O Final da Rua da Caveira

Nuvem me parecia por demais estranha. Primeiro que não chegava nem mesmo a ser uma vila, de tão insignificante e parada, mas era uma cidade. Algo como uma cidade planejada à moda de Brasília, mas em vez de um avião e de monumentos futuristas, Nuvem vista do alto desenhava uma cruz gótica sobre a planície, e parecia ser um cemitério branco e lúgubre, porém habitado por vivos. As casas, caixotes de telhado achatado, pintadas dum branco incorruptível à poeira, sempre contando com um canteiro de flores murchas ao portão, as janelas sempre fechadas, um rumor nascendo de dentro das edificações, das esquinas e do horizonte, e as suas sempre vazias, vez ou outra passava algum grupo de meninos jogando licença-béti, ou alguma carroça, ou uma Belina decrépita, a acanhada Igreja Matriz, com suas pretensões de catedral gótica, aquilo fazia tremer qualquer viajante perdido que desembarcasse por engano na rodoviária de Nuvem.

Mas engana-se quem pensa que Nuvem era uma cidade triste; pelo contrário, lá se ria, comemorava-se, faziam-se churrascos, promoviam-se bailes e festas no clube, faziam anualmente a Festa do Peão. O que realmente pesava sobre o município branco era a Rua da Caveira, visível de qualquer cruzamento ou quintal, pairando nítida sobre a praça; lá em cima erguia-se rígida a torre de rádio e TV e, ao lado dela, uma mansarda cinzenta, dum branco sujo de fuligem e bolor, mas mesmo assim majestosa com suas colunas de mármore e seus janelões. No alto, entalhado em relevo, uma figura que lembrava uma estrela de múltiplas pontas. Conta-me o Rogernaldo, meu guia em Nuvem:

- Lá no alto é a Rua da Caveira, que um prefeito construiu para fazer o cemitério novo. Mas nem conseguiram terminar, daí a rua ficou largada, ninguém queria construir casa lá, e então fizeram a mansão e puseram a torre do lado dela.

- E pra chegar lá em cima?

- Tem que subir pra lá do recinto da Festa do Peão, contornar as chácaras e já começa a rua no pé do morro. Daí é uma subidona braba e você tá de frente com o casarão. Mas se você quiser ir lá, vai; eu não vou nem fodendo, nem com uma espingarda apontada pra cabeça!

Rogernaldo falava com convicção, enfiando os polegares nos bolsos da sua calça jeans de vaqueiro. Boiadeiro confesso, só andava de caminhonete, caminhão, carroça e lombo de cavalo ou boi. Pisava os paralelepípedos e as calçadas rachadas de Nuvem sempre com botas e esporas, e o chapéu tanto lhe servia como sombreiro nos dias de sol quanto de guarda-chuva nas tempestades. Serviu-me de guia quando saía para fotografar; caminhava comigo pelas ruas me mostrando o prédio da prefeitura, da Câmara, do clube, as chácaras, o puteiro, a praça central, a rua do comércio, as ruínas. A praça foi o que mais me intrigou; o calçamento era dum colorido de mosaico que destoava do resto das construções. Suas árvores tinham também as copas tingidas duma coloração forte, e os monumentos tinham azulejos cor azul clara e verde-água.

- Aqui- apontava para mim um vulcão em plena praça, cheio duma água verde de limo- é a fonte da praça. Mas no fundo dela, bem lá embaixo, tá presa a Zoiúda. Só não tire foto disso, porque senão vão sair dois zóiões fluorescentes!

Fomos então até a padaria do prefeito, cujo prédio lembrava uma daquelas capelas onde se enterram famílias inteiras. Lá, levando travessas de pães-de-queijo e roscas recheadas de doce de leite e chocolate, ele trouxe um álbum ensebado de capa remendada com fita adesiva. Ali, olhei impressionado para as imagens: as pessoas mortas tinham a pele pálida como a de qualquer cadáver, porém seus cabelos estavam tingidos de vermelho. Em algumas fotos, alguns corpos estavam despidos, para mostrar o bizarro detalhe dos pêlos pubianos azuis. Em nenhum deles havia qualquer hematoma, qualquer vergão, buraco de bala, corte ou osso saltado.

- A alma sai pra fora do corpo e eles morrem por falta de vida- explicou Rogernaldo. Uma espécie de inanição espiritual, matutei eu.

Quem morria com o corpo colorido tinha então o fantasma enviado para a mansão do alto da Rua da Caveira, e lá ficava a alma penada assombrando a casa.

- E mora gente nessa mansão?

- Mora sim- falou o peão- os safados que aprontam alguma coisa na cidade a polícia prende lá, pra esperar eles morrerem. E eles ficam até morrer de medo. Daí quando um morre, o defunto aparece na rua e a gente recolhe e enterra.

- E há algum julgamento para a pessoa ser condenada a esse ponto?

