Conto de Necrotério 2 - Os Come-Quietos

- Me passa a mostarda.

- Não tem.

- Catchup, então.

- Esquece.

- Molho inglês ?

- Não.

- Molho de alho ?

- ....

- Porra, não tem temperinho nenhum aqui não ?

- Isso não é exatamente o restaurante da esquina, Olavo.

- Merda. Esqueci.

- ????

- A gente descansa, dorme, esquece. Eu sonhei com minha casa. Minha esposa, minha família. Haviam jantares chiques lá, regados a camarão e champagne, antes de perdermos o dinheiro em investimentos burros. Eram tempos maravilhosos.

- Faço idéia.

- Ei... eu só sonho com comida agora.

- Natural isso.

- Não tem nada de natural na nossa situação, cara. Olha onde viemos parar, isso aqui é um muquifo nojento.

- Atualmente, nós somos mais nojentos que o muquifo.

- Não posso rebater tais palavras. Se não tem tempero, vai sem, mesmo.

- ....

- ....

- Que tal seu fígado ?

- Podia estar acebolado, mais bem passado, mas tá de bom tamanho. E sua carne ?

- Mais fibrosa que de costume, dando um pouco mais de trabalho aos dentes, mas deliciosa. Acho que nem vou reclamar com o chef.

- HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA ! Reclamar com o chef...

- Her... hehehehe, isso mesmo. Eu vou chamá-lo e dizer assim: “Monsieur, vôtre carne parece um chien.”

- Um... o quê ?

- Chien... cachorro. Carne de cachorro. Ou cheval.

- ?

- Cavalo.

- HAHAHAHAHAHAHA ! Porra, pára, assim eu engasgo.

- Heheheh é amigo, só o que não se pode perder, nunca, é o senso de humor.

- Como se indigentes pudessem ter isso...

- Indigentes só podem ter isso, Fonseca. Perderam todo o resto. Principalmente os nomes.

- Para nós, isso é vantagem. Com a zorra que é isso aqui, dá para sobreviver bem.

- Sobreviver... ffffff.

- A palavra é essa. Não importando a situação.

- Estamos filosóficos hoje, hem ?

- Saco, né ? Hmmm quero um rim, deu desejo.

- Sirva-se à vontade, eu vou de coração.

- Cara, eu nunca tinha comido rim, tinha nojo. Mesmo bem limpo.

- E agora ama.

- Amo um rim, um fígado, um miolo, umas tripas... eu nem me reconheço.

- Nem você e nem sua família.

- Aqueles meus genros sanguessugas... afastando minhas filhas de mim com aquelas mentiras... estou morto para eles.

- Você passa melhor sem.

- Também acho. Se bem que... eu adoraria tê-los aqui. Daria um tratamento de primeira aos safados.

- Eu vou adorar ajudá-lo nisso.

- Valeu, amigo. Vai ser uma pândega daquelas. Se ainda estivermos por aqui, ocupando nossos cantinhos.

- Por que não estaríamos ? Isso aqui é uma merda, ninguém limpa direito há anos, ninguém nem abre as malditas portas. Podemos ficar para sempre.

Passos se aproximando.

- Vem gente, rápido !

- Tão cedo ???

- É aquele pentelho de novo.

- Porra, mas ele já acabou com o peixe novo !

- Era o que parecia. Anda, bosta, sobe logo !!! Depois me puxa.

- Tá... uffff... que gelo. Odeio esse lugar.

- Você está assim inteirão por causa dele, então não reclama. Me puxa, anda.

- Você está.... OOOOOOOOFFF ! Mais pesadoooooooo....

- Cala a boca, porra, ele vai ouvir.

Ouve-se uma terceira voz no recinto:

- Ei, amigos ! Na boa, dá pra devolver meu rim ? Eu juro que não deduro vocês, só quero meu rim de volta.

Ouve-se o berro chocado do legista, Dr. Lamontti, que retorna à sala de necrópsia.

- Ahhh de novo não... aqueles vândalos de necrotério voltaram e... Crisóstomo !!! O que andou acontecendo por aqui ? Cadê sua perna ????

Duas unidades frigoríficas superiores dos “armários” para cadáveres, que ocupam duas paredes da sala, fecham-se muito delicadamente, quase sem ruído.

Unidade G – 34, onde repousa o indigente nº 2347, vulgo Sr. Olavo Mota, ex milionário, morador de rua, 71 anos, assassinado com um tiro na cabeça em 12/05/2001.

Unidade G – 35, ocupada pelo indigente nº 12844, vulgo Sr. Henrique Fonseca, professor de francês, que morreu de infarto fulminante após overdose de Viagra, aos 56 anos, num motel de baixa categoria, sem documentos, em 03/11/2001.

Rio de Janeiro, 23 de setembro de 2002.

Mônica Virgo
Enviado por Mônica Virgo em 06/04/2005
Código do texto: T10056