Espelhos

[tarde de quinta-feira]

Jean-Baptiste Lecroix acordou às 17h e 30min (horário de verão). Andava acordando cada vez mais cedo e estava ficando preocupado com isso, afinal, não queria se tornar um Insone. Embora jamais admitisse isso, nem para si mesmo, adorava fazer coisas humanas como dormir, comer, tomar banho, escovar os dentes, limpar a casa de quando em quando.

Abriu os olhos e fitou o tampo do féretro. Alguns vampiros, entre eles Jean-Baptiste, não conseguiam descansar adequadamente a não ser que repousassem em um caixão. Talvez isso se devesse a sua pseudoproteção ou talvez alguns deles - mas não Jean-Baptiste - sentissem que deveriam estar mortos de verdade e algum mecanismo psicológico os obrigasse a fechar-se dentro de um ataúde. O esquife em que Jean-Baptiste descansara aquela noite - o mesmo que carregava consigo de um lado ao outro durante os últimos cinco meses - era branco por fora, estufado e forrado com tecido cinza claro por dentro. Era confortável e seguro - desnecessário falar das medidas de segurança adotadas por um vampiro moderno para assegurar um bom dia de descanso. Se o Faminto tivesse que usar uma única palavra para designá-lo, certamente ele diria: "Lar".

Assim que começou a se mover, ele ouviu o conhecido estalido metálico das quatro travas que mantinham o féretro hermeticamente selado, indicando que o sensor de movimento havia acionado o mecanismo de destravamento do ataúde hightech.

Abriu o tampo e esquadrinhou o espaço ao redor, para averiguar se nada havia mudado nas últimas 13h e 30min. O Faminto era cuidadoso ao extremo, quase paranóico. Afinal, não sobrevivera naquela profissão sendo descuidado.

Levantou-se, pegou uma camisa amarela "queimada", uma calça marrom escura, sapatos pretos e um par de meias no enorme guarda-roupa, depois foi até o banheiro.

Adorava a sensação da água caindo no corpo - na verdade adorava fluidos de qualquer espécie, com especial predileção pelos líquidos rubros - e, dependendo do seu estado de espírito, podia levar horas no banho. Apreciava a sensação de pureza que experimentava depois de um bom banho, como se água, sabonete e uma boa esfregada pudessem lavar-lhe a alma.

Gostava de uma ducha bem forte, da água batendo contra seu corpo, quanto mais forte o jato, melhor. Costumava fechar os olhos e fingir estar debaixo de uma grande cachoeira para depois abri-los e ver a luz refletida nas gotas translúcidas. Sorria como um menino, ou antes como uma menina.

Secou-se e começou a se vestir.

A imagem do vampiro não refletia em espelhos, mas isso já não era mais problema.

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[seis noites atrás - uma sexta-feira]

No pequeno quarto, o rádio tagarelava: - "Sem pernas, sem braços, mas ainda vivo, o pequeno Wilber..."

Júlio olhou para o céu estrelado e acendeu mais um cigarro - já havia acabado o primeiro maço e tinha mais dois no bolso para o resto da noite - depois voltou para dentro da casa. Precisava apagar seus rastros.

Seu equipamento já estava espalhado pelo banheiro fedorento: os bisturis, a serra, a bacia, os sacos plásticos.

Abriu dois cortes a partir dos ombros que se encontravam no plexo solar e se juntavam a um terceiro formando um Y. A banheira não era o lugar mais apropriado para trabalhar, mas não havia escolha. Abriu o tórax com ajuda da serra, do separador de costelas e retirou os órgãos internos, espremendo-os na pia para extrair todos os fluidos. Depois destacou os membros, lavando-os e guardando-os nos sacos plásticos. Por fim deu atenção à cabeça: limpou, maquiou novamente e deixou-a toda enfeitada sobre a penteadeira, equilibrada em um prato fundo para que os poucos fluidos que ainda restavam não sujassem a madeira envernizada. Acondicionou todas as partes no isopor e saiu.

Olhou para os dois lados da rua antes de atravessar, não pelo medo de ser atropelado, mas para averiguar se nenhum vizinho punheteiro não estaria olhando para a "casa da puta" afim de vê-la transando.

Guardou o isopor na mala do carro e voltou para a casa pela última vez. Limpou tudo, cada recanto, cada fresta, deixando a casa mais limpa do que a encontrou e saiu de novo.

Ao sair deparou-se com o sujeito calmamente apoiado no seu carro. Um sujeito de cabelo branco com reflexos azulados, óculos escuros, calça social preta - com três vincos e barra italiana - camisa grafite aberta mostrando o corpo definido e os piercings nos mamilos.

