Uma Noite de Halloween

As crianças corriam afoitas pelas ruas batendo de casa em casa gritando "gostosuras ou travessuras". Cada uma delas vestia uma fantasia de fantasma, vampiro, monstro ou qualquer outra forma apavorante. Lanternas de abóbora enfeitavam as ruas, enquanto adultos também fantasiados tentavam pregar susto das nas crianças, fossem com brincadeiras ou histórias de terror. Isso era Halloween, ou ao menos era assim que Jack se recordava.

Jack Razor nascera em Baltimore e lá morou até seus 30 anos de idade, quando se mudou para o Brasil graças a um convite feito pelo recrutamento interno da empresa onde trabalhava. Era uma mudança radical de ares e costumes, mas as possibilidades de crescimento profissional eram bem atrativas, assim como salário. Sem pensar duas vezes o antigo supervisor de produção americano se tornou o gerente de produção da nova fábrica brasileira.

Isso fora a pouco mais de 4 anos atrás. Razor já estava com um português bem "afiado", embora ainda cometesse gafes dignas de paródia por parte dos colegas, ele já se virava bem o bastante: comentava sobre futebol, mulher e outros assuntos do dia a dia. Nos primeiros meses no Brasil ele vivera em um hotel, durante o período de adaptação, pouco tempo depois já havia conseguido escolher e negociar o aluguel de um apartamento para si.

Era dia 31 de outubro e Jack voltava cambaleante para casa. Sua roupa de "Luke Skywalker" não o deixava mentir: estava voltando de uma festa de halloween. Nas ruas uma ou outra pessoa passava por ele também com algum alguma fantasia, porém todas mais simples e geralmente se resumindo a alguma roupa colorida com máscara, normalmente sobra do carnaval. Para Razor aquilo era o fim, pois já não bastava o Halloween ser tão pouco vislumbrado por essas terras, quando este era lembrado acabava sendo posto em segundo lugar.

Eram quase 5 da manhã e dentro de algum tempo o Sol iria nascer. Havia uma lenda em Baltimore de quem visse o sol do dia de todos os santos, o primeiro dia de novembro, nascer fora de sua casa ou de uma igreja, estaria condenado a vagar pelo limbo por toda a eternidade após a sua morte, não lhe sendo permitido para todo sempre adentrar nem o paraíso nem o inferno. Jack podia já se velho o bastante, mas ainda acreditava firmemente nessas lendas. Como no Brasil as igrejas desconheciam esse costume, só lhe sobrava uma alternativa que era a de apressar o passo em direção a sua casa.

Faltavam poucas quadras, quando ele chegou ao cemitério da cidade. Bastava agora contornar seu muros para Jack chegar em casa. Sim, por mais irônico que possa parecer para um sujeito tão temeroso a crendices populares, ele morava em uma casa de frente ao cemitério. Os primeiros raios do dia começavam a se levantar e o tom violeta do céu começava a subjugar o negrume da noite. Temeroso, Razor tomou a radical decisão de pular o muro e correr pelo meio do cemitério até sua casa. Seu coração pesava com tal escolha, mas essa era sua única chance de chegar em casa antes do Sol.

A adrenalina do momento lhe dava pique para continuar, subjugando a lerdeza das altas quantidades de álcool da noite. Correndo por entre túmulos e esquifes, ele correu por mais e meio cemitério, até que quando estava quase chegando ao muro oposto, uma ladainha sinistra começou a chegar aos seus ouvidos: "Portão de ferro... Cadeado de madeira... Portão de ferro... Cadeado de madeira...". Uma rajada de vento sinistra pairava no ar, gelando a sua espinha. Ele olhava para um lado, olhava para o outro e nada via, até que um vulto cruzou a sua frente fazendo o gringo perder o equilíbrio, indo de encontro ao chão.

"Má num é qui veio", dizia uma voz sinistra por sobre seu ombro. "Ce tava demoiando fio dum peste". Um velho de aparência agourenta apareceu por de trás de uma das criptas fitando seus corpo caído. "Num sabe tu que terra de Omulú num si invade assim naum?"

Jack se levantou de um pulo. "Witchcraft...", ele balbuciou, conforme a estranha figura se aproximava dele dizendo "Má ´ocê num deve carecer di ter medo não. Vem cumigo". Enquanto o velho se aproximava, mais ele se afastava. Seu coração pulsava violentamente, enquanto sua espinha gelava de uma maneira anormal. Não era mais medo que ele sentia, era um receio primitivo, semelhante ao medo que sentem os cavalos quando há algo de sobrenatural no ar, e foi esse receio que o impulsionou a correr na direção do velho, derrubando-o no chão violentamente.

