Mãe de lua


      Num sítio pantanoso e distante morava uma pequena família: pai, dois filhos e uma linda mocinha. Naquele fim de mundo ermo e úmido, viviam da cultura do arroz e da criação de porcos. Os rapazes, assemelhados aos suínos, tiravam a vida da lama, chafurdando em meio à plantação; Selene, a irmãzinha caçula, cuidava dos afazeres domésticos. Da varanda da casa, estrategicamente construída sobre alta plataforma de madeira, o pai comandava tudo com pulso de um tirano. O que não fosse trabalho era proibido naquele lugar que, além da jovem Selene, só tinha de bonito as noites de lua. “Este é o nosso mundo” – costumava repetir o pai. “Vocês nasceram aqui, e aqui vão morrer” – completava taxativo, colocando um cisco de tristeza nos olhos dos filhos. Em época de enchente, a paisagem tornava-se ainda mais tenebrosa. Os nimbos anoiteciam o dia e desabavam ferozes sobre o charco; um turvo espelho d’água, roçando sob o assoalho, transformava a casa numa ilha melancólica. Por meses, submersos em tédio, os moradores imploravam das águas uma trégua. Invejavam as aves migratórias que, abrindo asas de liberdade rumo ao horizonte, davam adeus à triste paisagem. Durante o dia, os homens lutavam para salvar os porcos do rio, transportando-os para lugares mais altos; à noite, jogavam cartas e espantavam o frio com largos goles de cana. A tristeza, porém, era como um mal incurável que a todos contaminava. Recolhida em seu quarto, Selene sonhava com o dia em que partiria dali, salva por um príncipe encantado. Estendendo o braço pela janela, embalava a luz da lamparina sofregamente. “Estou aqui! Estou aqui!” – repetia suplicante, enxugando lágrimas com as costas das mãos. Mesmo açoitado pelo desespero do vento, o fio de luz teimava em permanecer aceso.

Certa noite, afastando as pesadas nuvens com vigor esplêndido, a lua cheia reinou sobre o pantanal. Como um imenso farol, o astro noturno mergulhou no espelho d’água. Da janela, Selene assistia ao espetáculo, maravilhada. A sua frente, via o reflexo pavimentar um caminho de luz prateada, por onde parecia possível caminhar até a imensa esfera lunar. De repente, a moça teve a nítida impressão de que, cortando o reflexo, algo flutuava sobre as águas. Aguçou a visão e constatou que estava certa; um ponto indefinido realmente boiava ao longe. Estava acostumada a ver troncos, bichos, coisa de todo o tipo passarem ao lado da casa, mas nada como aquilo. Desafiando o curso das águas, o ponto estranhamente subia a corrente. Era como se a lua, com um braço de luz, impulsionasse-o em direção à janela. Ao passo que o objeto flutuante se aproximava, a expectativa multiplicava-se, inundando o espírito da moça de tensão. Alguns minutos de espera e logo a jovem reconheceu tratar-se de um pequeno barco. A princípio, parecia estar vazio; nenhum movimento. De súbito, uma mão, branca como o luar, surgiu na borda da embarcação.

                Pai! Pai! Socorro! – implorou Selene, com o coração saltitante.

Soando como um tropel de cavalos sob o assoalho de madeira, os homens invadiram o quarto da donzela. Vinham prontos para a guerra, com facas e rifles em punho. Com olhos esbugalhados, procuravam o que levara ao pedido de ajuda.

— Vejam! Há alguém caído no fundo daquele barco – disse a mocinha, apontando pela janela.

Ordenado pelo pai, um dos irmãos jogou-se imediatamente na água e nadou até a pequena embarcação.

— Está vivo – constatou.

O pai prontamente lançou-lhe uma corda, resgatando-o do barco juntamente com o homem à deriva que, de tão magro e descorado, era quase invisível sob a branca luz da lua.

                O que vamos fazer com esse estranho, pai? – questionou um dos irmãos, enrugando a testa.

                Eu posso cuidar dele – intrometeu-se Selene, com um brilho maroto de criança que acaba de ganhar um brinquedo novo.