Por uma fração de segundo Júlio não acreditou na petulância daquele humano.

Caminhou até ele e disse:

- Com licença, amigo. Você está encostado no meu carro.

- Me diga uma coisa - falou o homem com um leve sotaque francês - Se eu enfiar uma estaca de carvalho no seu peito você vai morrer? Eu espero que não, pois estou perdendo a minha paciência e eu realmente preciso de um espelho.

Júlio pensou em sacar a Glock 17, mas quando sua mão se moveu na direção da arma o Faminto levantou a perna numa velocidade incrível acertando a garganta de Júlio com um chute lateral tão potente que por pouco não lhe quebrou o pescoço.

- Ora - disse Jean-Baptiste - não seja um garoto mau.

O vampiro cambaleou surpreso enquanto sua mão se fechava em torno da pistola, retirando-a do coldre, ato contínuo, destravando-a com um movimento rápido do polegar.

O francês recolheu a perna, mas seu pé nem chegou a tocar no chão, já cruzando novamente no ar - desta feita com um movimento giratório - atingindo a Glock 17 e fazendo a arma voar para longe das mãos de seu dono.

- Sem armas - dizia com aquele leve sotaque francês.

O Faminto parecia estar se divertindo com a luta, mas Júlio ainda tinha um último trunfo: sua faca envenenada, mas quase ao mesmo tempo em que ele a sacava, o Faminto sacou uma estaca pontiaguda.

Com a faca em punho, Júlio atacou, visando o pulso do braço direito, cuja mão segurava a estaca, mas o Faminto foi um segundo mais rápido e fincou a estaca no peito de Júlio, trespassando seu coração.

Completamente paralisado, Júlio viu o Faminto carregá-lo até um Shelby alterado, sentando-o no banco do carona e percorrer as ruas da capital paulista até chegar a um prédio luxuoso.

- Você não faz idéia o trabalho que me deu encontrá-lo, meu amigo - falava o francês - Que falta de cortesia a minha. Devia ter perguntado o seu nome antes de começar tudo aquilo, não é?

Jean-Baptiste carregou o outro para o elevador e apertou o botão referente ao sétimo andar. Ele ficava na frente de Júlio de modo que qualquer um que entrasse obrigatoriamente iria vê-lo antes de enxergar o vampiro estaqueado. Duas moças entraram no segundo andar.

- O elevador está lotado, queridas - falou o Faminto olhando nos seus olhos e dominando suas mentes - Esperem o próximo.

Assim todos os moradores que, naquela noite, haviam tentado pegar o elevador estranharam a lotação, mas como não eram pessoas dadas a perguntas, não houve maiores problemas.

Levou-o ao seu apartamento e, usando uma pregadeira pneumática o pendurou na parede do banheiro pelas mãos, como se estivesse crucificado.

Júlio pensou que o Faminto fosse algum parente das incontáveis vítimas que ele havia cruelmente assassinado...

- Não, amigo - respondeu o francês, embora nenhuma pergunta tivesse sido feita - Eu sou outro como você. Um vampiro, um devasso.

Outro vampiro? E tinha mania de falar consigo mesmo. Aquilo era ridículo, ele sempre fora capaz de sentir a presença de outro vampiro.

- Estou falando com você - disse o Faminto - Júlio, não é isso? Claro que você não me sentiu, Júlio. Ninguém mais pode me sentir através de meios sobrenaturais. Eu, pelo contrário, posso sentir uma criatura sobrenatural num raio de dez quilômetros. Que acha disso?

Como...

- Eu leio a sua mente, amigo. É por este motivo que você está aqui pendurado na minha parede. Na verdade você será o meu espelho.

Espelho?

- Sim. Como muitos vampiros eu não posso me ver em espelhos, vídeos e fotos, por isso preciso entrar na mente das pessoas de modo a "me enxergar" através de seus olhos.

Então tudo isso para poder "se ver" novamente?

- Sim, mas acho que você pensa demais. Fique quieto um momento para que eu possa me pentear e trate de se comportar. Nós vamos nos ver durante um bom tempo e você, realmente, não vai gostar de me deixar irritado.

Jean-Baptiste sabia que, fatalmente, aquele espelho novo deixaria de ser útil por causa da falta de sangue, mas quando isso acontecesse - o que deveria acontecer em dez noites se ele não houvesse gasto muito Sangue na briga - o Faminto apanharia outro.

Pergamasco
Enviado por Pergamasco em 03/05/2005
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