Era engraçado como mesmo temeroso para com as lendas, Jack se mostrava completamente apático para com o misticismo brasileiro. Alguns diriam que isso seria uma atitude narcisista típica de um americano típico, o que não deixaria de ser verdade, embora tal sentimento fosse completamente espontâneo do coração de Jack. Tal repulsa pela magia terceiro mundista lhe era sincera, algo além do seu controle.

Correndo em direção ao muro, Jack esperava conseguir chegar em casa ainda a tempo de cumprir a tradição de seu país, e ao que tudo indicava ele conseguiria, pois o muro, e consequentemente sua casa, estavam a vista, poucos metros a frente, mas durante a sua corrida ele começou a sentir como se o seu próprio peso começasse a aumentar violentamente, retardando sua corrida. Ele forçou, se esforçou, mas no final era como se uma força invisível o agarrassem, impedindo de continuar.

"Baobá num deve se brincar", disse o velho que mesmo tendo ficado caído muitos metros atrás, aparecia agora a sua frente como se nada tivesse acontecido. "Acalma um cadinho nhô que nhô ajuda". Enquanto falava o velho mexia com alguns ossos velhos, recém saídos de um sacola velha que ele carregava ao peito. Sua mãos se mexiam enquanto sua boca cantarolava a cantiga que Jack escutara antes: "Portão de ferro... Cadeado de madeira... É no Portão do cemitério, onde mora o Exú Caveira...".

O medo tomava de assalto o espírito de Razor, que se sentia completamente submisso ao poder da feitiçaria que se mostrava a sua frente. Seu coração rogava ao Senhor que o ajudasse naquele momento de aflição para o Diabo não pegasse sua alma, mas tudo parecia em vão. Ele lutava, gritava e se debatia, mas nada funcionava. Em determinado momento porém, as forças que tanto o forçavam agora o haviam libertado. Tão súbito se foi o que apareceu. Tomado de espanto ele recobrou, partindo mais uma vez para cima do velho, que dessa vez se esquivou a tempo, deixando o gringo passar correndo em diração ao muro.

"Volte espírito da danação", gritava o velho, dessa vez com uma voz bem distinta que Jack escutara antes. "Volte com este cavalo que não é o teu". Inexplicavelmente, Jack parou. Sua mente gritava, "corra! Corra!" mas seu corpo tinha outros planos, tanto que sem que ele desejasse, sua boca se abrira para pronunciar as palavras "kékeré jòjòló ilé alákàrà àìnírunlórí".

A fisionomia do velho mudou drasticamente. Onde antes havia velhice e loucura agora havia vigor e obstinação. O velho gritava em uma língua estranha, mas que bizarramente Jack compreendia e pior, respondia sem que fosse sua vontade. Insultos e palavras de poder eram trocadas, e pouco a pouco a paisagem lúgrebe do cemitério cedia lugar a outra, mais surreal, como que saída de um quadro de Bosch.

Forças se concentravam ao redor de ambos. Energias místicas, muito além da imaginação de qualquer mortal corriam soltas. Preso no fundo de sua mente, Jack presenciava um combate entre o seu próprio corpo e o velho, agora um formidável guerreira de pele negra como o ébano. Ao redor deles demônios e deuses mais antigos que os homens e as estrelas, observavam a tudo silenciosamente, como se daquele confronto depende-se toda a criação. Era uma disputada apertada, onde os movimentos eram aplicados com toda a precisão calculada. Empates sucediam empates.

Jack sabia que algo controlava seu corpo. Aquele não era ele, embora o corpo fosse. Ele não podia compreender o que estava acontecendo nem o por quê daquilo estar acontecendo, mas ele sabia que involuntariamente ele acabaria por ser instrumento de algo muito ruim. Reunindo toda vontade que lhe restava e fazendo uma oração silenciosa para Deus, ele decidiu ajudar a desequilibrar a luta. Um momento, uma hesitação, tempo mais que suficiente para que o guerreiro negro aplicasse o golpe decisivo.

Sua cabeça doía e muito. Lentamente seus olhos foram abrindo, revelando a luz do dia. Suas roupas, ou melhor, sua fantasia estava em um estado lastimável. Ninguém, nem mesmo ele era capaz de dizer do que era, principalmente por causa vômito, que era o que mais se destacava na sua frente. Ao seu lado, duas garrafas de vodca repousavam vazias.

Jack estava confuso. Com alguma dificuldade ele se levantou e olhou onde estava, próximo de casa aparentemente. Da noite anterior nada restava em sua mente, apenas uma ou outra imagem aleatória, que sozinha não fazia muito sentido. Eram quase meio-dia, sua mulher já deveria estar louca atrás dos vizinhos, colegas de trabalho e da policia. Brasil, feitiçaria, lutas entre demônios. Nada fazia sentido algum.

Passo após passo ele então caminhou e enquanto observava o sol em sua face, uma certeza lhe abatia a mente: aquela havia sido uma bela noite de halloween!

Safe Creative Work #0811011235936