— Levem-no para dentro – ordenou o patriarca, enquanto coçava a cabeça, diante do interesse demasiado da filha.

Atendendo as instruções do pai, os rapazes tiraram do moço toda a roupa molhada e protegeram-no do frio num dos cantos da sala, sob diversas camadas de sacas vazias.  Selene tentou aproximar-se para ajudar, mas logo foi repreendida:

— Vá para o seu quarto; deixe que seus irmãos cuidem do moribundo – falou asperamente o pai. — Fique longe desse sujeito – emendou em tom de alerta, apontando o indicador para a filha que, cabisbaixa, se recolheu aos aposentos.

A noite passava como uma lesma centenária. Ansiosa pelo amanhecer, Selene não dormiu um segundo sequer. Na imensidão do pântano, grilos e sapos executavam sua serenata noturna, mas ela não ouvia. Aquecendo as pequenas mãos entre as coxas, tinha a cabeça adolescente tomada de pensamentos que lhe ruborizavam a face. Não entendia direito o porquê, mas se sentia fortemente atraída por aquele estranho. Assim que o primeiro clarão do dia pintou no firmamento, dirigiu-se até a sala. Pisava manso, na tentativa de evitar o ranger das tábuas. O roncar do pai fugia por sob a porta do quarto e espalhava-se por toda a casa; os irmãos dormiam perto da mesa, sobre uma trempe de varas e lona que lhes servia de cama. Olhando em volta, Selene logo notou, decepcionada, que o estranho não mais estava no canto onde pernoitara. Teria partido? – cogitou entristecida. Naquele mesmo momento, uma fria mão pousou lentamente sobre seu ombro. Com o susto repentino, um grito de pavor ecoou contra as tábuas das paredes, afugentando o sono da casa. O pai já atravessava o corredor, de rifle em punho, quando os irmãos saltaram da trempe, atordoados. A cena que viram deixou-os estupefatos: o hóspede trazido pela noite caminhava em direção ao quarto de Selene; carregava nos braços a moça desfalecida.

— Maldito! O que fez com a minha filha? – gritou o velho, apontando o rifle para a nuca do suposto algoz.

O rapaz continuava a andar calmamente, como se não desse ouvidos.

— Pare, ou atiro pelas costas! – advertiu o pai da moça, sob os olhos de expectativa dos filhos.

Vendo que o rapaz prosseguia, atirou para cima.

— No próximo estouro seus miolos – asseverou o patriarca, com o estampido ainda vivo nos ouvidos.

O estranho sequer estremeceu ou olhou para trás.

— Não atire, pai; a mana pode ser atingida – advertiu um dos irmãos, enquanto o estranho, empurrando a porta com o pé, metia-se dentro do quarto de Selene.

Sob os olhos atentos dos homens no seu encalço, colocou calmamente a moça sobre a cama. Ao voltar-se em direção a porta, encarou os três homens e transfigurou a feição, demonstrando apreensão por estar sob a mira do rifle do dono da casa. Atrapalhadamente, passou a assobiar e fazer gestos desesperados. Levava as mãos aos ouvidos e à boca, mas o único som que lhe escapava era uma seqüência de silvos. Sem nada entender, os irmãos partiram contra ele.

— O que você fez? – gritava o velho, enquanto os filhos imobilizavam o rapaz contra a parede.

— Soltem-no, tolos! Eu estou bem! – disse Selene, recobrando os sentidos. — Não estão vendo que ele não pode ouvir – berrou, saindo em defesa do moço acuado.

                Mas... Mas... – o pai tropeçava nas palavras.

                Eu desmaiei, pai; assustei-me com uma salamandra que vi no telhado – dissimulou Selene. — O moço só estava me ajudando – explicou.

Aceitando o argumento da filha, o pai prontamente caminhou até o moço e, num gesto de gratidão, estendeu-lhe a mão direita. O rapaz, estático, apenas o encarava. Selene ficou apavorada ao notar que o pai já voltava a se enfezar com a suposta desfeita.

— Vamos, estenda a sua mão – disse a moça compassadamente, fitando diretamente no centro dos olhos do estranho.

