A face do morto

Perdera, naquela tarde do dia 13 de fevereiro de 1897, a oportunidade de fechar um grande negócio, tudo por culpa da honestidade de seu sócio Justino Sávio. Como pôde recusar a oferta do prefeito? É mesmo um idiota. Remoía angustiado, tomado de ambição, o boticário Afanásio. Não era a primeira vez que deixava de ganhar vultosa quantia em dinheiro por culpa de Justino e sua mania de decência. Jamais tocarei em um centavo sequer de dinheiro ilícito, principalmente dinheiro público, dizia Justino; quero andar limpo e de cabeça erguida. Ao ouvir as palavras do sócio, Afanásio torcia o bico e arrependia-se profundamente de um dia ter feito sociedade com homem tão correto. Ninguém consegue progresso nos negócios com tanta honestidade, pensava aborrecido. Que mal faria passar algumas notas frias, ganhar um bom dinheiro fácil? Montado em seu cavalo, a caminho de casa, Afanásio maquinava: preciso tomar uma atitude contra Justino. O que eu poderia fazer? Ele é sócio majoritário, dono de sessenta por cento da botica, e a ele cabe as decisões. A não ser que... De súbito, uma idéia macabra veio à mente de Afanásio: vou mandar aquele idiota para o inferno. Sendo meu sócio um homem sem família, eu seria o único dono da botica, caso alguma coisa lhe acontecesse. 

O trote do cavalo embaralhava os planos funestos na cabeça de Afanásio. Era a primeira noite de lua cheia daquele mês de fevereiro, a neblina tomava conta da estrada estreita, ladeada de grandes arvoredos. Mesmo sendo noite da grande lua, a visão era mínima, porém, não impediu que Afanásio percebesse a aproximação de uma grande carruagem. A suas costas, ouvia um tropel de cavalos que, pelos seus cálculos, tratava-se de duas dúzias de patas. Olhou sobre os ombros, aguçando a vista, na tentativa de enxergar a diligência. Achou estranho, pois, apesar do nevoeiro, o normal seria que avistasse, pelo menos, o brilho da lua nos olhos dos cavalos. Ele nada via; só ouvia o galope a se aproximar. O som aumentava juntamente com a expectativa de Afanásio; pensava curioso: o que faz uma carruagem desse porte por estas bandas? Para sua decepção e espanto, notou que aquele barulho ensurdecedor passava ali, a alguns metros do seu nariz, e nada era captado pela sua visão. Foi tomado de grande susto quando um grito invadiu seus ouvidos; uma voz medonha indagava em tom firme: 

— Quem merece? Quem merece?

Afanásio convenceu-se de ser o cocheiro quem lançara a indagação; pensava intrigado: quem merece o quê? Após alguns minutos, não mais ouvia o tropel; aquela misteriosa carruagem perdera-se na curva escura da estrada à sua frente. Apesar de assustado, Afanásio preferiu não tentar entender a estranha experiência por que acabara de passar. Os pensamentos contra seu sócio Justino teimavam em ocupar sua mente, não dando espaço para nada mais. Ao chegar em casa, enquanto ainda subia as escadas, veio-lhe à luz a idéia de como eliminaria o estorvo do seu caminho. Lembrou-se da gastrite que há anos atormentava Justino, obrigando-lhe a doses diárias de antiácido. Em seu ofício de boticário, não era ele mesmo, Afanásio, quem fabricava aqueles comprimidos? Sim, era o próprio. Bastava modificar aquela fórmula, adicionar alguns ácidos e a gastrite logo se agravaria, levando Justino à morte. O crime perfeito, orgulhava-se.

