Sepultamento

A melancolia das paredes devastava seu coração. A noite devorava seus olhos e gritava em seus tímpanos. As moscas pousavam em seus lábios numa caricia de finas patinhas buscando a podridão. O corpo imóvel de pés juntos era como um boneco de cera, um manequim trágico em seu imobilismo de morto. Era um funeral de profunda e lenta agonia. As pessoas de negro enxugavam as lágrimas em lenços cor de pele. Uma luz doentia reinava no céu, e fragmentava consciências na perda dum ente querido. As sombras eram espessas, como o suor de gordura no semblante dum dos homens, na dor deste acontecimento. Sepultar um ente querido é uma faca na alma, um fulgor de sangue manchando de lembranças à mente. O corpo coberto de flores maquiando a putrefação, era face de ferro, gélida como iceberg flutuando nos mares de sentimento daquela gente.

Era como se o corpo sorrisse a morte, sorrisse a desventura dos que ficam, enfeita os lábios de expressão mórbida. De repente uma mulher em prantos se jogou sobre o caixão e gritou um murmúrio atroz, como que saído do inferno. Era um lamento lancinante, um panegírico impiedoso as conseqüências naturais da dissolução. Não se conformava, nem se conformaria. Sentia o peito pesar-lhe como se uma bigorna de chumbo ancorasse seu corpo nas profundezas do desespero. Sentia as dores de uma família destruída pela perda de seus patriarcas. A morte exibia na face do defunto seu sorriso detestável. Sim a morte, essa desconhecida que nos arroja em ilhas desconhecidas, onde somente as sombras dormem o sono das pedras. O amor que um dia sentira pelos seus mortos agora esfriava em seu coração, e um sentimento de ódio fermentou suas entranhas, e fugiu mais uma vez, no espasmo do grito.

Uma simetria confusa testemunhava o parto dos não nascidos, uma mulher de negro e face caridosa. Seus lábios compungidos no choro, serviam de leito, aonde suas lágrimas iam tristemente morrer. De repente uma gargalhada atroz ecoou no recinto, e a mulher de face clama e caridosa pulou sobre o caixão do defunto e começou a esbofeteá-lo, de forma sombria e contundente. Todos olhavam atônitos, a forma de agir daquela criatura; seu semblante agora desfigurado por um esgar de malicia e ódio, arrancava gritos de dor daqueles que ali estavam. Uma demência teria se apoderado de suas funções cerebrais naquela hora, ou um demônio latejava em suas artérias, fazendo-a profanar um ente de sua própria família? O caixão tombou e o morto caiu de boca escancarada no chão, enquanto todos bestializados de horror assistiam ao triste espetáculo. A noite exalava o aroma da morte e no céu a lua sorria. De repente no burburinho febril de tão trágica cena, uma voz de criança se ouviu dizendo assim – por que vocês tão brigandu?A vovó morreu e vocês deviam respeitar ela, ainda mais agora que ela foi ao papai do céu. A criança falou e o sorriso de dentes quebrados dos ali presentes ecoou no nada. Todos profundamente arrependidos choravam uns nos braços dos outros e a mulher que começara tudo chegou perto da criança a pegou no colo e disse –vamos pra casa filhinho já é hora de você dormir. A mulher outrora descontrolada, pegou seu filho no colo e penetrou o exterior do recinto,onde as labaredas da chuva consumiam seu corpo e o sepultamento então aos pouquinhos se esvaneceu num burburinho de vozes, mas enfim o silencio morreu, enquanto a morte vivia.

Luis Felipe Saratt
Enviado por Luis Felipe Saratt em 07/11/2008
Reeditado em 15/11/2008
Código do texto: T1271772