Numa resposta imediata, o rapaz assobiou umas notas, encheu o rosto com um sorriso e estendeu a mão direita. Ao tocá-lo, o velho sentiu seu coração gelar com a frieza daquela pele demasiadamente branca.

— Peçam desculpas ao moço – ordenou aos filhos, que também provaram do frio incômodo daquela mão.

Pai e filhos se entreolhavam cismados, diante daquela figura que, a exemplo da pele, tinha os cabelos alvos como algodão; não fosse o tom avermelhado dos olhos poder-se-ia acreditar não correr sangue naquelas veias. Milhares de interrogações pairavam em suas cabeças: quem era? De onde veio? No entanto, diante do estado surdo-mudo do hóspede, um interrogatório acreditava-se improdutivo. Porém, surpreendendo-os, Selene lançou para o moço uma questão aparentemente desprovida de sentido:

— Por que você veio?

Lançando os olhos vermelhos sobre a jovem, o rapaz esboçou um terno sorriso. Apossando-se do lampião que pendia da cumeeira, dirigiu-se até a janela e fez embalar ao vento a chama luminosa. Selene ficou pasmada ao vê-lo repetir o gesto que por tantas vezes executara, implorando seu resgate daquele triste fim de mundo. Meu príncipe – convenceu-se em pensamento, enquanto lágrimas riscavam-lhe as maçãs rosadas. Fitando-a com ternura, o hóspede trazido pela noite levou a mão ao rosto da donzela, enxugando-lhe o pranto. Devolvendo o lampião à cumeeira, emitiu um doce sibilo. Selene ficou ainda mais impressionada, pois, para ela, aquele assobio era como palavras; podia entendê-lo perfeitamente. Ignorando a presença dos demais, os dois iniciaram um inusitado diálogo. Entre palavras e assobios, comunicavam-se animadamente, diante dos olhos confusos dos homens.

— Parem já com isso! Se tocar outra vez na menina é um homem morto – gritou o pai, intrigado — Assim que águas baixarem, o moço volta para o lugar de onde veio – falou taxativo — Fiquem de olho nesses dois – completou, lançando a ordem aos filhos.

As nuvens de chumbo, aos poucos, abandonavam o céu. Lentamente, o imenso espelho d’água devolvia à paisagem o triste chão afogado. Estava na hora de reconstruir o que fora destruído pelas águas. Mostrando-se prestativo, o hóspede ajudava nos trabalhos com afinco.  Sempre atentos, os irmãos seguiam todos os seus passos, evitando que se aproximasse de Selene. Não podiam evitar, no entanto, os assobios que, principalmente nas noites de lua cheia, ele costumava lançar ao vento. Como notas mágicas levadas pelo ar, aqueles silvos tocavam os ouvidos da moça, que vivia em êxtase. Os irmãos sentiam-se incomodados com o largo sorriso que a irmã estampou no rosto, desde que recolheram da noite o ocupante do pequeno barco. O pai, principalmente, odiava a expressão satisfeita da filha; aquele brilho nos olhos trazia-lhe de volta o passado; era exatamente o mesmo cintilar de felicidade que surgira na face da esposa por ocasião em que ali, naquela mesma casa, pernoitara um certo Virgílio Sanches. Olhar para a filha era como ser açoitado por lembranças que, há muito tempo, tentava, em vão, apagar da memória.

