As Garras de Sangue ou O Lamento das Sobras

Fiquei parado durante horas acariciando seus cabelos com minhas mãos. Cada fio deslizando em meus dedos revelava uma nova parte de seu corpo que eu até então desconhecia. Era maravilhoso, único e estava acabado. Não sabia, na verdade até hoje não sei, como pode um Deus permitir que algo assim acontecesse a uma de suas filhas. A mais bela doce e pacífica de suas filhas. Um anjo em formato de mulher, uma santa em forma humana.

Ao seu lado eu aguardei até que suas carnes se tornassem um mero amontoado de restos orgânicos. Sua lembrança era tudo o que me restara e era o que eu guardaria por toda a minha vida, como uma prova, um voto, um juramento de que eu deveria fazer o que devia ter sido feito desde o princípio.

Não que em algum momento do passado, eu tivesse me oposto a essa idéia. De maneira alguma. Eu fora, assim como eu ainda sou, o seu mais ferrenho defensor. Não há nada mais arriscado para o bem do que se aglutinar com o mal e não há nada mais benéfico do que evitar que a maldade floresça no peito dos seus. Dar a outra face não significa se rebaixar ante ao canhoto, não! Dar a outra face significa prover ao inimigo a chance de uma rendição, porém quando este a nega se torna imperativo que você o derrote e proteja os seus.

A questão não é ser herói ou vilão. A questão é a de assumir sua responsabilidade ante ao grupo e ante a si mesmo. Se cada um de nós assumisse nossas responsabilidades, tais desgraças jamais tornariam a acontecer, e lágrimas como as que derramei por dias a fio seriam saciadas.

Ah meu anjo... Olho para uma foto antiga e penso que você deveria ter se lembrado dessa lição. Coitada. Infelizmente você não fora capaz de assumir essa tarefa, não por maldade nem por covardia, mas por excesso de bondade em seu coração. Somos imperfeitos, temos defeitos, e esse era o seu. Deus é perfeito, Deus sabe o que faz e esse Deus lhe deu toda essa pureza para que você nos servisse de bússola e para que nós a protegêssemos, tarefa no qual nós miseravelmente falhamos.

Sei que alguns erros não podem ser reparados, mas podem sim ser vingados. Existem vários tipos de vingança e Deus há de reconhecer aqueles que lhe são aprazíveis e honestas, como a minha. Sei que fora um fraco em permitir que tal maldade surgisse e se disseminasse entre nós, mas não mais. Era o fim, pois finalmente, embora tardiamente, eu assumiria minhas responsabilidades me livrando do demônio que estava entre nós.

Libertação! Batismo pelo fogo! Assim tinha e assim seria!

Lembro perfeitamente de voltar a nossa capela e encontrar o maldito ajoelhado de frente ao altar, fingindo entoar canções e louvores ao nosso Deus. Miserável! Porco! Besta! Seus dentes inumanos que saiam por sua boca eram uma afronta ao nosso Senhor. Um homem fera, como isso seria possível? Pelo canto dessa mesma boca, um breve filamento de sangue escorria, como uma prova cabal de algum outro crime cometido por tal aberração recentemente.

Oh Senhor! Daí me força para ser o instrumento de tua vingança contra os emissários de Satã!

Violentamente parti para cima da criatura, portando a única arma capaz de feri-lo significamente: uma estaca, repleta de signos sagrados entalhados, com uma brilhante e afiada ponta de prata. Um arma a ser portada por poucos cuja fibra e a vontade fossem virtudes. Era preciso proximidade, exposição. Era preciso conhecimento de si e do inimigo, para que a ferramenta atingisse seus objetivos. Uma prova, isso é o que essa arma era, uma prova sobre o quão verossímil era a vingança.

Parti para cima do maldito, porém o demônio já não estava tão absorto seu disfarce, de modo que antes de atingi-lo, a besta já saltara com suas garras a mostra me interceptando ainda em pleno ar. Lutamos violentamente durante segundos que pareceram longos minutos, ou horas.

Tolo é aquele que não aproveita os dons que o Senhor lhe dá e não os procura desenvolver. Desde de tenra idade sempre estive em busca de um aprimoramento da compleição física que me fora concedida em meu nascimento. A aberração por sua vez, se apoiava unicamente em seus profanos poderes, que por mais que tenham sido capazes de me provocar sérios ferimentos, de nada serviram para evitar que eu aplicasse a justiça do Pai.

Pai sou teu martelo de justiça que desce por sobre aqueles que caminham de encontro aos seus desígnios.

Fora terrível. Fora trágico. Fora inominável a cena que se transcorreu. Rubro é o sangue humano, porém a podridão é o sangue do mal.

Ah meu doce Anjo, você fora vingada. A justiça fora feita, porém o mal já estava feito e era irremediável. Não bastasse a sua presença que nos fora negada, o ferimento que me foi imposto pela criatura meses atrás se recusa veementemente a cicatrizar. Nem mesmo o santo padre em toda sua sabedoria conseguira me curar. O maligno permanece, e a cada dia que passa sinto que ele permanece em mim. Entranhas visões, impuros desejos que brotam em mim além da minha vontade.

Estaria eu me transformando em um novo arremedo do canhoto? Temo saber a resposta, e antes que a confirmação chegue, tomo minha decisão. Afundarei-me em pecados? Talvez, mas não posso permitir que essa mal que agora carrego em mim gere novas vitimas e afunde meus irmãos e irmãs terrenos. Meu sacrifício é necessário.

Despeço-me de todos, rogando a Deus que os ilumine para que as trevas sucumbam ante a bondade de seu coração. Coração... o meu se enche de alegria, esperando em reencontrar aquela que não fora minha amante, porém fora e ainda é minha amada. Que a esperança seja sua virtude e sua arma.

Adeus!