Na manhã seguinte, Afanásio acordou muito cedo; não via a hora de colocar seu plano em ação. Chegando na Botica, apressou-se em manipular a substância que daria cabo à vida de Justino. Conseguiu seu objetivo, substituindo os comprimidos que ficavam na gaveta do sócio, antes que o mesmo aparecesse, pelos que acabara de produzir. No mesmo horário de todos os dias, viu Justino ingerir aqueles comprimidos. Com um sorriso maquiavélico no rosto, Afanásio pensava: é só uma questão de tempo. Com o passar das horas, os primeiros frutos do plano funesto começaram a aparecer. Um ar desolado se instalou no rosto de Justino, denunciando o mal-estar que sentia. Por volta do meio-dia, já não conseguia se concentrar no trabalho; sentia fortes dores. Afanásio ouvia os reclames do sócio enfermo disfarçando sua satisfação em um ar de amigo preocupado. Disse, com voz melosa: 

— Vá para casa descansar, amigo Justino. Pode deixar que dou conta do trabalho.

Ao ver Justino aceitar a sugestão, por pouco não deixou um sorriso escapar pelos cantos dos lábios. Passou o resto da tarde sentindo-se um rei que acabara de vencer uma batalha, já fazendo planos para o dia em que, finalmente, ganharia a guerra. Em sua segunda noite, a lua cheia já apontava no céu quando Afanásio fechou as portas da botica. Montado em seu cavalo, ganhava a estrada a caminho de casa. O nevoeiro tornara-se mais denso, dificultando ainda mais a visão. De súbito, a lembrança da misteriosa carruagem voltou claramente à cabeça de Afanásio. Nesse mesmo momento, para sua surpresa, pôde ouvir o já conhecido tropel de cavalos que o assustara na noite anterior. Já imaginava que não veria aquele veículo em meio a tanta névoa. Mesmo assim, repetiu o gesto de olhar sobre os ombros. Quase caiu do cavalo ao perceber que, como num passe de mágica, todo o nevoeiro dissipou-se em segundos, revelando uma imagem aterrorizante. Paralisado de pavor, Afanásio viu a grande e escura carruagem surgir na curva da estrada às suas costas. Pôde contar seis imensos cavalos negros, que puxavam o veículo; não via, porém, o brilho da lua nos olhos dos animais. Esperou que chegassem mais perto para poder constatar, perplexo, que estes não tinham olhos; apenas espaços vazios e sangrentos, de onde seus globos oculares pareciam recentemente extraídos. Estático, assistiu àquele carro passar à sua frente. Num esforço, levantou a vista, olhando fixamente para a face do cocheiro que conduzia o veículo infernal. Viu um homem de feição desfigurada e olhos faiscantes que, num grito medonho, jogou-lhe nos ouvidos a intrigante indagação:

— Quem merece? Quem merece?

Mudo, Afanásio pôde notar, através dos vidros, o conteúdo interior daquela carruagem: um modesto caixão de madeira, digno de um defunto sem posses. Quem será que ocupa aquele caixão? Quem merece o quê? Qual o destino dessa carruagem? Inúmeros questionamentos circulavam a cabeça confusa do amedrontado Afanásio. Após alguns minutos de inércia, com o corpo totalmente trêmulo, prosseguiu sua marcha para casa. Subiu as escadas com dificuldades, atirando-se exausto na cama. Toda sua energia havia sido, de certa forma, sugada pela terrível visão que tivera há pouco. Invadindo o quarto por uma fresta da janela, o sol já batia no seu rosto quando Afanásio despertou. A noite havia-se ido sem que ele percebesse. Preciso correr para abrir a botica, pensou. Lembrou-se da visão que tivera, preferindo pensar que se tratava de um pesadelo; não conseguia admitir ser real imagem tão tétrica. 