 Três meses mais tarde, as águas foram, finalmente, devolvidas ao leito do rio. Disposto a fazer valer a palavra, o patriarca mandou um dos filhos avisar ao forasteiro que chegara a hora de partir. Não foi preciso; ele simplesmente sumira no meio do mundo, como sapos no verão. Por mais que o procurassem, nenhum sinal da sua presença permaneceu no local; nem mesmo pegadas impressas sobre a lama. O sorriso no rosto de Selene, no entanto, permanecia inexplicavelmente radiante. O incômodo daquela alegria feminina contaminou o sangue dos homens da casa, instalando suspeita em suas almas. Por semanas, ouviam a moça cantarolar no meio da madrugada, trancada no quarto. Nas noites de lua cheia, no entanto, o canto dava lugar a um silêncio ensurdecedor, mas igualmente suspeito. O pai, precavido, proibiu os passeios que a jovem costumava realizar pelas redondezas. A vigília dos irmãos, porém, tornava-se falha, diante da árdua jornada de trabalho diária que enfrentavam. O patriarca passava o dia a cochilar na varanda, embalado numa rede. Contudo, o ócio que lhe descansava o corpo não era capaz de relaxar sua mente desconfiada. Ligado aos detalhes, como um cão farejador, logo percebeu que os sapatos da filha viviam constantemente enlameados. Foi o suficiente para que sua atenção se multiplicasse, chegando a abrir mão dos cochilos vespertinos. Certa tarde, a espreita acabou por dar frutos que, para o pai extremamente rígido, tinham gosto de decepção. Sentiu-se traído ao ver que, descendo pelos galhos de uma árvore vizinha a sua janela, Selene ganhava o pântano em direção ao rio. Em companhia dos filhos, que acabavam de chegar da labuta, saiu no encalço da filha. A cena presenciada foi como uma flecha em chamas a trespassar o coração paterno. Sob a lua cheia que acabara de despontar, Selene desmanchava-se em gemidos nos braços do estranho trazido pela noite. Maldito Virgílio Sanches! – pensamentos desconexos invadiram a mente transtornada do pai. Regurgitado do passado, um sabor azedo de morte subiu-lhe pela garganta.

                Peguem o desgraçado! Acabem com esse demônio albino! – ordenou aos filhos, com os olhos em chamas.

Os dois homens saíram no encalço do rapaz que, sentindo o cheiro da morte iminente, ganhou o mato como uma raposa perseguida por cães.

— Deixem-no em paz – gritava Selene, em desespero, enquanto era alvo da ira do pai que, apossando-se de uma vara encontrada entre os juncos, aplicou-lhe pesados golpes.

Ao tempo que a vara marcava-lhe indiscriminadamente todo o corpo, os xingamentos do pai produziam profundos cortes na alma da jovem subjugada.

                Demônio dissimulado! Você é a reencarnação do espírito maldito da sua mãe – berrava o carrasco

Depois de muito apanhar, a pobre moça, banhada em sangue, foi arrastada pelos cabelos em meio à lama do pântano. Preste a perder os sentidos, viu os irmãos retornarem com a notícia:

— Aquele traste teve o que mereceu!

Ouvindo isso, a pobre moça desatinou. O sofrimento causado pela dor que sentia no corpo apresentou-se-lhe pequeno, diante do mal que aquelas palavras imprimiram em sua alma. Quando criança, ouvira furtivamente do pai o mesmo texto espremido entre os dentes. Desde então, perdeu o carinho materno. “Cadê a mamãe? Cadê?” – perguntou durante meses, recebendo sempre a mesma resposta seca: ela se foi. Assim, jamais voltou a ver a querida mãezinha; dela, além da saudade, restara como lembrança apenas um singelo presente que ganhara ao completar cinco anos: um cordão com pingente de prata, em forma de “S”, que jamais tirava do pescoço.

— Mamãe, como gostaria de tê-la de volta! – lamentava enquanto a tortura prosseguia.

Com um brilho insano nos olhos, Selene tirou do fundo da alma fustigada as últimas forças e conseguiu desvencilhar-se das garras do pai. Tentou correr para a floresta; inocentemente acreditava-se capaz de socorrer o seu príncipe. Alguns passos cambaleantes e um solavanco lançou-a novamente ao chão. A bruta mão paterna enroscou-se em seus cabelos, castrando sua liberdade. A frágil mocinha, não resistindo à tormenta de agonias que lhe inundava o espírito, afogou todos os sentidos em lágrimas. Por ordem do pai, os rapazes aplicaram na irmã desfalecida um banho em salmoura.

                Lavem com sal os pecados dessa reencarnação maldita! – gritou, arregalando os olhos.

Após o banho, Selene foi jogada à cama; seu corpo castigado pintou de vermelho o branco dos lençóis. Por um momento, os irmãos julgaram-na morta; pela frieza funesta da sua pele, não fosse a fraca respiração, quem a tocasse certamente acreditaria que ela já não fazia parte deste mundo. Impiedosos, os rapazes abandonaram-na de cuidados, entregando-a à solidão do quarto vazio.

