Entrega em domicílio

De muitas histórias que já ouvi, esta é uma das mais tétricas que alguém poderia supor que acontecesse. Não podemos imaginar a que ponto a mente humana pode chegar para praticar tamanhas atrocidades. O caso que contarei a seguir teve como pivô um segmento da comunicação, que não pratica menos atrocidades do que aquelas que descreve, às vezes. Estou falando da imprensa escrita, com suas reportagens tendenciosas, privilegiando alguns em detrimento de outros, mas esse não é o caso. Na verdade, a origem de toda a trama se dá nas páginas dos classificados, teoricamente, inofensivos.

Já era a terceira semana que passava sem dormir. Caminhava tanto pela madrugada, dentro de casa, que nem luz precisava mais acender. Conhecia tudo pelo tato e pelos passos. Não fazia muito barulho não, nenhum de seus familiares entenderia sua dor. Chorava pelos cantos, sozinho, pra ninguém ouvir. Quando sentia necessidade de chorar alto, se enfiava no banheiro com o rádio ligado a todo volume, e deixava suas lágrimas se misturarem à água aquecida do chuveiro, e seus gritos se confundiam em meio a roques e axés.

Tinha parado de se alimentar a algum tempo. Dia sim, dia não, comparecia à repartição para picotar seu cartão. Nesse ritmo perderia o emprego em pouco tempo. Tinha consciência disso, mas seu coração se recusava a reagir mesmo assim. Sua aparência lhe valia o apelido: “O zumbi”. Ele não sabia de sua alcunha, mas também, muito menos desejava saber. Aliás, nem viver queria mais. Este ser era um lixo humano.

Há, porém sempre uma luz no fim do túnel. Um amigo dele, seu camarada mesmo, já havia passado por problema semelhante, não com tanta gravidade, pois sobreviveu para ajudá-lo agora.

– Cara! Você se lembra o ano passado, quando a Isabela me abandonou por outro, com quem ela tinha coragem de se encontrar, enquanto eu trabalhava?

– Hum! Hum!

– Eu superei, e até esqueci daquela..., deixa pra lá. Estou até namorando novamente. Você viu, não viu? Que gata!

– Hum! Hum!

– Anime-se, homem! Folheando os classificados de hoje, lembrei de você. Olhe que coisa interessante tem aqui.

“Devolvo seu amor em 24 horas. Seja lá qual for o problema da separação, ele ou ela voltará pra você, inteirinho(a) pedacinho por pedacinho. Se quer realmente seu amor de volta, ligue para o fone...”

– Mateus! Você, realmente, sabe como levantar o astral de um amigo. Nunca imaginei que alguém prestasse este tipo de serviço. Vejam só, cada profissão! Vou ligar pra lá agora. Será que a Tina vai ouvir o apelo deste homem? Bom, são quase meio dia, isto é sinal de que amanhã a esta hora, eu estarei com ela novamente em meus braços. E vamos aproveitar muito, porque vai ser sábado, e não tem expediente.

Ele animou-se de verdade e, sem perder um minuto sequer, ligou imediatamente de seu celular para o telefone indicado no anúncio. A voz grave, doce e, até mesmo, carismática que atendeu não precisou nem mesmo dar qualquer explicação de seus métodos para atingir tão sonhado objetivo. Tirando o susto do preço combinado, e adiantado, ele depositou naquela voz a esperança de sua vida. Ele apenas prometera que no horário marcado ela estaria lá, toda em seus braços. Mas, ele teve que deixar o número do seu telefone para que ele pudesse ligar um pouco antes, comunicando-o da volta da sua amada.

Depois de agradecer seu amigo pela dica, pegou o carro e retornou para casa a fim de se preparar para o regresso daquela que lhe tinha o poder da vida ou da morte. Seu entusiasmo, praticamente, impedia os ponteiros do relógio de andarem, e o que eram segundos, passaram a ser minutos, o que eram minutos, passaram a ser horas, e horas dias. Que sensação horrível devia ser essa. Um banho só, foi pouco, teve que tomar três, pois suava muito. E aproveitando o número, ainda gravado na memória de seu celular, resolveu ligar novamente para ver como andavam as negociações, senão, iria implodir de aflição. Tocava, tocava, e só uma resposta obtinha: “Deixe sua mensagem na caixa postal ou ligue mais tarde”. Isso o levava às nuvens tão rapidamente quanto o lançava ao chão. Tanta certeza da volta, só era desfeita pela tamanha incerteza de estar sendo logrado.

Passadas horas de sofrimento, eis que soou angelicalmente a campainha de seu telefone, tão ansiosamente, esperada por ele. Mas, o interessante, é que não havia passado 24 horas ainda. Era madrugada, e aquela voz aveludada anunciava a chegada daquela que traria sua alegria de volta, no entanto, disse apenas esta frase: “Ela está lá na porta, a partir de agora você será um homem feliz e livre.”

Pálido e gelado, correu até a porta e a abriu-a, abruptamente. Um saco plástico, enorme, caiu sobre sua perna, empurrando-o para dentro. Ele estava apenas amarrado com um laço. Foi fácil abrir. Antes de abri-lo totalmente, um braço rolou de dentro. E ele, pasmo, petrificado, não acreditava no que via. Foi tirando pedaço por pedaço, até chegar ao fundo. E neste momento, com a cabeça decepada da sua loira amada nas mãos, constatou: “É a Tina.” Suspirou profundamente, e espantosamente aliviado, pensou: “Esse cara vai ficar rico com isso!” E aquele lixo foi pro rio mais próximo. Ele estava livre novamente!

Wilian Aparecido da Cruz
Enviado por Wilian Aparecido da Cruz em 16/03/2006
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