Levantou-se e, com o corpo ainda exausto, cuidou em arrumar-se e pôs-se a caminho da botica. Sonhava em não encontrar Justino e, como previra, mal levantara as portas quando recebeu, trazido pelas mãos de um menino de recados, um bilhete assinado pelo sócio enfermo. Ao ler aquelas linhas, Afanásio fez estrondear sonora gargalhada contra as paredes do laboratório. Ficou sabendo da piora na saúde de Justino que o impedia de comparecer ao dia de trabalho. Em seu bilhete, o sócio pedia-lhe que fizesse a gentileza de visitá-lo ao meio-dia, levando consigo o medicamento antiácido que se encontrava no escritório. A ansiedade pelo meio-dia tomou conta de Afanásio. Não via a hora de ministrar ao sócio uma grande dose do remédio que, diante do mal que acometia Justino, poder-se-ia considerar um poderoso veneno. Prosseguindo seu plano funesto, exatamente ao meio-dia, Afanásio chegava à casa do doente. Cuidadosamente protegido entre as mãos, conduzia o solicitado frasco de comprimidos. Após três fortes batidas na porta, aguardou por alguns segundos para, logo em seguida, encarar um homem completamente pálido e abatido que, demonstrando grande dificuldade de locomoção, abria vagarosamente a porta. Reconheceu, na face do doente, os traços fisionômicos do sócio. Encenando muita preocupação, indagou prontamente:

— Justino, é você mesmo? O que está acontecendo com você, meu amigo?

O estado de Justino era mesmo lastimável, mal conseguia falar. Levando as mãos contra o estômago, demonstrava sentir dores terríveis. Num esforço, conseguiu balbuciar algumas palavras - perguntava pelo seu remédio. Afanásio mostrou-lhe o frasco que trazia. Após conduzir Justino até a cama, foi à cozinha e apanhou um copo d’água. Levando o conteúdo até o enfermo, aconselhou-o a ingerir dois comprimidos de uma só vez, juntamente com a água onde, numa clara tentativa de apressar seu plano mortal, já havia dissolvido, secretamente, quatro daquelas cápsulas criminosas. Presenciava com satisfação os goles de Justino se alternarem com medonhas caretas de dor; fingia também sofrer, revelando-se uma criatura vil e dissimulada. Segurando fortemente a mão do sócio, Afanásio prometeu ir até a cidade vizinha buscar ajuda médica. Deixou Justino contorcendo-se sobre a cama para, em vez de procurar ajuda, deitar-se no sofá da sala. Dali, pôde, sem ser tocado pelo remorso, ouvir os fortes gemidos do sócio irem cessando gradativamente, até que um silêncio absoluto se instalou na casa. Tomado de contentamento, Afanásio levantou-se, acendeu um cubano e tomou, no próprio gargalo, o que restava de uma garrafa de vinho encontrada sobre o móvel de centro. Festejou em pensamento: finalmente, mandei aquele imbecil para o inferno. De repente, sentiu um leve mal estar. Será sentimento de culpa? Voltou a deitar-se no sofá e, após alguns minutos, sentia-se recuperado. Usando uma máscara de tristeza, o assassino foi até a delegacia e comunicou o falecimento do sócio ao delegado. Na falta de um médico na cidade, era justamente Afanásio, no seu ofício de boticário, o homem mais indicado para apontar a causa da morte. Dado o diagnóstico, nenhuma suspeita de assassinato foi levantada, principalmente diante do conhecimento público do mal estomacal que afligia o falecido Justino e do qual costumava queixar-se aos clientes que atendia.

Afanásio estava radiante, seu plano fora executado com sucesso; tornara-se o único dono da botica. Ambicioso, sonhava acordado com as grandes somas que poderia conseguir ilicitamente. Já se enxergava um homem rico. Após tomar as providências para o funeral, resolveu passar em casa para trocar-se e, logo em seguida, retornar para o velório – não queria perder a chance de despedir-se do sócio Justino. Montou seu cavalo e partiu a galope. A lua cheia brilhava soberana em sua terceira noite. Nenhum sinal de neblina impedia sua branca luz de delinear os contornos do caminho e todo o arvoredo. Ao passar num conhecido ponto da estrada, num gesto quase automático, esticou a visão por sobre o ombro esquerdo, aguçando os ouvidos. Tinha certeza de que nada escutava ou enxergava às suas costas. Deixou escapar de seus lábios, em voz alta:

— Aquela carruagem ridícula foi só alucinação, um pesadelo causado por um jantar mal digerido.