Uma imensa nuvem converteu a noite. O prateado sugerido pela lua do final da tarde logo se transformou em chumbo de temporal; a chuva encharcou a escuridão. Sob os lençóis maculados, ardendo em febre, Selene despertou. Contrastando com o quadro de dor, um sorriso insano tocava-lhe os lábios. Os cortes e hematomas por todo o corpo pareciam não lhe causar sofrimento. Pôs-se de pé e, apossando-se da lamparina, caminhou até a janela. Tentou, em vão, abri-la; as duas faces estavam fortemente unidas por pregos e uma travessa de madeira. Com a base da lâmpada trazida nas mãos, a jovem bateu contra a vidraça, que se multiplicou em estilhaços. Pela abertura, conduzida por uma corrente de ar, uma folha verde invadiu os aposentos. Selene lançou o lume para fora, embalando-o em meio à escuridão. As lâminas de vidro que ficaram presas à madeira da janela rasgavam-lhe as costas da mão, o braço, mas ela persistia. O fio de luz teimava em brilhar. Estou aqui! Estou aqui! – repetia em pensamento. Ficou ali, por longo tempo, arremessando esperanças contra o paredão da noite. De súbito, um incômodo sombreou-lhe o sorriso do rosto. Levou uma das mãos ao ventre e, olhando para o chão, viu o verde da folha converter-se em vermelho. Percebeu, então, que uma poça de sangue formava-se sob os seus pés. A jovem devolveu o lampião à cumeeira e caminhou até a cama. Enquanto andava, um fio quente, que lhe escorria pelas pernas, imprimia pegadas encarnadas no assoalho. Demonstrando inexplicável ciência da situação por que passava, Selene estendeu nos lençóis uma manta. Sobre ela, acocorou-se nua, apoiando as costas contra a cabeceira da cama.  Forte jorro de líquido sangrento brotou das suas entranhas. Com expressão de intensa felicidade, deu à luz o fruto prematuro do seu desventurado amor; a lua minguante apareceu tímida entre as nuvens de chuva. Tomando nas mãos aquele feto sem vida, a jovem mãe apertou-o contra o peito. — Não chore, meu bebê! A mamãe está aqui! – falou com voz infantil, acalentando o filho morto.

Na sobra da salmoura, esquecida num balde, Selene mergulhou seu bebê. Carinhosamente removia a sujeira sangrenta com o sal do banho, revelando a pele branca como lua do corpo pequenino. Em meio àquele quadro dramático, simplesmente sorria, protagonizando um espetáculo triste e insano. Numa toalha limpa, embrulhou a criança. Passou então a cantarolar doces versos de uma canção de ninar:

“Dorme, dorme, meu benzinho, dorme em paz, dorme feliz / dorme como um anjinho, a mamãe está aqui / hum, hum, hum, hum / eu prometo sempre estar do seu lado nesta estrada / você é meu amorzinho e eu sem você sou nada / hum, hum, hum, hum.”,

Por muitas vezes, Selene ouviu estes mesmos versos dos lábios maternos. Porque você me deixou, mamãe – lastimava-se enquanto ninava o filho pequenino.

Sete dias se passaram e Selene permanecia recolhida ao quarto. O feto, já em decomposição, deixava o ar putrefato; o sal do primeiro banho apenas retardara o processo. Com tiras de tecido arrancadas da própria roupa, a mãe enrolava o pequeno corpo, contendo as carnes que ameaçavam desprender-se dos ossos. Aos poucos, ia confeccionando uma espécie de múmia em miniatura. Como uma criança que brinca de boneca, acarinhava o filho inânime. “Dorme, dorme, meu benzinho! – cantava até cansar, colocando, por fim, seu brinquedo num baú que lhe servia de berço. Bastava ouvir passos no corredor para a mãe zelosa trancar rapidamente a arca a chave. Eles não podem saber – desesperava-se. Sempre que um dos homens tentava entrar no quarto, era recepcionado por um ser transfigurado de fúria. Como se possuída, Selene partia para cima a dentadas; nada falava, apenas urrava como um bicho. Num ataque, dilacerou a maçã do rosto de um dos irmãos; do outro, arrancou uma das orelhas; noutra investida, chegou a decepar um dos dedos do pai. “— Eu mato esse demônio!” – gritou o velho transfigurado de dor. Só não executou o plano homicida porque fora contido pelos filhos. Era pavoroso ver a jovem devorar  pedaços de carne humana. Mais assustador ainda era perceber nos olhos de Selene um certo cintilar de prazer ao executar o gesto canibal. Circulando a língua sobre os lábios, sorvia o máximo possível do sangue que lhe escorria pelos cantos da boca. Temerosos, os homens resolveram que o melhor a fazer era manter enclausurado o espírito maligno que, segundo acreditavam, possuíra o corpo da mocinha.

