Os Intelectuais que se Danem!

Os Intelectuais que se Danem!

Lea deu sorte na vida e disso estava ciente. Possui uma filosofia própria e chã que utiliza com sucesso familiar e social. Quando moça foi escolhida e durante anos não entendeu porque, pelo rapaz mais cobiçado e rico da cidade. Considerava- se e era “apagada” na época em meio das outras moças. A surpresa foi total , não somente para Léa porque diversas pessoas não compreenderam as razões do Pedro ,mas ela usou a sua filosofia de vida e explicou o fato tanto pelos cabelos bonitos, como por ser uma moça direita ,ligada às prendas domésticas e , sobretudo , conhecedora de todos os molhos , temperos ou segredos culinários. Inclui no enxoval um arsenal de ervas e chás calmantes, adoçantes contra o mau olhado , estimulantes do humor, etc

Chega o dia em que passa acreditar firmemente que deve às receitas culinárias a sobrevivência do casamento. Olha em volta e percebe os casais que se separam . São mulheres com curso superior, sós ou abandonadas ,e ela costuma dizer:-“ As intelectuais se danam pois se ralam na vida!” E ri ,talvez, sem sequer saber o que diz .

Conserva a mesma aparência que tinha quando Pedro se encantou nela :

-Afinal estas "modernidades" todas nunca adiantaram para as outras.

O marido gostou dela assim e ela vai se preservar , estável , mesmo estilo sempre, mesmo sorriso ,iguais as roupas, puxando para o severo e discreto ,variações somente nas comidas. Neste tranco leva o casamento e tem três lindos filhos: dois meninos e uma menina.

Leonardo , Mateus e Débora crescem sob os olhos da mãe cuidadosa . Léa cuida dos filhos como dos alimentos ,com todo o respeito e amor .

Cedo eles encaixam no estilo de vida do casal e se regalam com os quitutes nas horas das refeições .Bem servidos ficam gratos e em plenitude gástrica, não medem palavras para elogiar as virtudes da mãe especialmente em frente do pai . Espertos, os garotos logo, inconscientemente , percebem a discrepância do casal e o assombro das mulheres que assediam o pai. Junto com os três filhos , mimada e paparicada , o poder de Léa sobre o marido cresce. Acaba uma fortaleza indestrutível e se existem outras interessadas ,sequer perdem tempo em olhar para o Pedro .Sabem que é um dos produtos ,uma espécie de condimento indispensável ,daqueles que Léa tem sempre a mão. Passam a achar graça , a sorrir, dar de ombros e partir derrotadas.

Os anos passam ao redor da cozinha . Os meninos crescem, estudam, progridem e vão para a Universidade .São inteligentes o suficiente para se graduarem. O que mais chama a atenção dos professores na época, são suas maneiras pacatas e acomodadas.

Os pedidos de receitas culinárias para Léa redobram ,pois que ao observarem o sucesso dos garotos, as amigas impressionadas, resolvem fazer igual.

“- Sem efeito, diz a quituteira ,tudo depende de uma educação continuada. A Débora por exemplo , se acalma com canja . As cólicas menstruais passam quando toma uma sopa com uns temperos verdes jogados em cima .Um dia não estava e o Pedro foi ao restaurante , pagou um dinheirão pela sopa e a menina sofreu ainda mais. Tem que ser eu a fazer e com meus temperos, meus segredos , minhas ervas e meu carinho .Mateus quando foi ter a primeira experiência sentiu medo . Eu, ao invés de o levar a um psicólogo , fiz uns bolinhos de amendoim fritos e o deixei em frente ao motel.Tudo correu as mil maravilhas .”

Dizem que Mateus só vai na base do bolinho de amendoim. A única concessão da família foi permitir que a mulher dele aprenda com Léa .Existem potes destes bolinhos ,inclusive no banheiro da residência do casal.

Um professor injustiçou o Leonardo na Faculdade e se curou com um pudim de queijo, misturado com folhas de laranjeira, cuidadosamente colocadas. Acalmou se para sempre. Baba quando vê o aluno. Acabou o indicando para o melhor estágio que a Universidade oferece .

A quituteira comprovou então ,que para os professores e intelectuais as receitas também funcionam :- “Pois curam!” Ninguém comenta que o pobre diabo ganha miseravelmente e sustenta uma família numerosa. O salário do intelectual só paga o arroz e feijão :"- Mas, os intelectuais que se danem!"

Um dia Pedro chega estressado da empresa onde o ritmo de trabalho é intenso :

- Léa , tirei uns dias, quero dormir ,fazer uma dieta a base de frutas como o médico me recomendou ,para melhorar desta ansiedade ,deste estresse.