Mal acabou de pronunciar a última palavra, um grande estrondo invadiu seus ouvidos. A noite tornou-se um breu. Sem que notasse de onde, Afanásio viu surgir à sua frente, iluminado por tochas incandescentes, aquele carro dos infernos, puxado pelos negros cavalos sem olhos. Em seu interior, um caixão – desta vez mais luxuoso, digno de um defunto afortunado. Do alto, conduzindo a diligência, o homem desfigurado de olhos faiscantes, demonstrando nos gritos ira ainda maior, voltou a indagar:

— Quem merece? Quem merece?

Mesmo tomado de pavor, Afanásio perguntou com voz vacilante:

— Quem merece o quê?

Depois de longa e assustadora gargalhada, o homem respondeu:

— Quem merece seguir seu destino, comigo, nessa carruagem?

Afanásio não teve dúvidas e prontamente respondeu, lançando outra pergunta:

— Quem mereceria, senão o ocupante daquele caixão?

O homem voltou a indagar:

— Você tem idéia de quem ocupa aquele caixão?

— Não. Não tenho – respondeu Afanásio.

O cocheiro desfigurado fez soar sua gargalhada e disse em tom ameaçador:

— Pois saiba que você vai descobrir agora.

Num movimento rápido, o homem levantou o chicote que trazia nas mãos, fazendo o açoite soar contra as costas de Afanásio, jogando-o violentamente ao chão. Nesse momento, Afanásio sentiu o sabor do desespero em sua boca. Seu terror aumentou ao ouvir seu algoz ordenar:

— Levante-se, covarde. Vá até o caixão e olhe para a face do morto.

Afanásio se viu sem saída e, atendendo à ordem que acabara de receber, dirigiu-se até o caixão, no interior da carruagem. Suas pernas, completamente trêmulas, não puderam sustentar o peso do seu corpo quando, ao abrir o caixão, Afanásio fitou, como se diante de um espelho, seu rosto na face daquele cadáver. Viu-se morto e já em adiantado estado de decomposição. Notando que a carruagem entrava em movimento, gritou alucinadamente:

— Para onde vamos? Para onde?

Com um brilho enigmático nos olhos, o cocheiro respondeu:

— Para o mesmo lugar onde está seu sócio e amigo Justino.

Afanásio gritava desesperado, arremessando seus urros contra o breu da noite, enquanto a negra carruagem desaparecia na curva da estrada.

Na cidade, todos estranharam as portas fechadas da botica. Por que razão havia sido abandonada? Os urubus e o mau cheiro, reclamado pelos vizinhos, levaram a polícia até a casa de Justino. A cena encontrada era chocante: sobre a cama, já em adiantado estado de decomposição, o corpo do dono da casa. Ao seu lado, um bilhete esclarecedor trazia as seguintes palavras: 

"Cansado da solidão, resolvi, nesta primeira lua cheia de fevereiro, atentar contra a própria vida. Para tal fim, fabriquei o mais mortal dos venenos e o misturei ao vinho. Alcancei meu objetivo. Justino Sávio, 13 de fevereiro de 1897". 

Para surpresa da polícia, deitado no sofá da sala, encontrava-se o cadáver de Afanásio; trazia em suas mãos, encostada contra o peito, uma garrafa vazia. Nenhuma pista ajudou a esclarecer o motivo do evidente suicídio de Afanásio; nenhum bilhete fora por ele deixado. A polícia concluiu que Afanásio, chegando à casa de Justino e encontrando-o morto, não teria suportado a perda do sócio e grande amigo. Num momento de loucura, teria compartilhado do veneno que levara o amigo à morte, cumprindo, assim, um provável pacto de amizade e companheirismo eternos.

Elenildo Pereira
Enviado por Elenildo Pereira em 12/05/2008
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