Ex

São quase meia-noite. A chuva bate forte na janela do meu quarto, iluminado apenas por uma fraca lampada apontada para a escrivaninha onde eu estou sentando, escrevendo frases aleatórias que você, meu amigo anônimo, deve estar lendo agora. Hoje eu a vi. Não foi o acaso, não foi sorte. Ela me ligou, tinha um problema e precisava de alguém para resolvê-lo. Não precisa ser gênio para adivinhar que eu seria esse alguém, e lá fui eu, no meio da chuva, ao encontro dela no meio do nada.

A estrada ficava um pouco distante, nos arredores da cidade. Depois de uma boa meia hora eu a encontrei, com seu carro parado. O capô aberto e ela abrigada no interior. Saltei do carro, sem guarda-chuva nem nada. Poucos segundos andando na chuva em direção a porta do motorista do carro dela: tempo mais que suficiente para ficar completamente ensopado. Cheguei, bati no vidro. Imaginei ela pulando em cima de mim e nós dois nos beijando apaixonadamente e rodopiando como duas crianças na chuva. Sonho. Besteira. Ao bater no vidro ela abaixou um pouco, o suficiente para que eu pudesse ver seus olhos e gritou: “seu idiota, por que demorou tanto? Essa merda ter parado é culpa sua! Conserte logo”!

Rapidamente ela fechou o vidro. Não posso reprová-la, afinal a chuva estava forte e eu bem sabia do histórico que ela tinha com resfriados e afins. Enfim, lá fui eu para olhar o motor. Provavelmente ela abrira o capô antes da chuva começar e ao ver os primeiros pingo correu para se abrigar e deixou o carro assim. Pois bem. Olhei, olhei, olhei e por fim encontrara o problema: a bateria. Por sorte havia outra reserva em meu carro. Peguei a sobressalente, arrumei, fiz alguns ajustes e por fim bati no vidro pedindo para ela ligar. Ligou.

Enquanto falava comigo pelo vidro – alguma coisa sobre eu ter de ter verificado isso antes ou algo assim – o seu celular tocou. “Sim amor, já estou indo. O problema no meu carro já esta resolvi. Meu ex? Sim ele veio aqui consertar, afinal foi ele que havia feito a besteira. Sim amor, quando chegar te ligo. Te amo, beijo”. Sabe, não fazia muito tempo em que ela me tratava assim também. Acho que a menos de 1 ano atrás, sim, antes de perder toda minha fortuna naquele negócio que o, por acaso atual marido dela, arranjou. Uma pena. Desde então as únicas vezes em que ela falava comigo era a respeito de algum problema sobre a documentação do divórcio ou de algum problema nos carros ou na casa dela.

A questão é que pouco após desligar o telefone ela partiu. Antes ela ainda chegou a dizer sobre provavelmente não precisar de me ligar no futuro pois seu novo marido estaria trocando todos os seus carros. Sim, seus, afinal ela não podia usar para o trabalho o mesmo carro que usava para sair a noite, para viajar e para passear aos finais de semana não é verdade? Gritando ainda alguns palavrões o carro dela foi sumindo no horizonte, enquanto eu continuei lá, sozinho e parado na chuva, admirando o borrão que sumia aos poucos.

Minhas roupas ainda estão molhadas e mesmo assim eu estou aqui na escrivaninha, escrevendo essas frases. Na televisão, sem som, eles estão mostrando alguma coisa sobre um carro que explodira minutos antes no centro da cidade, próximo a entrada de um motel. Não queria saber dos detalhes, mais pelo rodapé eu vejo que dos passageiros, um casal ainda não identificado, nenhum sobreviveu. Me levanto então. Desligo a TV e caminho até minha caixa de ferramentas procurando o resto da bomba. Engraçado, acho que pela primeira vez na vida ela me disse algo que é verdade, de que realmente não iria mais me ligar. Só sei que pela primeira vez, em muito tempo, eu finalmente me sinto feliz...

Safe Creative Work # 0902052524728