- Não. Não tem fórum aqui e a juizada mora tudo fora. A gente tem a nossa lei aqui. Só mexe com a lei de fora se o caso for muito cabeludo.

Da janela do meu quarto na hospedaria eu observava as ruas largadas à noite, deixadas somente às corujas, o canto dos grilos ecoando ao horizonte. As poucas sombras produzidas pela iluminação dos postes pareciam fantasmas decepados, fragmentados, agonizando numa morte dentro da própria morte. E lá em cima do morro, a mansão. Vesti-me com uma jaqueta de nylon, peguei minha câmera digital e ajustei o zoom ao máximo, enquadrando a fachada da imponente casa. Depois, fui até a praça, a dois quarteirões dali. Pelo caminho, tropecei em vários gatos pretos, e saltei a cada ruído que escutava pelos becos. Fotografei a água escura da fonte.

No outro dia, pelo pequeno monitor de LCD do aparelho, mostrei as imagens a Rogernaldo.

- Seu maluco! Por pouco que cê não morre! Bebeu por acaso! irritou-se o peão de boiadeiro- é perigoso, fio! Sorte a sua de ter tirado a fotos e voltado vivo. Olha só nas fotos as assombrações que podiam te pegar!

Na frente da mansão, pude notar ao lado de dois pinheiros o vulto do que pareciam ser dois homens gigantes. Não tinha rosto e eram idênticos, mas estavam claros os dois corpos parcialmente ocultos pela sombra das árvores. Na fonte, brilhavam dois olhos esverdeados, como dois vaga-lumes.

À tarde, fui com Rogernaldo ao clube, pois o maior passatempo dele era jogar futebol com os amigos no mini-campo recém-inaugurado. Fiquei sob uma elevação do lado de fora, sentado na grama, tomando a caipirinha de cachaça do bar do clube (a melhor do Brasil, sem dúvida). Percebi que já sabiam da minha loucura, pois todos os jogadores e a torcida que atrapalhava a partida me olhavam de longe e comentavam como se eu fosse o herói da vez.

- O Rogernaldo tava contando, é verdade que cê tirou foto da mansão da Rua da Caveira e da fonte onde tá enterrada a Zoiúda?

- É verdade sim.

- Nó, moço, cê tá ferrado- dizia-me um dos goleiros- cê tá fodido. Agora agüenta do tranco, fio, que vai ser foda...

Senti-me desconfortável ao me lançarem aquela fatalidade profetizada. Mas enfim, agora era só o tempo de terminar o trabalho e ir embora de Nuvem. Senti que o copo de plástico pesava em minhas mãos, as pedras de gelo pareciam ter se tornado de ferro, impelindo minha mão para baixo, devo estar é bêbado. Larguei-o vazio sob um banco de cimento e fique por ali, conversando com o pessoal. Arrastado por uma brisa inexistente, o copo começou a deslizar pelo assento, girando, até tombar no chão. O susto foi geral. As bordas dele se arquearam, torceram-se, contraíram-se como uma boca, e o que restou do gelo derreteu enquanto um ronco saía dele. Isso sem que ninguém o tocasse.

- Ô louco, moço, que negócio é esse? Rogernaldo tremia. Percebi que todos estavam assustados demais.

Com um estalido, uma labareda alaranjada brotou do copo, derretendo-o até fazer dele uma bola cinzenta. A fogueira que o envolveu era até grande. Assim que se incendiou, os dois times, mais a torcida, eu no meio, saíram correndo, pulando muros, alambrados e cercas.

- É fria, corre, corre! gritava a multidão.

Fiquei apreensivo depois desse caso do copo, e durante todo o resto da tarde e à noite não parei para pensar em outra coisa. Fui dormir ainda preocupado. Mas quem disse que dormi. Primeiro, eram os estalos da madeira da cama e da mobília e depois um gemido que entrava pela janela. Virando para os dois lados com os olhos cerrados, eu não dormia com os gritos, passos, rangidos, toques e com a descarga do banheiro insistindo em fazer barulho. Abri os olhos. A televisão ligou sozinha e por entre os chuviscos surgiam vultos e desenhos abstratos, seguidos por um som grave e uns sussurros que pareciam pronunciados num idioma desconhecido. De fora, vinham uns miados esquisitos.

Apertei todos os botões do chassi e do controle remoto e a TV não desligava. Puxei o fio da tomada, mas mesmo sem energia elétrica ela continuava funcionando, o volume daquele som aumentando. Arrastei-a até o banheiro e tranquei a porta, de lá de dentro se escutavam os grunhidos dela. Deitei-me na cama e, ao me cobrir, um véu negro com braços e pernas puxou meu cobertor e caminhou pelo quarto, sumindo numa sombra.

Saltei de medo e soquei o interruptor, a luz não se acendia. Lá fora, uma criatura que jamais seria um gato miava. A televisão não se calava mesmo no banheiro trancado. Agora, até o chuveiro estava aberto. Uma goteira caía na minha cabeça. O teto estava coalhado de infiltrações, derramando um líquido parecido com groselha. Arrombei a porta do quarto.