Desprovida de cuidados femininos, a casa logo se transformou num caos. A indolência mórbida do pai mal permitia que ele preparasse, numa mesma panela, uma horrível mistura de arroz e carne suína. Os irmãos engoliam aquele pasto sem o direito a reclamações. Por uma tábua solta na parede do quarto, faziam chegar à irmã um prato da ração, acompanhado de uma caneca d’água. A caneca era sempre recolhida vazia; a comida, porém, jamais era tocada por Selene. Além das mariposas que, à noite, rodeavam o lampião, o único alimento que a mantinha viva era esperança. “Estou aqui, meu príncipe” – repetia ao vento, noite após noite, embalando pela janela a chama delirante.

Completando um ciclo de 29 dias, a lua cheia voltou a iluminar a noite do pântano. Idêntica luz instalou-se nos olhos de Selene. “Ele está vindo! Está vindo!” - prenunciou. Sentiu o coração acelerar ao ouvir, além dos arvoredos, o silvo cortante do amado. Extasiada de felicidade, viu-o surgir por entre as árvores do bosque, refletindo a luz noturna nos cabelos prateados. Seus olhos vermelhos eram como brasas a cortar o pântano. Veio como um raio; disposto a tudo para matar a saudade. A alta varanda, os pregos na janela, nenhum empecilho evitou que, em segundos, tivesse a amada em seus braços. Selene abriu o baú e apresentou-lhe, orgulhosa, o filho que dormia. Após receber um carinhoso beijo paterno, a criança abriu os pequenos olhos avermelhados, sorriu e logo voltou ao sono. Tomados pela libido, os amantes renderam-se à volúpia, enchendo os dias que se seguiram com o amor mais ardente que jamais existiu. Quando a lua cheia se foi, com ela, Selene viu partir o amante. A tristeza, no entanto, não encontrou morada em seu peito. “Ele vai voltar na próxima lua” – sussurrava, convencida. Exatamente sete dias depois da partida do amado, Selene dava à luz um outro filho. “— Este é seu irmãozinho” - apresentou o recém nascido ao irmão mais velho, colocando-os lado a lado dentro do baú.

A partir daí, sempre que a lua cheia visitava o pantanal, a cena se repetia aos olhos da jovem apaixonada. Seu príncipe prateado, com a habilidade de um acrobata, surgia a equilibrar-se sobre as copas das árvores. Num salto preciso, alcançava sem esforço a varanda da amada. Fundindo-se à luz da lua, ultrapassava com facilidade os vidros da janela e invadia o quarto. Sobre a cama, Selene já o aguardava, totalmente despida. Após afagar carinhosamente os filhos, o príncipe lunar assobiava nos ouvidos da parceira doces juras de amor, enchendo o coração feminino de felicidade. Os amantes entrelaçavam seus corpos sobre os claros lençóis da cama, compondo um quadro de brancura absoluta; amavam-se intensamente  por dias e noites seguidas, só se despedindo quando a lua murchava no céu. No último dia da lua minguante, nova cria de olhos avermelhados vinha ao mundo. A cada 29 dias, percebendo que o sangue  maculava o pano branco que usava entre as coxas, Selene repetia o insólito ritual. Sobre a cama, estendia uma manta e sobre ela dava à luz novo filho. Em seguida, depositava-o na arca, ao lado dos demais irmãozinhos. Aquele baú era o seu tesouro; nele estava depositada toda a felicidade da sua vida; só para ele a cuidadosa mãe dedicava sua existência. A preocupação em manter a integridade dos fantásticos filhos de olhos avermelhados era tanta que Selene passava noites e noites em claro, velando-lhes o sono. “Não chorem, meus queridos! Eles podem ouvir!” – alertava-os. Porém, com sua ferocidade, conseguia manter pai e irmãos afastados.

