Credores e devedores

— Queria falar comigo, chefinho?

— Ainda quero, Lacaio. Senta aí. Lembra do Açougueiro?

— Qual? “Aquele” Açougueiro?

— É, “aquele” mesmo. O filho-da-puta me deve, e eu quero que tu vá lá cobrar.

— Eu? Porque eu?

— Porque eu te considero. E não quero te lembrar que tu também tá me devendo.

— Tu é um desgraçado.

— Eu sei. Agora, seja bonzinho e faz o que eu tô mandando.

***

— Grande Açougueiro! Tudo bem, carinha?

— [Estou ocupado, Lacaio. Se me der licença...]

— Sem problema. Eu falo e tu escuta.

— [Não tenho assuntos a tratar contigo.]

— Puta-merda! Onde é que tá a tua cortesia? Eu tenho uma proposta pra te fazer.

— [Proposta?]

— Eu sei que tu tem umas contas pra acertar com o Agiota.

— [E quem não as tem? O cretino explora-nos a todos.]

— É, mas só eu e tu temos cacife pra acabar com a raça dele.

— [Agora estou começando a entender.]

— Então, ouve só o meu plano...

— [Espera. Aqui não. Vamos até o porão. Essas moscas estão atentas demais para o meu gosto.]

***

— Ei, que merda é essa? O que ele tá fazendo aqui?

— Surpresa, chefito! Segura ele, Açougueiro.

— [E agora, caro Agiota? Quais serão os teus argumentos quando voltares para casa?]

— Seus idiotas! Eu sou o único que mantém essa merda toda em ordem!

— [Pode até ser. Mas hoje, quem vai executar a sentença somos nós.]

— Por favor. Tenham piedade...

— Pode deixar, chefinho... a gente promete que tudo vai acabar bem rápido.

***

Os dois não cumpriram a promessa.

Lacaio acionou a máquina de moer carne. O som do motor o fez sentir a inevitabilidade da destruição final. Era da natureza dos de sua estirpe não desfalecerem até que seus corpos estivessem inteiramente destruídos. Seu criador, aquele que os moldou a partir das próprias fezes, não privou a dor a nenhum de seus filhos. O Agiota foi acorrentado à mesa onde ele próprio executava seus devedores. O Açougueiro, com indizível satisfação, abriu-lhe o ventre e, sem pressa, extraiu seus intestinos. Com igual presteza, extraiu das órbitas os olhos de seu credor, depositando-os com cuidado num estojo de aço.

Custava a Agiota acreditar que outro estava no papel que tantas vezes desempenhou. Seus berros seriam ouvidos por toda a cidade, se aquela cozinha não fosse preparada com sua própria arte. Içado em um gancho pelos pés, teve a garganta cortada por uma lâmina de fio maligno e ligeiro, fazendo o sangue negro verter como uma cascata para dentro de uma panela encardida por séculos de uso. Com a mesma lâmina, Açougueiro retirou camadas e mais camadas da carne viva do antigo patrão, deixando expostos os ossos e os órgãos internos. Seus algozes encheram as tripas com a carne moída, fabricando com elas o chouriço dos condenados. Os ossos foram jogados no tonel de óleo fervente até dissolverem-se por completo. Isso levaria muitos dias, dos quais Agiota recordaria cada minuto.

***

— E aí? Tudo pronto?

— [Sim. Aqui estão os frios e o estojo.]

— Beleza. Vamo?

— [“Vamos” não, meu caro. Querias minha ajuda para fazer o chouriço, pois aí está. Não voltarei para nosso país enquanto puder evitar. Tu vais só.]

— Mas tu é um cagão, mesmo! Hehehe! Mas valeu, cara. Ah! Vai assistir à final do campeonato pela TV?

— [É lógico!]

— Então esquece. Consegui dois ingressos pra assistir de camarote. Tavam no bolso do casaco do chefinho.

— [Hum. Obrigado.]

— Que nada, cara. É o mínimo que eu posso fazer pra retribuir.

***

— Cérbero, aqui guri. Isso! Tava com saudade do Lacaio, né? Olha quanta carne eu te trouxe. Pega! Isso. Come tudinho, viu. Cachorrinho bom. Daqui a pouco eu volto. Só vou entregar esse estojo aqui pro pai.

***

O Açougueiro voltava para sua casa, levando a pesada maleta com seus instrumentos. Parou diante da vitrina de uma loja de eletrodomésticos. Ansiava comprar uma televisão com tela de plasma há algum tempo. Um caminhão da cooperativa de apicultores desceu a ladeira, invadiu a calçada e tombou, inexplicavelmente, sobre o único transeunte na rua àquela hora. Francisco mal teve tempo de voltar a cabeça, antes que boa parte da carga de mel caísse sobre ele. Num segundo, tudo não passava de uma massa indistinta e negra de carne, sangue, mel e cacos de vidro. E naquele mesmo instante, de todos os buracos da rua, ralos de pia, tubulações, calhas, telhados, centenas de milhões de insetos vieram, atraídos pela doce refeição. As moscas, espiãs de um senhor muitíssimo mais antigo que Açougueiro, mais velho até que o criador dos demônios, limitaram-se a observar.