Também nenhuma lâmpada do corredor acendia. Barulhos e mais barulhos em todas as direções. A minha salvação era a janela. Enquanto eu a tentava arrebentar (estranho como ninguém acordava), a vidraça subitamente se embaçou, como se lá fora despencasse uma nevasca. Virei-me então. Minha câmera flutuava no corredor, levitando como uma libélula, a lente brilhando em vermelho. As fotos, elas eram o motivo. Saltei e, com uma agilidade de gato, arranquei o memory stick e o esmaguei contra um vaso.

Então subitamente o corredor inteiro se iluminou com um facho amarelado e frio, uma lua cheia invadindo o edifício, e lá apareceu a Zoiúda, o fantasma cujos olhos brilhavam, a pele mais branca do que cera de vela, gorda como uma lua cheia, a cabeleira lisa e cor de fogo escorrendo-lhe pelo corpo nu, o púbis rebrilhando em azul-turquesa. Lentamente, fui perdendo a consciência, até cair sobre o tapete.

Quando acorde, estava algemado, o delegado de polícia e o prefeito ao meu lado.

- Muito bonito, hein? Em vez de acreditar no que o Rogernaldo lhe dizia sobre tomar cuidado com coisas da nossa cidade você vem e apronta esse papelão, hein? Não sabe que você agora pode passar essa maldição para qualquer um!

- Que maldição?

- Olhe pra você, seu idiota.

O dorso das minhas mãos e os meus braços estavam pálidos, como se eu tivesse tomado um banho de farinha. Deram-me um espelho e eu me vi ruivo.

- Deve estar com o saco azul também- gracejou o delegado, cujo hálito cheirava a uísque barato.

Eu era um pária em Nuvem, que deveria ter o mesmo julgamento que os outros tinham. Levaram-me enjaulado para a praça e lá tive que agüentar cusparadas, pedradas, insultos e o desdém da população, que se reuniu para me escarnecer. Ao fim do dia, fui recolhido por um guindaste da prefeitura e levado morro acima, até a Rua da Caveira. Por um caminho tortuoso e vazio, entremeado por cercas e matagais, cheguei então até a entrada da mansão. Seu sótão estava envolto por uma neblina que não se dissipava nem ao meio-dia. Ao lado dela, a única construção do logradouro, um muro fechado por um portão onde se erguia a torre. Fui lançado para o jardim da mansarda pela grua do guindaste e rapidamente os funcionários saíram em disparada morro abaixo.

Morando no palacete havia vários como eu, homens, mulheres, idosos, jovens, até algumas crianças, todos ruivos e pálidos. Conversando com eles, descobri que ali na Rua da Caveira não passavam nem mesmo moscas, as únicas rodas que deslizavam sobre seu asfalto liso de tão novo eram os das máquinas da prefeitura, quando iam despejar os novos amaldiçoados. Soube do elevador de ágata, das duas portas de mogno que se abriam para levar um deles à Zoiúda, e que aquela via não tinha volta. Contavam os amaldiçoados que perambulavam pelos aposentos que a Zoiúda escolhia sempre um dos prisioneiros para comer. Por isso que sempre sumia gente de um dia para o outro.

Aguardando a minha hora, pude perceber que nunca se via o final da Rua da Caveira. A via se estendia até um amontoado de neblina, donde nada mais se via. Ignorando as histórias de que a mansão era protegida por cães de chifres e por plantas carnívoras infiltradas nas trepadeiras do muro, pulei uma das muralhas e ganhei a rua. Na casa, nenhuma movimentação suspeita. A rua, vazia. Fui então até o nevoeiro. Afundei na névoa, que vinha se tornando cada vez mais densa, em pouco tempo nada mais via. Pisei em falso. Um buraco, talvez. Mais parecia um precipício. Comecei a cair, numa queda livre sem fim, depois ouvi o barulho de água e afundei num curso d’água que poderia ser um rio. Fui sendo arrastado para o fundo, por entre bolhas e mais bolhas...

...e minha cabeça ganhou o ar. Estava eu na fonte, em plena praça. Levantei-me e, sacudindo a água do corpo, irrompi pela rua, em direção à hospedaria. Por sorte, tinham-me largado com a chave no bolso. Uma vez lá, revirando as gavetas do escritório, encontrei a chave do meu carro. Voei até a garagem e acelerei, cantando pneus nas ruas daquele cemitério de pessoas vivas. Derrapando, cruzei o trevo e, antes de manobrar para entrar na rodovia, arrisquei olhar pela última vez para a mansão da Rua da Caveira, que surgiu lúgubre no meu retrovisor. Reparei também que estava corado e moreno novamente.

José Marcelo Siviero
Enviado por José Marcelo Siviero em 08/04/2006
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