Com o correr do tempo, novas preocupações passaram a ocupar a atormentada alma materna. Assim como nasciam, suas improváveis crianças desenvolviam-se rapidamente. Logo, o espaço na arca tornou-se insuficiente; Selene ia, pouco a pouco, perdendo o controle sobre sua cria. Brincando, correndo e assobiando pelo quarto eles deixavam a mãe ainda mais apreensiva. Dentre todos os problemas, no entanto, um tornou a situação insustentável: o leite materno não era suficiente para saciar a fome de todos. Disputavam, então, entre gritos e arranhões as escassas mariposas que, distraídas, vinham beijar a chama da lâmpada. Foi  nesse quadro desolador que, certa noite, chegando com a lua cheia, o príncipe encontrou a amada e filhos. Vendo a fome ofuscar o brilho dos seus, o pai preocupado anunciou para a esposa, com um silvo, o seu plano: “precisamos tomar a casa”. Prosseguindo com o  intento, colheu das profundezas do pântano ervas do sono e entregou à amada. Arrancando outra tábua, tornou mais larga a passagem por onde entravam diariamente no quarto o prato intragável de ração e o copo d’água. Aproveitando a ausência dos irmãos, esgueirando-se pelo buraco na parede, Selene deixou os aposentos. Levando consigo as ervas soníferas, caminhou mansamente sobre as tábuas em direção à cozinha. Ao passar pela sala, ouviu o rangido da cadeira de balanço do pai. Pé ante pé, alcançou a  janela da varanda; lá estava o velho a embalar-se sob o sol da manhã. Sem camisa, fazia a grande pança refletir os raios do dia; no braço da cadeira, apoiava a mão mutilada. Ao ver aqueles dedos, Selene voltou a sentir na boca o gosto daquela carne. Salivava faminta, louca de vontade de devorar toda a gorda mão. Ainda não está na hora – pensou, controlando-se para não estragar o plano. Chegou finalmente à cozinha e misturou as ervas ao arroz. Agora, era só esperar.

Logo após o meio dia, os irmãos estavam de volta. O pai roncava na varanda; comera com a gula de costume a maior parte do grande caldeirão que preparara. Mesmo acostumados com a imagem diária do velho a dormir sobre a cadeira de balanço, os filhos estranharam sono tão pesado. Melhor assim! – raciocinaram, satisfeitos por não ter que ouvir as constantes reclamações que, por muitas vezes, entravam como tempero agravante do já detestável alimento. Na cozinha, após separarem o prato de Selene, os rapazes serviram-se da sobra do pasto que, diante do sabor e aspecto medonhos, só a fome devoradora tornava possível engolir. Segundos depois, debruçavam seus corpos sobre a mesa do almoço. A exceção de Selene, seu príncipe e a prole esfomeada, todos dormiam um sono profundo de morte. Acompanhando a mãe, aquelas criaturas ultrapassaram, uma a uma, a parede do quarto e se espalharam pela casa. Chegara finalmente a hora de saciar a fome monstruosa. Naquele inicio de tarde, após ouvir sucessivos gritos pavorosos, o pântano entregou-se ao quase absoluto silêncio. Além do carpir agourento das aves carniceiras do lamaçal, nada mais se ouvia. Nada de berros prepotentes do pai tirano; fim da subserviência desmedida dos filhos. O tempo navegou demoradamente sobre a solidão daquelas águas.

Muitos anos mais tarde, estacionou em frente a grande casa uma luxuosa carruagem. Dela, amparada pelo cocheiro e uma pequena dama de companhia, uma elegante senhora desembarcou. Ao enfiar os lustrosos sapatos naquela negra lama, lágrimas saltaram-lhe dos olhos. As portas e janelas abertas, as plantas trepadeiras sobre o telhado, as aves carniceiras aos saltos pelo interior da casa, denunciavam o abandono. Um odor pavoroso contaminava o ar, causando náuseas; a estranha senhora levou as mãos ao rosto.