- Esquece ,querido , que já te resolvo este problema no almoço já e já- e apesar dos protestos do marido , Lea se encaminha para a cozinha , completando - o mal destes doutores é que comem mal. Faz uma moqueca para o marido . Combina com um mousse de cartilagem de peixe(dizem que é bom para os nervos), e rebate com quindins recheados de doce de ameixas(ameixas são digestivas). Foi toma lá e dá cá . Pedro dormiu dois dias com a farta refeição .Léa usou suas pinças especiais para retirar a cartilagem da cauda dos peixes. Tem vários instrumentos cirúrgicos na cozinha , onde realiza verdadeiras vivicecções nas aves , carnes e peixes.

Satisfeita porque venceu o doutor( “è intelectual “) do marido , prepara e deixa prontos os pratos para toda a semana. Pensa raivosa, no risco que correu:

"- Perder por frutas ,ora bolas!". Enterrou o Dr. Mário na cozinha , junto com os restos supimpas do mousse.

Pedro recebe a visita de uma colega , formada em Letras com livros publicados. Mulher jovem e bonita ,representa tudo aquilo que Léa detesta : a intelectual , com idéias liberais e, pior , tem uma empregada para a família . Eis que, em meio à conversa , Luiza deixa escapar que está muito desiludida porque o marido a abandonou. Trocou . Léa abre as orelhas , mal disfarçando o riso , o gosto, e comenta:

- O que esperavas? Nunca foste para a cozinha! A atual não deve saber nem o nome de um escritor mas ,certamente, sabe as melhores receitas. Vou te trazer um pedaço de torta de manga e um chá para te sentires melhor desta dor de cotovelo.

Na cozinha cochicha com a copeira :

- Mais uma intelectual que se rala! E logo esta que é apontada como modelo. Até o Pedro a admira. Que adiantou? Todos os livros publicados e não deve saber fazer uma torta destas que aqui sai no tapa.

Quando chega a noite o casal assiste um vídeo comendo pipocas regadas a molho de chocolate . Luiza , a intelectual que se ralou, vomita repugnada, montanhas de torta de manga e mais todas as idéias e teorias que escutou.

Débora casa com um advogado , um rapaz que pode ser um profissional brilhante mas que , tendo perdido os pais na infância precoce , se integra totalmente à nova família e portanto aos hábitos e comilanças. Provavelmente tantos quitutes o deixam embotado, pois começa a obter somente resultados medíocres no trabalho.

Bem ensinada e aconselhada pela mãe , Débora não esquece a sabedoria das palavras quando casou:

- Cozinha e faz ginástica minha filha! Deixa que as intelectuais pensem... Aprende comigo todas as receitas, e usa com o teu marido tal e qual tua mãe faz.

Age da mesma forma com as futuras noras. Instrui as nos pratos a preparar para os filhos quando estão nervosos, irritados, estressados ou interessados em outras mulheres:

"- Para tudo há uma receita"- repete.

A família cresce . Os netos aparecem, mas os hábitos permanecem. Sucedem se as reuniões e regabofes todos os sábados e domingos. Novas receitas descobertas, enriquecem os serões familiares. Os anos passam e, até então, todos os problemas e conflitos são resolvidos entre um prato e outro.

Cresce a fama de Léa como cozinheira e chegam a dizer que Pedro é um sujeito de sorte. Há gente que deixa de pensar, escrever ou ler e marcha para a cozinha. Mães impedem as filhas de fazer um curso superior. Muitas moças tomam o exemplo de Débora e fazem ginástica incansavelmente, para poder comer como e com o marido, sem engordar. O curso de decoração de pratos que mãe , filha e noras oferecem é disputado. A família tem sucesso até um certo dia. Um certo dia em que Roberto , o marido de Débora acorda enjoado e entediado e mais tédio sente quando a mulher ,sabedora do que se passa , corre para a cozinha. Roberto não come naquele dia e no outro não vem para almoçar .Ao invés disto ,faz um lanche rápido, come qualquer coisa num boteco que a mulher ,se sabe , cai em prantos ou tem um ataque histérico. Estranha como o bolo de aspecto feio , meio seboso, lhe parece tão delicioso. Repete o prato e desconfia, porque seu estado de ânimo melhora. Sente profundo, o alivio. Uma cortina que havia entre Roberto e o mundo se abre. Começa a acalmar Léa com desculpas e passa a lanchar fora ,e a se esquivar dos almoços e jantares dos fins de semana. As melhoras não se fazem esperar .Volta a ler, escrever, e se relacionar com os colegas . Progride com rapidez no trabalho .Torna se enfim , o advogado brilhante que sempre ameaçou.

