Depois do triste episódio, nunca mais foi o mesmo. Deixou de interagir com as pessoas, seu vocabulário reduziu-se à frase que feria os ouvidos dos que passavam pela praça da matriz. Passou a viver só e miseravelmente. O tamarindeiro parecia emprestar-lhe a única raiz que ainda o ligava ao mundo. Porém, a vida de João do Grito parecia mesmo predestinada ao infortúnio. Visando a construção de uma quadra de esportes, a prefeitura resolveu derrubar algumas árvores da praça e, entre elas, constava o grande tamarindeiro. 

Foi uma tarde de horror aquela em que ocorreu o corte. Não me sai da cabeça o estado de desespero que tomou conta de João do Grito. Transtornado, agarrou-se ao tronco da árvore, na tentativa de impedir a morte do seu amigo vegetal. Tornou-se violento, passando a agredir os funcionários da prefeitura. Numa última tentativa, subiu até o galho mais alto, de onde parecia disposto a não sair. Chamaram o Corpo de Bombeiros. Foi preciso muito trabalho e a força de quatro homens para colhê-lo do alto da copa, urrando alucinadamente. Aplicaram-lhe um sedativo e o colocaram numa camisa de força, conduzindo-o, em seguida, para o manicômio da cidade. O fato mais estranho desse ocorrido ainda estaria por acontecer. Livres do inconveniente João do Grito, os homens da prefeitura começaram o massacre ao tamarindeiro. Todos os que estavam na praça presenciaram, perplexos, o chão ser inundado por um vermelho intenso. A cada golpe de machado, fortes esguichos encarnavam o solo e o fardamento dos trabalhadores, dando-lhes o aspecto de açougueiros que acabaram de abater um animal de grande porte. No dia seguinte, uma notícia intrigante no jornal deixaria a todos boquiabertos. Um certo paciente, conhecido como João do Grito, havia desaparecido inexplicavelmente do hospício. Os médicos afirmaram ter colocado o insano numa cela individual, devidamente vestido numa camisa de força. A princípio, seus urros eram ouvidos por todo o manicômio. Em seguida, um longo período de silêncio transcorreu. Preocupados, os enfermeiros foram até a cela, de onde afirmavam ser impossível alguém fugir. Ficaram impressionados ao abrir a porta e não encontrar João do Grito. Na cela, muitas folhas verdes pelo chão e uma camisa de força encharcada de seiva.

Elenildo Pereira
Enviado por Elenildo Pereira em 29/04/2008
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