— A madame está bem? – indagou o cocheiro, ao notar o tom amarelado que pintou a face da patroa.

— Não se preocupe, Eustáquio. Estou pagando meus pecados – respondeu, tentando disfarçar a angústia. — Fique onde está e tome conta da pequenina – ordenou ao empregado, já subindo a escadaria de acesso à varanda.

A cadeira de balanço rangia num vaivém esquisito, como se embalasse um ser inalcançável aos limitados olhos humanos. Espalhados pelo chão, um sem número de ossos descarnados, pareciam roídos por garras caninas. Andando pelos cômodos da casa, a atônita senhora via aqueles ossos multiplicarem-se a sua frente.  Ao entrar na cozinha, sentiu sua angústia transformar-se num verdadeiro pesadelo. Sobre a mesa, três caveiras humanas. O que teria acontecido aqui, meu Deus? – indagava em pensamento. De súbito, algo lhe chamou a atenção; acreditou ouvir um assobio vindo de um buraco na base da parede de um dos quartos. Mesmo sentindo um tremor incômodo tomar conta das suas pernas, a mulher caminhou na direção do som. Decidida, apoiou os joelhos sobre o empoeirado assoalho e, pelo espaço entre as tábuas, lançou o olhar para dentro daquele aposento. Pela abertura, um vento repentino jogou no seu rosto um cheiro acre de morte. Açoitada pelo sopro putrefato, a madame pôs-se rapidamente de pé, só tendo tempo de visualizar os pés da cama. Com a mesma decisão que chegara até ali, empurrou com as duas mãos a pesada porta, que reclamou com um gemido de angústia. Apresentou aos seus olhos, sem demonstrar surpresa, a pacata mobília: uma velha cama, um baú desgastado pelo tempo. Sob os lençóis, delineava-se uma silhueta humana que, coberta de pó e casas de aranha, parecia ali repousar a séculos. De repente, um susto quase lhe roubou os sentidos.

                A senhora está aí? – indagou uma voz arrastada.

Com um grito aterrorizante, a mulher assustada fez levantar vôo um bando de pássaros que repousavam sobre o telhado. Viu, então, uma figura masculina surgir na porta do quarto.

                Eustáquio, você quase me matou – reclamou a mulher — Eu não disse para você ficar lá fora com a pequenina? – completou com os lábios trêmulos.

— Eu sei, madame. Desculpe-me! Mas fiquei preocupado com sua demora. Prometi ao falecido patrão que cuidaria para que nada de mau lhe acontecesse – lembrou. — Pelo que vi, este lugar parece perigoso. O melhor a fazer é irmos embora daqui. – sugeriu.

— Claro! Você está coberto de razão! Contudo, volte para junto da pequenina que eu já estou indo – ordenou.

Obedecendo prontamente, o serviçal deixou a patroa sozinha. A mulher abriu o baú e ficou intrigada ao encontrar dezenas de antigos panos maculados de sangue. Olhando para o volume sobre a cama, a senhora sentiu-se tentada a levantar os lençóis. Após breve hesitação, puxou os panos devagar. Revelou-se, então, uma cena incompreensível: um esqueleto íntegro repousava seu sono funesto sob os cobertores; contra o peito trazia o cadáver de uma criança que, enrolada em farrapos, deixava a mostra sua face medonha e murcha. Um raio de sol, entrando pela vidraça da janela, fez reluzir um lume maravilhoso em meio àquele espetáculo dantesco. No pescoço do esqueleto, um cordão prateado cintilava, lançando o reflexo contra as paredes. Aquela luz foi suficiente para apagar dos olhos da estranha visitante, de uma só vez, todas as esperanças que a impulsionaram até ali. Uma dor insuportável tomou conta do velho coração. Reconheceu em prantos, no pescoço do esqueleto a sua frente, o pingente em forma de “S” que um dia dera de presente à filha quando esta ainda era uma criança.

Elenildo Pereira
Enviado por Elenildo Pereira em 19/05/2008
Código do texto: T996576