Desquita se . Larga a mulher porque não pode mais a enxergar . Chega perto de desenvolver uma anorexia nervosa principalmente quando tem de encarar a sogra. Arruma outra logo, para desgosto de Lea que já tem uma receita nova para esta situação. A outra é uma colega passada em anos. Uma mulher muito inteligente que o compreende Os dois comem em qualquer lugar, conversam, pensam , lêem e escrevem juntos. Terminam mudando de cidade para não ver mais a Débora , filhos ou parentes. Precisam fazer isto para sobreviver já que Roberto perde a fome ,e fica dois dias seguidos em abstinência quando os vê. Dizem que passa os dias com sanduíches simples e frutas. Tem horror a pratos decorados e ficou com fobia a super mercados .

Débora não tem a mesma sorte .Desiludiu se com o final abrupto do casamento pois nunca entendeu as razões. Passa a criar os filhos , larga a ginástica, e se derrete em banhas .Vai parar num SPA depois de uma briga com Léa que tem um chá especial para desgostos. Pela primeira vez a filha única a contraria no que diz respeito a alimentação contra depressões.

-“Houvesse escutado a mãe não tinha perdido um dinheirão em clínicas . Dito e feito!” Sai ,e engorda tudo novamente. Acaba com o apelido de sanfona. Débora só se conforma quando conhece um dono de mercearia que tem, como especialidade toucinhos , para prazer da mãe . Cria porcos e gosta de “cheinhas”. Débora , gordíssima , se conserva assim para o novo e enorme marido que não lhe fica atrás em peso . Muitas pessoas desconfiam que os dois nada façam além de comer, pois os babados de gordura em tudo dificultam .

Anos após morrem de infiltração gordurosa cardíaca e deixam dois gordões como herança e recordação para a cidade e a mercearia.

As duas noras ( para furor de Léa ) ,enchem dos maridos e do controle da sogra. Ato contínuo ,deixam os dois com as cabeças bem ornamentadas , largam a escravidão da cozinha e vão fazer curso Superior . Léa não deixa os filhos lhes dar mesada:

-"Elas vão ser intelectuais , mas de barriga vazia!"

Letícia foi para Educação Física e Cecília para Nutrição se especializar em dietéticos. Abrem , tempos depois , uma academia com restaurante especializado em dietas e têm enorme sucesso:

"- Ah, e aqueles rapagões bonitões da academia!"

Uma casa com um modelo que se alimenta bem e pouco, e a outra com um escritor diabético controlado que não come doce. Os novos casais felizes desfilam pela cidade, enfrente da sogra em constante estado de fúria .

Os dois rapazes desmoralizados e desiludidos, pelo rumo que toma a vida das antigas companheiras ,acabam ressentidos com a mãe e a responsabilizando pelo fracasso . Brigas iniciam e se intensificam na vida da família .Finalmente, temerosos que o mesmo suceda com seus filhos, resolvem emigrar para outro país. Embarcam cobertos de vergonha e banhas,quase não caminham na época e “rolam”, como duas bolas , para dentro do avião.

Roberto, já passado em anos, contempla as mãos gorduchas dos netos acenando pelas janelinhas . Chega em casa se sentindo devorado por ódio. A depressão se instala e o entristece cada vez mais .Dia a dia perde a fome ,não come, fica minguado.

Para espanto dos vizinhos ,aquele que vive com a melhor cozinheira da cidade , se transforma em um homem seco, mais parece um subnutrido ou doente em fase final .Alimenta se com papas ou mingaus , que ele mesmo prepara. Não permite mais que a mulher cozinhe , e morre de tuberculose .

Léa se encontra só. Nesta época circula uma estranha superstição entre a roda de conhecidos: as comidas de Léa contêm mal olhado e dão azar. .Ninguém aparece em seus jantares após a morte do marido e o abandono dos filhos.

Léa jamais desconfiou ,nem mesmo duvidou de sua culinária. Tem fé ,reage , cozinha ,cria novas receitas e se aperfeiçoa mais Quando uma certa tristeza penetra em sua carapaça, imediatamente se cura com um quitute. Decide não se quebrar com sua arte.

Uma grande recessão econômica se instala no país. Sobrevivem os comerciantes, donos de pequenas lanchonetes , e Léa no trailer que comprou, vendendo lingüiça com farinha pelas ruas.

Sorridente atrás da janela , frita as lingüiças de porco, ouve os comentários sobre a crise e os problemas que contam todos os profissionais liberais . Sussurra , vitoriosa e entredentes:

" - Os intelectuais se ralaram"! Enfia um pedaço de lingüiça bem molhado de farinha na boca de uma poeta que faz mendicância (vende os livros de poemas, tenta sobreviver) e, vencedora, dorme o sono dos inocentes. Sonha com o sucesso que vai ser o lançamento do livro de receitas culinárias, quando então, e através , e pela barriga, vai ser chamada de intelectual.

Suzana da Cunha Heemann
Enviado por Suzana da Cunha Heemann em 30/04/2008
Reeditado em 30/01/2011
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